Romance: Madame Bovary – (Fragmento)
Gustave Flaubert.
[Ema] Sentia-se, de resto, cada vez
mais irritada. A idade ia-o tornando seu marido pesadão: à sobremesa
divertia-se em cortar as rolhas das garrafas vazias, e, depois de comer,
passava a língua pelos dentes; ao engolir a sopa fazia um gorgolejo em cada
gole e, como começasse a engordar, os olhos, já por si tão pequenos, pareciam
ter subido para as fontes, empurrados pelas bochechas.
[...]
Bem no íntimo, contudo, [Ema] esperava
um acontecimento qualquer. Como os marinheiros em perigo, relanceava olhos
desesperados pela solidão da sua vida, procurando, ao longe, alguma vela nas
brumas do horizonte. Não sabia qual o acaso, o vento que a impeliria para ela,
e qual a praia para onde se sentiria levada; seria chalupa ou nau de três
pontes, carregada de angústias ou cheia de felicidade até as bordas? Todas as
manhãs, ao acordar, preparava-se para esperar o dia inteiro e aplicava o ouvido
a todos os rumores; levantava-se em sobressalto, admirando-se de que tal acaso
não surgisse; depois, ao pôr do sol, cada vez mais triste, desejava-se
encontrar-se já no dia seguinte.
A primavera voltou, e Ema sentiu-se
afrontada com os primeiros calores, quando as pereiras floriram. Logo no começo
de julho, passou a contar nos dedos as semanas que faltavam para chegar o mês
de outubro, pensando que o Marquês d'Andervilliers daria outro baile em
Vaubyessard; mas todo o mês de setembro decorreu sem cartas nem visitas.
Após o aborrecimento desta decepção,
seu coração ficou de novo vazio, recomeçando a série dos dias monótonos.
Iam, pois, continuar assim, uns após
outros, sempre os mesmos, incontáveis, sem surpresas! As outras existências, por
mais insípidas que fossem, tinham, pelo menos, a possibilidade do inesperado.
Uma aventura trazia consigo, às vezes, peripécias sem fim, o cenário
transformava-se. Mas para ela nada surgia, era a vontade de Deus! O futuro era
um corredor escuro, que tinha, no extremo, a porta bem fechada.
FLAUBERT, Gustave.
Madame Bovary. São Paulo: Abril Cultural, 1970. p. 52-3.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição –
Curitiba – 2010. p. 146-7.
Entendendo o romance:
01 – Explique por que o narrador
afirma que Ema Bovary se sentia cada vez mais irritada depois do casamento.
Porque, com o
envelhecimento do marido, ela observava nele a repetição de modos grosseiros e
pouco elegantes, como cortar rolhas de garrafas vazias e engolir sopa com
barulho. Também o fato de ele engordar o tornava desinteressante para ela.
02 – No segundo parágrafo do
fragmento, o narrador estabelece um paralelo entre a situação vivida por Ema e
a situação vivida pelos marinheiros em perigo. Qual é essa comparação?
Assim como um
marinheiro em perigo, Ema procura, em seu horizonte, alguma possibilidade de
salvação. Ela desejava outro destino para si, com as inevitáveis surpresas do
desconhecido.
03 – “A primavera voltou, e
Ema sentiu-se afrontada com os primeiros calores, quando as pereiras floriram”.
Em sua opinião, por que Ema sentiu-se afrontada com a chegada da primavera?
Porque a
primavera metaforiza a vida, a renovação e a beleza. E o cotidiano de Ema lhe
parecia trazer justamente o contrário disso. Daí ela se sentir insultada ou
ofendida ao sentir os calores da primavera ou ver as flores das pereiras.
04 – Retire do texto
exemplos que atestam a monotonia da vida da protagonista.
Todos os dias,
Ema esperava um acaso que pudesse mudar os rumos de sua vida e, como nada
acontecia, ela se tornava cada vez mais triste; num determinado mês de julho,
ela começou a esperar ansiosamente pelo convite a um baile que deveria
acontecer apenas em outubro. Como o convite não foi formalizado, ela ficou
muito decepcionada.
05 – Você considera o texto
detalhista? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A narrativa é rica em detalhes, pois explicita
pormenorizadamente os sentimentos de tédio e desencanto de Ema, por meio da
utilização de imagens e da formulação de exemplos.
06 – É possível dizer que
Ema Bovary gostaria de viver como uma heroína romântica?
Sim. Ao
demonstrar sede de aventuras e desejo de viver peripécias inesperadas, Ema
parece projetar para si o destino dos protagonistas dos romances românticos,
que viviam histórias rocambolescas até finalmente alcançarem um “final feliz”.
07 – O texto relata uma das
muitas decepções da personagem de Flaubert. Qual foi esta decepção?
A decepção foi
que no mês de setembro não teve cartas e nem visitas.
08 – Qual é a única
possibilidade que Ema vê para sair do marasmo em que vive? Essa alternativa é
mesmo possível? Explique.
Única
possibilidade: Ema, ter a vida das outras pessoas, que mesmo sendo insípidas, elas
tinham ventura, peripécias, e o cenário da vida se transformava. -- Mas esta
alternativa não era possível, pois Seu futuro era um corredor escuro, com uma
porta fechada no final.
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