sexta-feira, 28 de junho de 2024

CONTO: DO OUTRO LADO DA JANELA - FRAGMENTO - ANDRÉ CARNEIRO - COM GABARITO

 Conto: Do outro lado da janela – Fragmento

              André Carneiro

        Ele notava o defeito bem tarde, quando já passava horas vendo os programas. Era uma pequena mancha que mudava de lugar e às vezes desaparecia, para voltar depois. A televisão era nova, não devia dar defeito.

        Mandou consertá-la. No primeiro dia foi tudo bem. No segundo, lá estava a mancha de novo. Nos programas da tarde a imagem era boa. Alguém o lembrou de que talvez fossem os olhos cansados… Não eram. Sentia-os perfeitos, mesmo quando passava da meia-noite. [...]

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhBOXpLtIpu64bkASGl9oY96NqJFs4pxZzC5DgCT8ZdCiShqdWNxLQm6c7CUHY1y1fU_SPZAP6kgcl-t3QEt6ycX_M-5CLJeGg6Qh-brlIcrBeFFVzy18CGqRQfMN5oNRUvU0zAxvxfBlZOMBbY47_RhybVCVlnw_yAh20RkOdKVK-xYCRDK2O9ZytmCGo/s320/tv.jpg


        [...]

        Bem tarde da noite, ela parecia bem maior e mais forte. Ele ficava no sofá, quase deitado, olhando fixo, horas seguidas. Um dia, surpreendeu-se com o vídeo luminoso e branco, o zumbido do aparelho ligado, sem nenhuma imagem. Eram cinco horas da manhã, a estação tinha encerrado a transmissão. Ficou olhando por algum tempo ainda o retângulo mágico, depois deitou-se e custou a dormir.

        Ficou algumas horas na cama, levantou-se e ligou o aparelho.

        A mancha estava lá. Agora bem maior.

        Quando se deu conta que a mancha já ocupava metade da imagem, percebeu que só via também os programas pela metade. A mancha crescia do centro para as bordas. Fazia estas reflexões para si próprio, de maneira fria e estatística, pois também ele aumentava as horas em que permanecia em frente ao aparelho, prestando a maior atenção. A mancha não era um borrão. Era uma cena, personagens, gestos, que ele identificava como em um sonho.

        Só saia do quarto para pegar algo, um sanduíche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa. [...] Não se esforçava para entender nem reconhecer o que via. Era algo que o fascinava e o prendia, que talvez acabasse saindo do aparelho e invadindo toda a casa. Sim, havia personagens na mancha, e um, mais especial, que o emocionava, não sabia por quê.

        [...] O personagem principal foi adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar, sua fisionomia marcada eram impressionantes.

        Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia amanhecer. Não a desligou, também. Sem quase tirar os olhos dela, bebeu apenas um copo de leite. Pestanejava e olhava o aparelho zumbindo, e de repente teve uma sensação estranha. O quarto parecia menor, mais quente, as paredes não eram mais paredes, mas tinham encaixes, fios, eram curvas, eram… o aparelho de televisão em sua frente parecia imenso agora, mas… não era um aparelho, era como se fosse uma janela retangular, enorme, do tamanho da parede do quarto. Do outro lado da janela, não, não era janela, era o próprio vídeo que ele reconhecia, as paredes do quarto eram de vidro. Ele estava dentro do tubo, dentro do próprio aparelho, e lá fora, sentado em uma cadeira, com os olhos fixos em sua direção, um homem cansado, mas atento. Podia reconhecê-lo facilmente. Era ele próprio.

Fonte: CARNEIRO, André. Do outro lado da janela. In: TAVARES, Braulio (Org). Páginas do futuro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011, p. 117-119.

Fonte: Maxi: Séries Finais. Caderno 1. Língua Portuguesa – 7º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 47-49.

Entendendo o conto:

01 – Conte resumidamente o que acontece com o personagem do conto de André Carneiro.

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Comente com os colegas qual é o tipo de narrador escolhido pelo autor nesse conto.

      Narrador onisciente com foco em 3ª pessoa.

03 – Você notou aspectos do gênero dramático no conto? Há características desse gênero nele?

      Não há dramatização no sentido de o personagem assumir a fala. Apenas vemos seus movimentos pelo controle do narrador a partir do uso dos verbos: circulando, saía correndo, pegava, etc.

04 – Leia este trecho.

        “Só saía do quarto para pegar algo, um sanduiche, voltava correndo com medo de perder alguma coisa.” Para transformar esse trecho da narrativa em uma dramatização, vamos fazer um teste? Localize os verbos e, em seguida, reescreva o período trocando a 3ª pessoa, “ele”, para a 1ª pessoa, “eu”, e passe os verbos do tempo passado para o presente do indicativo, fazendo apenas ajustes necessários.

      Eu só saio do quarto para pegar algo, um sanduíche, e volto correndo com medo de perder alguma coisa.

05 – Veja outro trecho do conto e siga as orientações do professor(a).

        Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia, que aquele personagem era ele próprio, circulando naquele retângulo, vivendo ali a sua vida. Nesse dia, não dormiu. Ficou na frente da TV até o dia amanhecer.”

a)   Escreva uma fala para o personagem usando apenas a parte do texto que está destacada. Com lágrimas nos olhos, ele percebeu, um dia:

Sou eu esse personagem, circulando nesse retângulo, vivendo aqui a minha vida. Nesse dia, não dormi. Fiquei na frente da TV até o dia amanhecer.

b)   Agora, discuta com os colegas e o professor(a) quais são as diferenças entre a narrativa sem dramatização e com dramatização.

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Com a dramatização, o personagem parece mais comovente.

c)   O autor evitou aspectos dramáticos na escrita da história? Explique.

O autor evitou a comoção. Esse é um fato. A razão não pode ser dada. Mas o efeito é que o drama personaliza, comove, aproxima. Quando um escritor não está interessado nisso, ele “despersonaliza” ao máximo a história, para que seja notada.

06 – Leia o trecho a seguir:

        O personagem principal foi adquirindo contornos mais precisos e, embora não houvesse enredo ou história, sua maneira de andar, sua fisionomia marcada, eram impressionantes.”

a)   Você concorda que nesse conto não há história nem enredo?

Resposta pessoal do aluno.

b)   O que pode ter levado o narrador a dizer que não havia enredo ou história no que o personagem assistia?

O personagem que assiste não tem uma biografia, não tem lembranças do passado, não tem nome. São esses elementos que produzem a história. Como o personagem assistia a si mesmo, era como se estivesse olhando um espelho, sentado, sem nome, sem enredo, sem história.

 

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