Poema: Quebranto
Cuti
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o zelador
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto
às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo no vazio
às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas
um dia fui abolição que me lancei de supetão no espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante
também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria concebida como um eterno
começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
às vezes!...
Cadernos negros: Os
melhores poemas. São Paulo: Quilombhoje, 1998. p. 48.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição –
Curitiba – 2010. p. 92-3.
Entendendo o poema:
01 – Releia as quatro
primeiras estrofes do poema. Segundo o texto, que papéis o sujeito poético
assume em diferentes circunstâncias de sua vida?
Às vezes ele
assume o papel de policial, que reprime mesmo sem motivos; às vezes assume o
papel de zelador, exercendo discriminação contra si mesmo; às vezes assume o
papel de crime (que não cometeu) e da justiça (que condena injustamente); e,
por fim, às vezes assume o papel do amor preconceituoso, que o abandona à
própria solidão.
02 – Releia a estrofe a
seguir:
“às
vezes sou o zelador
não
me deixando entrar em mim mesmo
a
não ser
pela
porta de serviço”
Agora explique: como você entende esses versos? Que
contexto eles sugerem?
Os versos remetem
a uma situação de desigualdade e de preconceito. O entrar pela “porta de
serviço” aponta para a humilhação muitas vezes imposta de não se poder usar a
“porta social”, o que sugere a oposição casa grande & senzala, existente no
passado.
03 – Releia estes versos:
“às
vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras
o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas”
a) Que verbo está implícito neles?
O verbo implícito, nos dois versos, é o ser. Às vezes (sou) a
migalha do que sonhei e não comi / outras (sou) o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas.
b) Que recursos de linguagem são usados pelo autor no segundo verso dessa estrofe?
O autor faz uso da comparação (outras como o bem-te-vi) e também da
aliteração, figura de linguagem em que se repetem os sons consonantais (outras
o bem-te-vi com olhos vidrados trinando tristezas.)
04 – O poema faz referências
claras à história do Brasil, sugerindo que os negros sempre estiveram à margem
dos processos históricos, sofrendo duramente as suas consequências. À luz dessa
perspectiva, interprete o verso: “um dia fui abolição que me lancei de supetão
no espanto”.
O verso refere-se
ao modo como foi conduzida a abolição dos escravos no Brasil. O sujeito
poético, que assume a sua afrodescendência, coloca-se no lugar de seus
antepassados que, depois da abolição, ficaram sem lugar social, pois não houve
políticas públicas para sua integração no universo do trabalho assalariado.
Como se sabe, esse fato está na base da exclusão social dos negros que se
perpetua até hoje.
05 – Releia com atenção os
seguintes versos:
“às
vezes faço questão de não me ver
e
entupido com a visão deles
me
sinto a miséria concebida como um eterno
começo”.
Quem seriam “eles”, os responsáveis por formular uma determinada visão capaz de “entupir” o sujeito poético?
O pronome “eles”
pode ser entendido como “os outros” – os não negros –, que veiculam uma visão
negativa em relação aos afrodescendentes. Trata-se de uma visão hegemônica em
nossa sociedade, reiterada nos jornais, nos programas de televisão, nas novelas,
enfim, nos meios de comunicação que frequentemente (re)produzem uma visão
estereotipada sobre o negro.
06 – O poema apresenta um
tom melancólico, decorrente do pessimismo expresso pelo eu lírico. Porém, essa
visão negativa é relativa é relativizada no último verso do poema: “Às
vezes!...”. Explique por que isso acontece.
O último verso do
poema – “Às vezes!...” – enfatiza que a percepção negativa que o eu lírico tem
de si mesmo não é permanente, mas ocasional, ocorrendo apenas “às vezes”. Essa
constatação nos dá margem para imaginar que, em outras situações, o que
acontece é justamente o contrário – a sua autovalorização. As reticências que
finalizam o texto sugerem justamente a continuidade da reflexão proposta.
07 – Você sabe o que
significa “quebranto”? Confira o sentido da palavra no dicionário e, depois,
elabore uma hipótese para explicar por que o termo foi escolhido para dar
título ao poema.
O significado de “quebranto” é
“mau-olhado”, ou seja, um suposto efeito malévolo que a atitude ou o olhar de
algumas pessoas produzem em outras. O poema chama-se “quebranto” exatamente
porque aborda o efeito negativo que a perspectiva hegemônica de desvalorização
do negro exerce sobre o sujeito poético, fazendo com que ele interiorize o
preconceito veiculado socialmente.
A absoluta falta de escolaridade promove a inelutável exclusão política e social do indivíduo. Os negros, em particular, foram as maiores vitimas dessa condição durante todo o período colonial. Este problema, embora em menor escala permanece ainda hoje, fazendo com que o povo trabalhador brasileiro entre pelas portas dos fundos no contexto das Nações desenvolvidas.
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