Poema: O Relógio
João Cabral de Melo Neto
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.
Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.
Uma vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;
e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade
que continua cantando
se deixa de ouvi-lo a gente:
como a gente às vezes canta
para sentir-se existente.
O que eles cantam, se pássaros,
é diferente de todos:
cantam numa linha baixa,
com voz de pássaro rouco;
desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;
têm sempre o mesmo compasso
horizontal e monótono,
e nunca, em nenhum momento,
variam de repertório:
dir-se-ia que não importa
a nenhum ser escutado.
Assim, que não são artistas
nem artesãos, mas operários
para quem tudo o que cantam
é simplesmente trabalho,
trabalho rotina, em série,
impessoal, não assinado,
de operário que executa
seu martelo regular
proibido (ou sem querer)
do mínimo variar.
A mão daquele martelo
nunca muda de compasso.
Mas tão igual sem fadiga,
mal deve ser de operário;
ela é por demais precisa
para não ser mão de máquina,
a máquina independente
de operação operária.
De máquina, mas movida
por uma força qualquer
que a move passando nela,
regular, sem decrescer:
quem sabe se algum monjolo
ou antiga roda de água
que vai rodando, passiva,
graçar a um fluido que a passa;
que fluido é ninguém vê:
da água não mostra os senões:
além de igual, é contínuo,
sem marés, sem estações.
E porque tampouco cabe,
por isso, pensar que é o vento,
há de ser um outro fluido
que a move: quem sabe, o tempo.
Quando por algum motivo
a roda de água se rompe,
outra máquina se escuta:
agora, de dentro do homem;
outra máquina de dentro,
imediata, a reveza,
soando nas veias, no fundo
de poça no corpo, imersa.
Então se sente que o som
da máquina, ora interior,
nada possui de passivo,
de roda de água: é motor;
se descobre nele o afogo
de quem, ao fazer, se esforça,
e que ele, dentro, afinal,
revela vontade própria,
incapaz, agora, dentro,
de ainda disfarçar que nasce
daquela bomba motor
(coração, noutra linguagem)
que, sem nenhum coração,
vive a esgotar, gota a gota,
o que o homem, de reserva,
possa ter na íntima poça.
João
Cabral de Melo Neto
Entendendo o poema:
01 – Que temática é abordada
no poema?
A temática é o tempo.
02 – Qual é a primeira
metáfora escolhida para o tempo nesse poema?
É “bicho”, sendo gradativamente amenizada
no decorrer das estrofes.
03 – Que mudança sofre o
“bicho” no decorrer do poema?
Passando de um “bicho” de jaula a um
pássaro em uma gaiola.
04 – Em relação ao texto,
julgue os itens que se seguem:
(F) O entendimento do poema é
facilitado pelo fato de o título permitir que o sentido metafórico da terceira
estrofe se associe à ideia de relógio.
(F) A utilização de estrofes que são
quartetos e de versos de sete sílabas (redondilha maior) comprova que o
Modernismo desprezou totalmente as formas tradicionais de construção de poemas.
(V) A noção de trabalho no texto
apresenta as oposições: artistas e artesãos versus operários; produção
variada, criativa versus produção em série, rotineira; a produção
pessoal versus produção impessoal.
05 – Ainda em relação ao
texto, julgue os itens seguintes:
(F) No primeiro verso do poema, a
contagem das sílabas métricas exige a elisão de uma das vogais idênticas em “do
homem” e a desconsideração da última sílaba gramatical do verso, por ser átona.
(F) A ocorrência próxima dos
substantivos “jaula”, “jaulas”, “gaiolas”, “gaiola” e “pássaro” e das palavras
com o mesmo radical “cantor”, “canto”, “cantando”, intensifica a sonoridade, a
coesão e também a convergência e a densidade semântica do texto.
(V) Na interpretação de poemas, deve
existir sempre uma margem de flexibilidade em consequência da multiplicidade de
sentidos. Assim, na sexta estrofe, as duas ocorrências da expressão “a gente”
podem ser interpretadas como nós (eu lírico e leitores) ou como as
pessoas, o povo.
06 – Na tentativa de
descrever o que há dentro dessas caixas de vidro, como o poema se inicia?
Inicia-se investigando, buscando
respostas diante da sua dúvida: “Se são jaulas não é certo”.
07 – Copie os versos que
descrevem a passagem de jaula resistente que detém um ser feroz, para ela passa
à delicadeza de uma gaiola que guarda um pássaro, de “alada palpitação”.
“Uma
vezes, tais gaiolas
vão
penduradas nos muros;
outras
vezes, mais privadas,
vão
num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é
alada a palpitação,
a
saltação que ela guarda.”
08 – A que se assemelha a imagem dos ponteiros do
relógio?
São semelhantes
às asas de um pássaro, remete-nos ao tempo-pássaro, ao desejo da ave de voar,
de ganhar o céu e a liberdade, mas que impossibilitada de fazê-lo, tem de
contentar-se com o curto bater de suas asas dentro do espaço limitado da
gaiola.
09 – O eu lírico através do
poema fala da diferença entre o operário e os artesões e artistas. Explique.
Ele diz que a
figura do operário veste bem o ponteiro do relógio que trabalha sem parar, no
mesmo ritmo, mecanicamente e diferentemente dos artesãos e artistas que fogem
do compasso rotineiro do tempo, procurando evadir-se na arte, o trabalho dos
ponteiros-operários.
Tempo de máquina não tem vento.
ResponderExcluirVento de máquina é coração de gente.