domingo, 19 de junho de 2022

POEMA: QUEBRANTO - CUTI - COM GABARITO

 Poema: Quebranto 

            Cuti


às vezes sou o policial que me suspeito

me peço documentos

e mesmo de posse deles

me prendo

e me dou porrada

 

às vezes sou o zelador

não me deixando entrar em mim mesmo

a não ser

pela porta de serviço

 

às vezes sou o meu próprio delito

o corpo de jurados

a punição que vem com o veredicto

 

às vezes sou o amor que me viro o rosto

o quebranto

o encosto

a solidão primitiva

que me envolvo no vazio

 

às vezes as migalhas do que sonhei e não comi

outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas

 

um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto

depois um imperador deposto

a república de conchavos no coração

e em seguida uma constituição

que me promulgo a cada instante

também a violência dum impulso

que me ponho do avesso

com acessos de cal e gesso

chego a ser

 

às vezes faço questão de não me ver

e entupido com a visão deles

me sinto a miséria concebida como um eterno

começo

 

fecho-me o cerco

sendo o gesto que me nego

a pinga que me bebo e me embebedo

o dedo que me aponto

e denuncio

o ponto em que me entrego.

 

às vezes!...

Cadernos negros: Os melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998. p. 48.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 92-3.

Entendendo o poema:

01 – Releia as quatro primeiras estrofes do poema. Segundo o texto, que papéis o sujeito poético assume em diferentes circunstâncias de sua vida?

      Às vezes ele assume o papel de policial, que reprime mesmo sem motivos; às vezes assume o papel de zelador, exercendo discriminação contra si mesmo; às vezes assume o papel de crime (que não cometeu) e da justiça (que condena injustamente); e, por fim, às vezes assume o papel do amor preconceituoso, que o abandona à própria solidão.

02 – Releia a estrofe a seguir:

“às vezes sou o zelador

não me deixando entrar em mim mesmo

a não ser

pela porta de serviço”

Agora explique: como você entende esses versos? Que contexto eles sugerem?

      Os versos remetem a uma situação de desigualdade e de preconceito. O entrar pela “porta de serviço” aponta para a humilhação muitas vezes imposta de não se poder usar a “porta social”, o que sugere a oposição casa grande & senzala, existente no passado.

03 – Releia estes versos:

“às vezes as migalhas do que sonhei e não comi

outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas”

a)   Que verbo está implícito neles?

O verbo implícito, nos dois versos, é o ser. Às vezes (sou) a migalha do que sonhei e não comi / outras (sou) o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas.

b)   Que recursos de linguagem são usados pelo autor no segundo verso dessa estrofe?

O autor faz uso da comparação (outras como o bem-te-vi) e também da aliteração, figura de linguagem em que se repetem os sons consonantais (outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas.)

04 – O poema faz referências claras à história do Brasil, sugerindo que os negros sempre estiveram à margem dos processos históricos, sofrendo duramente as suas consequências. À luz dessa perspectiva, interprete o verso: “um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto”.

      O verso refere-se ao modo como foi conduzida a abolição dos escravos no Brasil. O sujeito poético, que assume a sua afrodescendência, coloca-se no lugar de seus antepassados que, depois da abolição, ficaram sem lugar social, pois não houve políticas públicas para sua integração no universo do trabalho assalariado. Como se sabe, esse fato está na base da exclusão social dos negros que se perpetua até hoje.

05 – Releia com atenção os seguintes versos:

“às vezes faço questão de não me ver

e entupido com a visão deles

me sinto a miséria concebida como um eterno

começo”.

Quem seriam “eles”, os responsáveis por formular uma determinada visão capaz de “entupir” o sujeito poético?

      O pronome “eles” pode ser entendido como “os outros” – os não negros –, que veiculam uma visão negativa em relação aos afrodescendentes. Trata-se de uma visão hegemônica em nossa sociedade, reiterada nos jornais, nos programas de televisão, nas novelas, enfim, nos meios de comunicação que frequentemente (re)produzem uma visão estereotipada sobre o negro.

06 – O poema apresenta um tom melancólico, decorrente do pessimismo expresso pelo eu lírico. Porém, essa visão negativa é relativa é relativizada no último verso do poema: “Às vezes!...”. Explique por que isso acontece.

      O último verso do poema – “Às vezes!...” – enfatiza que a percepção negativa que o eu lírico tem de si mesmo não é permanente, mas ocasional, ocorrendo apenas “às vezes”. Essa constatação nos dá margem para imaginar que, em outras situações, o que acontece é justamente o contrário – a sua autovalorização. As reticências que finalizam o texto sugerem justamente a continuidade da reflexão proposta.

07 – Você sabe o que significa “quebranto”? Confira o sentido da palavra no dicionário e, depois, elabore uma hipótese para explicar por que o termo foi escolhido para dar título ao poema.

      O significado de “quebranto” é “mau-olhado”, ou seja, um suposto efeito malévolo que a atitude ou o olhar de algumas pessoas produzem em outras. O poema chama-se “quebranto” exatamente porque aborda o efeito negativo que a perspectiva hegemônica de desvalorização do negro exerce sobre o sujeito poético, fazendo com que ele interiorize o preconceito veiculado socialmente.

Um comentário:

  1. A absoluta falta de escolaridade promove a inelutável exclusão política e social do indivíduo. Os negros, em particular, foram as maiores vitimas dessa condição durante todo o período colonial. Este problema, embora em menor escala permanece ainda hoje, fazendo com que o povo trabalhador brasileiro entre pelas portas dos fundos no contexto das Nações desenvolvidas.

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