Artigo de Opinião: O que deixar para nossas crianças
Lya Luft
Aos que detestam datas marcadas,
porque as consideram exploração comercial, digo que concordo em parte;
explora-se a nossa burrice existencial básica, que se submete aos modismos, às
propagandas, ao consumismo desvairado. Pais que se endividam para
comprar brinquedos e objetos caros e supérfluos para crianças que poderiam fazer coisa bem mais interessante, como jogar
bola, pular corda, ler um livro, armar um quebra-cabeça, praticar esporte. Isso
acontece na Páscoa, no Dia das Crianças, no Natal, em cada aniversário. Nesse
aspecto, acho que os dias marcados para celebrar coisas positivas se tornam –
para os tolos e frívolos, os desavisados – coisa negativa, fonte de tormento e
preocupação.
Mas, visto sob outro prisma, não acho
ruim existirem datas em que a gente é levada a lembrar, a demonstrar o afeto
que se dilui no cotidiano, a fazer algum gesto carinhoso a mais. A prestar uma
homenagem: refiro-me agora à data vizinha do Dia das Crianças, o Dia do
Professor, celebrado na semana passada. Ofício tão desprestigiado, por mal
pago, pouco respeitado e mal amado, que milhares e milhares de jovens escolhem
outra carreira. E não me falem de sacerdócio: o professor, ou a professora,
precisa comer e dar de comer, morar e pagar moradia, transportar - se e pagar
transporte, comprar remédio, respirar, viver, Além disso, deveria poder
estudar, ler, comprar livros, aperfeiçoar-se e descansar para enfrentar o
dia-a-dia de uma profissão muito desgastante.
Então, reunindo a ideia das duas
datas, crianças e mestres, reflito um pouco sobre o que me sugeriu dias atrás
um amigo:
- Escreva sobre que mundo estamos
deixando para nossas crianças, pois vai nascer minha primeira neta, e essa
questão se tornou presente em minha vida.
Pois é. Criança tem entre muitos esse
dom de nos dar um belo susto existencial: abala as estruturas da nossa
conformidade, nos torna alerta, nos deixa ansiosos. O que estou fazendo por
ela, o que posso fazer por ela, quem devo ser ou me tornar para representar um
bem para esse neto ou neta, filho ou filha, aluno ou aluna?
Se forem as crianças de minha casa, a
questão se torna crucial, e o amor é a dádiva primeira.
E aí entram também os casais, tema por
vezes espinhoso. Temos em casa um clima fundamentalmente bom e harmonioso,
apesar das naturais diferenças e dificuldades? Por baixo do cotidiano de
aparente rotina corre um rio de afeto ou grassam discórdia e rancores? Como
apresentar ao imaginário infantil a figura do nosso parceiro ou parceira?
Lembro aqui a atitude infeliz de tantas mulheres: desabafar diante dos filhos,
pequenos ou adultos, sua raiva e insatisfação. Pior; usar os filhos para
manipular emocionalmente o parceiro, usando-os para promover a própria
vitimização e tornar quase um monstro o pai deles.
Vão mais uma vez dizer que privilegio os
homens, mas essa postura, vingativa, cruel e mesquinha, é muito mais frequente
nas mulheres, sobretudo nas separadas. Não somos todas umas santas, não somos
boazinhas. A mãe-vítima e a santa esposa me assustam: hão de cobrar, com altos
juros, todo esse sacrifício.
Enfim: que legado deixamos para as
crianças? Primeiro, vem o legado pessoal: quem somos, quem podemos ser, quem
poderíamos nos tornar, para que elas tenham um mínimo de confiança, um mínimo
de amor por si próprias, um mínimo de otimismo para poder enfrentar a dura
vida. Depois, podemos olhar para fora e imaginar um mundo, pelo menos um país,
onde elas não tenham de presenciar espetáculos degradantes de corrupção, melancólicos
jogos de interesse ou de poder.
Onde os líderes sejam honrados, onde
seus pais não se desesperem nem descreiam de tudo.
Onde todos tenham escolas sólidas com
professores bem pagos e bem preparados. Onde, em precisando, elas disponham de
hospitais excelentes e médicos em abundância, de higiene em sua casa, comida em
sua mesa, horizonte em sua vida.
E que as crianças possam ter a seu
lado, mais que um anjo da guarda, a Senhora Esperança: ela será a melhor
companheira e o mais precioso legado.
LYA
LUFT é escritora. Texto retirado da revista Veja de 24/10/2007.
1. Com quem a autora estabelece um “diálogo” no primeiro parágrafo do texto?
Com os pais que gostam de dias marcados para comemorar datas
festivas, ou melhor, serem explorados pelo comércio.
2. Há uma perspectiva de concordância ou discordância nessa “conversa”?
A autora diz que concorda em parte com os detestam datas marcadas.
3. Ainda no primeiro parágrafo, pode-se perceber uma contradição nas ações das pessoas que dizem detestar datas marcadas. Que ideias estão se opondo, nesse caso?
Porque ainda se submete aos modismos, às propagandas, ao consumismo
desvairado.
4. Qual é a posição da autora perante a afirmação de que nas datas especiais os pais se endividam ao comprar brinquedos e objetos caros e supérfluos?
Que poderiam fazer coisa bem mais interessante, como jogar bola,
pular corda, ler um livro, armar um quebra-cabeça, praticar esporte.
5. A autora fala da participação de algumas pessoas na vida das crianças. Quais são e qual o ponto de vista da autora em relação a cada uma dessas pessoas?
As crianças e aos professores.
6. Existe, no texto, uma preocupação visível com o bom exemplo a ser deixado para as crianças. Copie o parágrafo que expõe essa ideia.
Enfim: que legado deixamos para as crianças? Primeiro, vem o legado
pessoal: quem somos, quem podemos ser, quem poderíamos nos tornar, para que
elas tenham um mínimo de confiança, um mínimo de amor por si próprias, um
mínimo de otimismo para poder enfrentar a dura vida.
7. Qual é a “conversa” que o texto fez (e ainda faz) com você? Que posição você assume diante dessa conversa?
Resposta pessoal.
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