Romance: NOITE DOS CAPITÃES DA AREIA – Fragmento
Jorge Amado
A grande noite de paz da Bahia veio do
cais, envolveu os saveiros, o forte, o quebra-mar, se estendeu sobre as
ladeiras e as torres das igrejas. Os sinos já não tocam as ave-marias que as
seis horas há muito que passaram. E o céu está cheio de estrelas, se bem a lua
não tenha surgido nesta noite clara. O trapiche se destaca na brancura do
areal, que conserva as marcas dos passos dos Capitães da Areia, que já se recolheram.
Ao longe, a fraca luz da lanterna da Porta do Mar, botequim de marítimos,
parece agonizar. Passa um vento frio que levanta a areia e torna difíceis os
passos do negro João Grande, que se recolhe. Vai curvado pelo vento como a vela
de um barco. É alto, o mais alto do
bando, e o mais forte também, negro de carapinha baixa e músculos retesados,
embora tenha apenas treze anos, dos quais quatro passados na mais absoluta
liberdade, correndo as ruas da Bahia com os Capitães da Areia. Desde aquela
tarde em que seu pai, um carroceiro gigantesco, foi pegado por um caminhão
quando tentava desviar o cavalo para um lado da rua, João Grande não voltou à
pequena casa do morro. Na sua frente estava a cidade misteriosa, e ele partiu
para conquistá-la. A cidade da Bahia, negra e religiosa, é quase tão misteriosa
como o verde mar. Por isso João Grande não voltou mais. Engajou com nove anos
nos Capitães da Areia, quando o Caboclo ainda era o chefe e o grupo pouco
conhecido, pois o Caboclo não gostava de se arriscar. Cedo João Grande se fez
um dos chefes e nunca deixou de ser convidado para as reuniões que os maiorais
faziam para planejar os furtos. Não que fosse um bom organizador de assaltos,
uma inteligência viva. Ao contrário, doía-lhe a cabeça se tinha que pensar. Ficava
com os olhos ardendo, como ficava também quando via alguém fazendo maldade com
os menores. Então seus músculos se retesavam e estava disposto a qualquer
briga. Mas a sua enorme força muscular o fizera temido. O Sem-Pernas dizia
dele:
— Este negro é burro mas é uma prensa…
E os menores, aqueles pequeninos que
chegavam para o grupo cheios de receio tinham nele o mais decidido protetor.
Pedro, o chefe, também gostava de ouvi-lo. E João Grande bem sabia que não era
por causa da sua força que tinha a amizade do Bala. Pedro achava que o negro
era bom e não se cansava de dizer:
— Tu é bom, Grande. Tu é melhor que a
gente. Gosto de você — e batia pancadinhas na perna do negro, que ficava
encabulado.
João Grande vem vindo para o trapiche.
O vento quer impedir seus passos e ele se curva todo, resistindo contra o vento
que levanta a areia. Ele foi à Porta do Mar beber um trago de cachaça com o
Querido-de-Deus, que chegou hoje dos mares do sul, de uma pescaria. O
Querido-de-Deus é o mais célebre capoeirista da cidade. Quem não o respeita na
Bahia? No jogo de capoeira de Angola ninguém pode se medir com o
Querido-de-Deus, nem mesmo Zé Moleque, que deixou fama no Rio de Janeiro. O
Querido-de-Deus contou as novidades e avisou que no dia seguinte apareceria no
trapiche para continuar as lições de capoeira que Pedro Bala, João Grande e o
Gato tomam. João Grande fuma um cigarro e anda para o trapiche. As marcas dos
seus grandes pés ficam na areia, mas o vento logo as destrói. O negro pensa que
nessa noite de tanto vento são perigosos os caminhos do mar.
João Grande passa por debaixo da ponte
— os pés afundam na areia — evitando tocar no corpo dos companheiros que já dor
mem. Penetra no trapiche. Espia um momento indeciso até que nota a luz da vela
do Professor. Lá está ele, no mais longínquo canto do casarão, lendo à luz de
uma vela. João Grande pensa que aquela luz ainda é menor e mais vacilante que a
da lanterna da Porta do Mar e que o Professor está comendo os olhos de tanto ler
aqueles livros de letra miúda. João Grande anda para onde está o Professor, se
bem durma sempre na porta do trapiche, como um cão de fila, o punhal próximo da
mão, para evitar alguma surpresa.
Anda entre os grupos que conversam,
entre as crianças que dormem, e chega para perto do Professor. Acocora-se junto
a ele e fica espiando a leitura atenta do outro.
João José, o Professor, desde o dia em
que furtara um livro de histórias numa estante de uma casa da Barra, se tornara
perito nestes furtos. Nunca, porém, vendia os livros, que ia empilhando num
canto do trapiche, sob tijolos, para que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre.
Gostava de saber coisas e era ele quem, muitas noites, contava aos outros
histórias de aventureiros, de homens do mar, de personagens heroicos e
lendários, histórias que faziam aqueles olhos vivos se espicharem para o mar ou
para as misteriosas ladeiras da cidade, numa ânsia de aventuras e de heroísmo.
João José era o único que lia correntemente entre eles e, no entanto, só
estivera na escola ano e meio. Mas o treino diário da leitura despertara
completamente sua imaginação e talvez fosse ele o único que tivesse uma certa
consciência do heroico das suas vidas.
Aquele saber, aquela vocação para
contar histórias, fizera-o respeitado entre os Capitães da Areia, se bem fosse
franzino, magro e triste, o cabelo moreno caindo sobre os olhos apertados de
míope. Apelidaram-no de Professor porque num livro furtado ele aprendera a
fazer mágicas com lenços e níqueis e também porque, contando aquelas histórias
que lia e muitas que inventava, fazia a grande e misteriosa mágica de os
transportar para mundos diversos, fazia com que os olhos vivos dos Capitães da
Areia brilhassem como só brilham as estrelas da noite da Bahia. Pedro Bala nada
resolvia sem o consultar e várias vezes foi a imaginação do Professor que criou
os melhores planos de roubo. Ninguém sabia, no entanto, que um dia, anos
passados, seria ele quem haveria de contar em quadros que assombrariam o país a
história daquelas vidas e muitas outras histórias de homens lutadores e
sofredores. Talvez só o soubesse Don’Aninha, a mãe do terreiro da Cruz de Opô
Afonjá, porque Don’Aninha sabe de tudo que Iá lhe diz através de um búzio nas
noites de temporal.
João Grande ficou muito tempo atento à
leitura. Para o negro aquelas letras nada diziam. O seu olhar ia do livro para
a luz oscilante da vela, e desta para o cabelo despenteado do Professor.
Terminou por se cansar e perguntou com sua voz cheia e quente:
— Bonita, Professor?
Professor desviou os olhos do livro,
bateu a mão descarnada no ombro do negro, seu mais ardente admirador:
— Uma história zorreta, seu Grande —
seus olhos brilhavam.
— De marinheiro?
— É de um negro assim como tu. Um negro
macho de verdade.
— Tu conta?
— Quando findar de ler eu conto. Tu vai
ver só que negro…
E volveu os olhos para as páginas do
livro. João Grande acendeu um cigarro barato, ofereceu outro em silêncio ao
Professor e ficou fumando de cócoras, como que guardando a leitura do outro.
Pelo trapiche ia um rumor de risadas, de conversas, de gritos. João Grande
distinguia bem a voz do Sem-Pernas, estrídula e fanhosa. O Sem-Pernas falava
alto, ria muito. Era o espião do grupo, aquele que sabia se meter na casa de
uma família uma semana, passando por um bom menino perdido dos pais na
imensidão agressiva da cidade. Coxo, o defeito físico valera-lhe o apelido. Mas
valia-lhe também a simpatia de quanta mãe de família o via, humilde e
tristonho, na sua porta, pedindo um pouco de comida e pousada por uma noite.
Agora, no meio do trapiche, o Sem-Pernas metia a ridículo o Gato, que perde todo
um dia para furtar um anelão cor de vinho, sem nenhum valor real, pedra falsa,
de falsa beleza também.
[...].
AMADO, Jorge. Capitães
da Areia. 3. ed. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 30-33.
Entendendo o romance:
01 – Qual é o ambiente
descrito no início do fragmento?
O ambiente
descrito no início do fragmento é a grande noite de paz da Bahia, com destaque
para o cais, os saveiros, o forte, o quebra-mar, as ladeiras e as torres das
igrejas. O trapiche é um ponto central da narrativa.
02 – Quem é João Grande e qual
é sua história?
João Grande é um
menino negro de treze anos, alto e forte, que vive em liberdade com os Capitães
da Areia desde que seu pai morreu em um acidente. Ele é um dos chefes do grupo,
respeitado por sua força, mas não é conhecido por sua inteligência.
03 – Qual é a relação de João
Grande com Pedro Bala?
Pedro Bala, o
chefe dos Capitães da Areia, tem uma relação de amizade e respeito com João
Grande. Pedro Bala aprecia a bondade de João Grande e frequentemente diz que
gosta dele por sua bondade, e não apenas por sua força.
04 – Quem é o Querido-de-Deus
e qual é seu papel na história?
O Querido-de-Deus
é um célebre capoeirista da Bahia, respeitado por todos. Ele ensina capoeira a
João Grande, Pedro Bala e o Gato, e aparece na história para trazer novidades e
continuar as lições de capoeira.
05 – Como é descrita a relação
de João Grande com o Professor?
João Grande
admira o Professor e frequentemente observa sua leitura. O Professor, por sua
vez, respeita João Grande e é chamado para contar histórias. João Grande é o
mais ardente admirador do Professor e se encanta com as histórias que ele
conta.
06 – Quem é o Professor e qual
é sua importância no grupo dos Capitães da Areia?
O Professor, cujo nome é João José, é um membro dos Capitães
da Areia que lê e conta histórias para o grupo. Ele é respeitado por seu
conhecimento e imaginação, e frequentemente ajuda a criar planos de roubo. É o
único que lê correntemente entre eles, apesar de ter estudado por apenas um ano
e meio.
07 – Qual é a principal
característica física e emocional de João Grande?
João Grande é
fisicamente alto e forte, com músculos retesados e treze anos de idade.
Emocionalmente, ele é descrito como um protetor dos menores e uma pessoa boa,
embora não seja muito inteligente.
08 – Como é a rotina noturna
no trapiche, segundo a narrativa?
A rotina noturna no trapiche inclui os
meninos se recolhendo para dormir, conversas e risadas entre os membros do grupo.
O Professor fica lendo à luz de uma vela, e João Grande, embora durma perto da
porta, frequentemente vai observar o Professor lendo.
09 – Quem é o Sem-Pernas e
qual é seu papel no grupo?
Sem-Pernas é um
menino coxo, conhecido por ser o espião do grupo. Ele tem a habilidade de se
infiltrar nas casas das famílias, passando-se por um bom menino perdido. No
trapiche, ele é conhecido por suas brincadeiras e conversas altas.
10 – Qual é a importância das
histórias contadas pelo Professor para o grupo?
As histórias contadas pelo Professor são importantes porque
transportam os Capitães da Areia para mundos diversos, despertando a imaginação
e o desejo de aventuras e heroísmo nos meninos. As histórias também ajudam a
fortalecer o senso de comunidade e camaradagem entre eles.
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