Crônica: DEBAIXO DA PONTE
Carlos Drummond de Andrade Moravam debaixo da ponte. Oficialmente,
não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel,
imposto predial, taxa de condomínio; a ponte é de todos, na parte de cima; de
ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás
não consumiam. Não reclamavam contra falta d’água, raramente observada por
baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer
parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas
vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam
dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas
da ponte.
À tarde surgiu precisamente um amigo
que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é
lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho.
Há bancos confortáveis nos jardins,
muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o
mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua.
O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e
trazer-lhes uma grande posta de carne.
Nem todos os dias se pega uma posta de
carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer
dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo
da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo
rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro,
supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e
olfativa ciência.
Comê-la crua ou sem tempero não teria o
mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um
canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas
pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para
debaixo da ponte. Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte
a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a
sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois
não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do
esquecimento), quando começaram a sentir dores.
Dores que foram aumentando, mas podiam
ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se
alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois
morreram logo, o terceiro agoniza no hospital.
Dizem uns que morreram da carne, dizem
outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Debaixo
da ponte. In: Obra Completa. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967, p.
896-897.
Entendendo a crônica:
01 – “A ponte é de todos, na
parte de cima, de ninguém, na parte de baixo”. Apesar de o autor afirmar que a
parte de baixo não pertence a ninguém, você sabe que muitos a habitam por não
ter onde morar. Em sua opinião, o que deveria ser feito, principalmente por
parte dos governantes, para que o acesso à moradia fosse algo conquistado por
todas as pessoas?
Resposta pessoal
do aluno.
02 – No primeiro parágrafo,
ao introduzir o cenário, o narrador já anuncia o envenenamento das personagens
quando diz:
a)
Ninguém lhes cobrava aluguel.
b)
Não pagavam conta de luz e gás.
c)
Não reclamavam contra falta d’água.
d)
Problema de lixo não tinham.
03 – O narrador, ao não
atribuir nomes próprios as personagens, busca apresenta-los como:
a)
Desiludidos da sociedade urbana.
b)
Excluídos dos direitos de
cidadania.
c)
Representantes de grupos sociais diferentes.
d)
Tipos sociais de prestígio.
04 – Ao terminar o texto com
a afirmação “Há duas vagas debaixo da ponte”, o narrador sugere que a tragédia
será:
a)
Repetida.
b)
Transformada.
c)
Revertida.
d)
Averiguada.
05 – O trecho em que aparece
o primeiro fato que gera o conflito da narrativa é:
a)
À tarde, surgiu precisamente um
amigo (...)
b)
E iriam aproveitar o resto do dia dormindo
(...)
c)
Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal.
d)
E a lata foi trazida para debaixo da ponte.
06 – A perspectiva de quem
narra é marcada por:
a)
Satisfação.
b)
Espanto.
c)
Naturalidade.
d)
Horror.
07 – São títulos plausíveis
para esse texto, EXCETO:
a)
A fome.
b)
Tragédia urbana.
c)
Debaixo da ponte.
d)
Nem só de pão vive o homem.
08 – Outro trecho, que
também nos faz refletir bastante, diz o seguinte: “Viviam debaixo da ponte,
podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades
internas da ponte.” Você já parou para pensar que a sua situação é diferente
dos personagens da crônica, pois realmente pode dar endereço a alguém, sabe por
quê? Porque você possui um lar, uma
moradia. Dessa forma, como se sente?
Resposta pessoal do aluno.
09 – Quando o autor afirma
que “até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua”,
ele está reafirmando que o ar é essencial à nossa sobrevivência, por isso
devemos adotar atitudes no sentido de preservá-lo, conservá-lo em toda a sua
totalidade. Contudo, não é exatamente isso que presenciamos, pois a poluição
se tornou mais um entre os graves problemas ambientais. O que você pensa
sobre isso?
Resposta pessoal
do aluno.
10 – Há ironia em todos os
trechos abaixo transcritos, EXCETO:
a)
Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse
endereço a amigos, recebe-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da
ponte.
b)
Há bancos confortáveis nos jardins, muito
disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato.
c)
Debaixo da ponte os três prepararam
comida. Debaixo da ponte a comeram.
d)
Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto
predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém,
na parte de baixo.
11 – A noção de indigência
está presente em todos os trechos transcritos, EXCETO:
a)
Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo
da ponte a comeram.
b)
Iriam aproveitar o resto do dia
dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer
complementar do esquecimento).
c)
Não sendo operação diária, cada um saboreava
duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne.
d)
Dores que foram aumentando, mas podiam ser
atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se
alimentando sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento.
12 – “Fora encontrada no
vazadouro, supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, da longa e olfativa
ciência”. O pronome sublinhado no trecho acima refere-se a:
a)
Vazadouro.
b)
Supermercado.
c)
Frequentar o vazadouro.
d)
Frequentar supermercados.
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