domingo, 26 de junho de 2022

POEMA: O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL - I - AVE MARIA - CESÁRIO VERDE - COM GABARITO

 Poema: O Sentimento dum Ocidental – I – Ave Maria


Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba-me;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sam Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos,
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixeis, heróis, tudo ressuscitado
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

VERDE, Cesário. O sentimento dum ocidental. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000070.pdf. Acesso em: 15 jul. 2009.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 158-9.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Turba: multidão.

·        Toldam-se: tornam-se escuros; obscurecem, obumbram.

·        Calafates: operários especializados em calafetação (vedação) de tonéis, pisos, telhados, fundos de navios, etc.

·        Aos magotes: aos montes, aos grupos.

·        Enfarruscados: sujos de carvão, de fuligem.

·        Baixeis: barcos de grande porte.

·        Singram: velejam, navegam.

·        Couraçado: navio de combate.

·        Vogam: deslocam-se; navegam.

·        Escaleres: embarcações pequenas.

·        Varinas: vendedoras ambulantes de peixe.

·        Canastras: cestas de madeira.

02 – Releia a primeira estrofe. Que sentimentos o anoitecer provoca no sujeito poético?

      Segundo o sujeito poético, o anoitecer, com sua atmosfera soturna (triste, sombria) e melancólica, desperta nele um “absurdo” (enorme) desejo de sofrer.

03 – Na segunda estrofe, há uma referência a Londres (“cor londrina)”. Em sua opinião, por que isso acontece?

      Para enfatizar a urbanização acelerada da cidade de Lisboa, centro da revolução industrial, é uma cidade paradigmática no que diz respeito ao crescimento urbano desordenado e às suas consequências, como a miséria e a criminalidade.

04 – Na quarta estrofe, as “edificações” e os “mestres carpinteiros” são comparados a quê?

      As edificações (“somente emadeiradas”, ou seja, em processo de construção) são comparadas a gaiolas com viveiros, e os “mestres carpinteiros” são comparados a morcegos, que saltam de viga em viga.

05 – Na sexta estrofe, faz-se alusão a um episódio da história literária portuguesa. Qual é ele?

      O episódio em que Camões, durante um naufrágio, teria se lançado ao mar para salvar o seu poema “Os lusíadas”. Segundo consta, o poeta português teria preferido salvar a obra a salvar sua namorada, Dinamene.

06 – Justifique a afirmação expressa no verso: “E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!”

      O final da tarde é fonte de inspiração para o sujeito poético, que escreve sobre esse momento do dia. Entretanto, a sensação que ele tem é de incômodo, já que a observação do movimento da cidade, nessa hora, descortina um cotidiano monótono e miserável.

07 – Na penúltima estrofe, o eu poético afirma que algumas vendedoras de peixe embalam seus filhos em canastras que levam na cabeça – os mesmos “filhos que depois naufragam nas tormentas”. A ideia desse verso revela uma visão positiva ou negativa a respeito do futuro?

      A ideia de que os filhos embalados pelas mães irão naufragar em tormentas (tempestades) revela uma visão negativa, desesperançosa, em relação ao futuro. Os versos sugerem que o esforço das mães par cuidar de seus filhos é inútil, pois o destino deles não é promissor.

08 – Relacione o último verso do fragmento – “E o peixe podre gera os focos de infecção!” – aos temas recorrentes da literatura realista-naturalista.

      A referência aos peixes podres remete à miséria e à degradação urbana, e a ideia de que esses mesmos peixes geram focos de infecção está relacionada à perspectiva cientificista, cara aos escritores realistas-naturalistas, preocupados em detectar patologias (doenças) físicas e psicológicas.

09 – O poema apresenta fortes traços narrativos. Considerando essa afirmação, responda:

a)   Qual é o espaço privilegiado no texto?

O espaço privilegiado é o espaço público da cidade de Lisboa: ruas, praças e o cais, por onde transitam as pessoas. O mar é uma presença forte na paisagem urbana lisboeta. A referência às “crônicas navais”, por exemplo, remete às grandes navegações portuguesas.

b)   Que personagens se movem nesse espaço?

O sujeito poético focaliza principalmente os operários e trabalhadores pobres que transitam pelas ruas no fim da tarde.

c)   É possível afirmar que o sujeito poético, que capta as imagens da cidade em movimento, também está em movimento? Justifique sua resposta com versos do poema.

Sim. O sujeito poético parece circular pela cidade de Lisboa e registrar as imagens que vê: “Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, / Ou erro pelo cais a que se atracam botes”.

d)   Você acha que, ao escrever o seu poema. Cesário Verde tinha em perspectiva a inserção de Portugal e da literatura portuguesa num cenário europeu mais amplo? Para responder, considere também o título do poema.

Sim. Ao focalizar, em seu poema, os trabalhadores que circulam pela cidade de Lisboa, Cesário enfatiza a urbanização de seu país, análoga à urbanização de Paris ou Londres, por exemplo. Também o título do poema revela um posicionamento singular do sujeito poético: seus sentimentos não são apenas os de um português, mas os de um “ocidental” (naquele contexto, ser ocidental significa, sobretudo, ser europeu).

 

 

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