Crônica: Carta ao Prefeito
Rubem Braga
Senhor Prefeito do Distrito Federal:
Eu sou um desses estranhos animais que
têm por habitat o Rio de Janeiro; ouvi-me, pois, com o devido respeito.
Sou um monstro de resistência e um
técnico em sobrevivência – pois o carioca é, antes de tudo, um forte. Se às
vezes saio do Rio por algum tempo para descansar de seus perigos e desconfortos
(certa vez inventei até ser correspondente de guerra, para ter um pouco de paz)
a verdade é que sempre volto. Acostumei-me, assim, a viver perigosamente. Não
sou covarde como esses equilibristas estrangeiros que passeiam sobre fios entre
os edifícios. Vejo-os lá em cima, longe, dos ônibus e lotações, atravessando a
rua pelos ares e murmuro: eu quero ver é no chão.
Também não sou assustado como esse
senhor deputado Tenório Cavalcanti, que mora em Caxias e vive armado; moro bem
no paralelo 38, entre Ipanema e Copacabana, e às vezes, nas caladas da noite,
percorro desarmado várias boates desta zona e permaneço horas dentro da
penumbra entre cadeiras que esvoaçam e garrafas que se partem docemente na
cabeça dos fiéis em torno. E estou vivo.
Ainda hoje tenho coragem bastante para
tomar um ônibus ou mesmo um lotação e ir dentro dele até o centro da cidade.
Vivo assim, dia a dia, noite a noite, isto que os historiadores do futuro,
estupefatos, chamarão a Batalha do Rio de Janeiro. Já fiz mesmo várias viagens
na Central. Eu sou um bravo, senhor.
Sei também que não me resta nenhum
direito terreno; respiro o ar dos escapamentos abertos e me banho até no
Leblon, considerado um dos mais lindos esgotos do mundo; aspiro o perfume da
curva do Mourisco e a brisa da Lagoa e – sobrevivo. E compreendo que, embora
vós administreis à maneira suíça, nós continuaremos a viver à maneira carioca.
Eu é que não me queixo; já me aconteceu
escapar de morrer dentro de um táxi em uma tarde de inundação e ter o consolo
de, chegando em casa, encontrar a torneira perfeitamente seca.
Prometestes, senhor, acabar em 30 dias
com as inundações no Rio de Janeiro; todo o povo é testemunha desta promessa e
de seu cumprimento: é que atacaste, senhor, o mal pela raiz, que são as chuvas.
Parou de chover, medida excelente e digna de encômios.
Mas
não é para dizer isso que vos escrevo. É para agradecer a providência que vossa
administração tomou nestas últimas quatro noites, instalando uma esplêndida lua
cheia em Copacabana. Não sei se a fizestes adquirir na Suíça para nosso uso
permanente, ou se é nacional. Talvez só possamos obter uma lua cheia definitiva
reformando a Constituição e libertando Vargas.
Mas a verdade é que o luar sobre as
ondas me consolou o peito. E eu andava muito precisado. Obrigado, Senhor.
Rubem Braga – Rio,
junho de 1951.
Rubens Braga. Carta
ao prefeito. São Paulo: Ática, 1979. p. 43-4. (Para gostar de ler, 4).
Fonte: Português em
outras palavras – 8ª série – Maria Sílvia Gonçalves – ed. Scipione – São Paulo,
2002. 4ª edição. p. 112-3.
Entendendo a crônica:
01 – A crônica que você leu
foi escrita em forma de uma carta. Está endereçada ao prefeito do Distrito
Federal (na época, o Rio ainda era o Distrito Federal). Que cuidados em relação
à linguagem o autor tomou, para fazer a carta parecer verdadeira?
O autor dirige-se a um interlocutor, a
quem ele chama de “senhor”, e usa a segunda pessoa do plural. Escreve em
primeira pessoa e inicia seu texto com a evocação: “Senhor prefeito do Distrito
Federal”.
02 – Explique como o autor
consegue fazer críticas contundentes à administração da cidade, sem atacar
diretamente as autoridades.
Ele usa a ironia:
diz exatamente o contrário do quer fazer parecer. Faz os piores ataques à
administração da cidade, ao mesmo tempo que elogia o prefeito.
03 – Raramente os políticos
cumprem o que prometem, mas o prefeito do Rio acabou com as inundações e
mereceu os elogios do cronista. Você concorda com essa afirmação? Justifique
sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno: Sugestão: O aluno deverá discordar. Dizer que o prefeito atendeu seu
pedido providenciando o final das chuvas para acabar com as inundações também é
ironia.
04 – Relendo os três últimos
parágrafos do texto, a quem seria possível atribuir o pronome de tratamento
“senhor” utilizado pelo autor?
Nos três últimos parágrafos do texto,
fica claro que o “senhor” não é o prefeito. Pode ser uma referência a um ser
sobrenatural poderoso, que teria poderes sobre a natureza.
05 – Na sua opinião, o que
seria administrar à maneira suíça? E viver à maneira carioca?
Administrar à maneira suíça seria
administrar uma cidade como se ela fosse de primeiro mundo; viver à maneira
carioca seria viver num país de terceiro mundo.
06 – Na “Carta ao Prefeito”,
escrita em junho de 1951, Rubem Braga faz referência à “Batalha do Rio de
Janeiro”. Comparando esse texto com os acontecimentos citados em “As meninas da
linha 174 – um elogio”, a que conclusões é possível chegar?
Pode-se concluir que a violência no Rio
de Janeiro, já descrita em 1951, continua, apresentando-se de forma ainda mais
acentuada.
07 – Verifique se a
descrição do Rio de Janeiro, da forma feita pelo autor, corresponde ao conceito
de cidade elaborado pela classe na abertura da unidade.
Provavelmente,
não haverá correspondência. O conceito de cidade, elaborado pela classe, deve
referir-se à cidade como um lugar no qual o cidadão poderá viver em condições
dignas.
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