Conto: Do outro lado da janela – Fragmento
André Carneiro
Ele notava o defeito bem tarde, quando
já passava horas vendo os programas. Era uma pequena mancha que mudava de lugar
e às vezes desaparecia, para voltar depois. A televisão era nova, não devia dar
defeito.
Mandou consertá-la. No primeiro dia foi
tudo bem. No segundo, lá estava a mancha de novo. Nos programas da tarde a
imagem era boa. Alguém o lembrou de que talvez fossem os olhos cansados… Não
eram. Sentia-os perfeitos, mesmo quando passava da meia-noite. [...]
[...]
Bem tarde da noite, ela parecia bem
maior e mais forte. Ele ficava no sofá, quase deitado, olhando fixo, horas
seguidas. Um dia, surpreendeu-se com o vídeo luminoso e branco, o zumbido do
aparelho ligado, sem nenhuma imagem. Eram cinco horas da manhã, a estação tinha
encerrado a transmissão. Ficou olhando por algum tempo ainda o retângulo
mágico, depois deitou-se e custou a dormir.
Ficou algumas horas na cama,
levantou-se e ligou o aparelho.
A mancha estava lá. Agora bem maior.
Quando se deu conta que a mancha já
ocupava metade da imagem, percebeu que só via também os programas pela metade.
A mancha crescia do centro para as bordas. Fazia estas reflexões para si
próprio, de maneira fria e estatística, pois também ele aumentava as horas em
que permanecia em frente ao aparelho, prestando a maior atenção. A mancha não
era um borrão. Era uma cena, personagens, gestos, que ele identificava como em
um sonho.
Só saia do quarto para pegar algo, um
sanduíche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa. [...] Não se
esforçava para entender nem reconhecer o que via. Era algo que o fascinava e o
prendia, que talvez acabasse saindo do aparelho e invadindo toda a casa. Sim,
havia personagens na mancha, e um, mais especial, que o emocionava, não sabia
por quê.
[...] O personagem principal foi
adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua
maneira de andar, sua fisionomia marcada eram impressionantes.
Com lágrimas
nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio,
circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu.
Ficou na frente da TV até o dia amanhecer. Não a desligou, também. Sem
quase tirar os olhos dela, bebeu apenas um copo de leite. Pestanejava e olhava
o aparelho zumbindo, e de repente teve uma sensação estranha. O quarto parecia
menor, mais quente, as paredes não eram mais paredes, mas tinham encaixes,
fios, eram curvas, eram… o aparelho de televisão em sua frente parecia imenso
agora, mas… não era um aparelho, era como se fosse uma janela retangular,
enorme, do tamanho da parede do quarto. Do outro lado da janela, não, não era
janela, era o próprio vídeo que ele reconhecia, as paredes do quarto eram de
vidro. Ele estava dentro do tubo, dentro do próprio aparelho, e lá fora,
sentado em uma cadeira, com os olhos fixos em sua direção, um homem cansado,
mas atento. Podia reconhecê-lo facilmente. Era ele próprio.
Fonte: CARNEIRO, André. Do outro lado da janela. In: TAVARES,
Braulio (Org). Páginas do futuro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011, p.
117-119.
Fonte: Maxi: Séries
Finais. Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas
de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 47-49.
Entendendo o conto:
01 – Conte resumidamente o que
acontece com o personagem do conto de André Carneiro.
Resposta pessoal
do aluno.
02 – Comente com os colegas qual
é o tipo de narrador escolhido pelo autor nesse conto.
Narrador
onisciente com foco em 3ª pessoa.
03 – Você notou aspectos do
gênero dramático no conto? Há características desse gênero nele?
Não há
dramatização no sentido de o personagem assumir a fala. Apenas vemos seus
movimentos pelo controle do narrador a partir do uso dos verbos: circulando,
saía correndo, pegava, etc.
04 – Leia este trecho.
“Só saía do quarto para pegar algo,
um sanduiche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa.” Para transformar
esse trecho da narrativa em uma dramatização, vamos fazer um teste? Localize os
verbos e, em seguida, reescreva o período trocando a 3ª pessoa, “ele”, para a
1ª pessoa, “eu”, e passe os verbos do tempo passado para o presente do
indicativo, fazendo apenas ajustes necessários.
Eu só saio do
quarto para pegar algo, um sanduíche, e volto correndo com medo de perder
alguma coisa.
05 – Veja outro trecho do
conto e siga as orientações do professor(a).
“Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que
aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a
sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia
amanhecer.”
a) Escreva uma fala para o personagem usando apenas a parte do texto que está destacada. Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia:
Sou eu esse personagem, circulando nesse
retângulo, vivendo aqui a minha vida. Nesse dia, não dormi. Fiquei na frente da
TV até o dia amanhecer.
b) Agora, discuta com os colegas e o professor(a) quais são as diferenças entre a narrativa sem dramatização e com dramatização.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Com a dramatização, o
personagem parece mais comovente.
c) O autor evitou aspectos dramáticos na escrita da história? Explique.
O autor evitou a comoção. Esse é um fato. A razão não pode ser dada.
Mas o efeito é que o drama personaliza, comove, aproxima. Quando um escritor
não está interessado nisso, ele “despersonaliza” ao máximo a história, para que
seja notada.
06 – Leia o trecho a seguir:
“O personagem principal foi adquirindo contornos
mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar,
sua fisionomia marcada, eram impressionantes.”
a) Você concorda que nesse conto não há história nem enredo?
Resposta pessoal do aluno.
b) O que pode ter levado o narrador a dizer que não havia enredo ou história no que o personagem assistia?
O personagem que assiste não tem uma biografia, não tem lembranças
do passado, não tem nome. São esses elementos que produzem a história. Como o
personagem assistia a si mesmo, era como se estivesse olhando um espelho,
sentado, sem nome, sem enredo, sem história.
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