Crônica: O Marajá
Luís Fernando Veríssimo
A família toda ria de dona Morgadinha e dizia que ela estava sempre esperando a visita do Marajá de Jaipur. Dona Morgadinha não podia ver uma coisa fora do lugar, uma ponta de poeira em seus móveis ou uma mancha em seus vidros e cristais. Gemia baixinho quando alguém esquecia um sapato no corredor, uma toalha no quarto ou - ai, ai, ai - uma almofada torta no sofá da sala.
Baixinha, resoluta, percorria a casa
com uma flanela na mão, o olho vivo contra qualquer incursão do pó, da cinza,
do inimigo nos seus domínios. Dona Morgadinha era uma alma simples. Não lia
jornal, não lia nada. Achava que jornal sujava os dedos e livro juntava mofo e
bichos. O marido de dona Morgadinha, que ela amava com devoção apesar do seu
hábito de limpar a orelha com uma tampa de caneta Bic, estabelecera um limite
para sua compulsão de limpeza. Ela não podia entrar na sua biblioteca. Sua
jurisdição acabava na porta. Ali dentro só ele podia limpar, e nunca limpava.
E, nas raras vezes em que dona Morgadinha chegava à porta do escritório
proibido para falar com o marido, este fazia questão de desafiá-la. Botava os
pés em cima dos móveis. Atirava os sapatos longe. Uma vez chegara a tirar uma
meia e jogar em cima da lâmpada só para ver a cara da mulher. Sacudia a ponta
do charuto sobre um cinzeiro cheio e errava deliberadamente o alvo. Dona
Morgadinha então fechava os olhos e, incapaz de se controlar, lustrava com a
sua flanela o trinco da porta. O marido de dona Morgadinha contava, entre
divertido e horrorizado, da vez que levara a mulher a uma recepção diplomática.
- Percorremos a fila de
recepção, e quando vi a Morgadinha estava sendo apresentada ao embaixador. O
embaixador se curvou, fez uma reverência, e de repente a Morgadinha levou a mão
e tirou um fio de cabelo da lapela do embaixador!
- Não pude resistir -
explicava dona Morgadinha, séria, entre as risadas dos outros.
- E ainda deu uma espanada,
com a mão, no seu ombro.
- Caspa - suspirava dona
Morgadinha, desiludida com o corpo diplomático. Quis o destino que os filhos de
dona Morgadinha puxassem pelo pai no relaxamento e na irreverência. Todos os
três.
- Meu filho, aí não é lugar de
deixar os livros da escola.
- Qual é, mãe? Está esperando
o Marajá?
- Minha filha, a sala não é
lugar de cortar as unhas.
- Ih, hoje é dia do Marajá
chegar.
- Oscar, na mesa?!
- Quando o Marajá vier
almoçar, eu prometo que não faço isto. Certa manhã bateram à porta. Dona Morgadinha,
que comandava a faxina diária da casa com severidade militar, fez sinal para as
empregadas de que ela mesma iria abrir. Na porta estava um homem moreno, de
terno, gravata - e turbante! Dona Morgadinha, que uma vez brigara com o
carteiro porque a sua calça estava sem friso, olhou o homem de alto a baixo e
não encontrou o que dizer.- Dona Morgadinha?
- Sim.
- Meu amo manda o seu cartão e
pede permissão para vir visitá-la às cinco. Dona Morgadinha olhou o cartão que
o homem lhe entregara. Ali estava, com todas as letras douradas, "Marajá
de Jaipur". Não conseguiu falar. Fez que sim com a cabeça, desconcertada.
O homem fez uma mesura e desapareceu antes que dona Morgadinha recuperasse a
fala. As empregadas receberam ordens de recomeçar a faxina, do princípio. Dona
Morgadinha anunciou para a família que naquele dia não haveria almoço. Não
queria cheiro de comida na casa. E era bom todos saírem para a rua até a noite,
para não haver perigo de deslocarem as almofadas. Pai e filhos se entreolharam
e concordaram:
- O Marajá vem hoje. Dona
Morgadinha apenas sorriu. E estava com o mesmo sorriso quando o marido e os
filhos chegaram em casa à noite, depois de comerem um cheeseburger na esquina,
fazendo bastante barulho e manchando a roupa. Dona Morgadinha não contou para
ninguém da visita do Marajá. Do seu terno branco, do rubi no seu turbante, da
sua barba grisalha e distinta. E da conversa que tinham tido, das cinco às
sete, sozinhos, entre goles de chá e mordiscadas em sanduíches de aspargo,
sobre coisas distantes, sobre o linho e o mármore e a purificação dos
espíritos. Naquela noite o marido de dona Morgadinha surpreendeu a mulher com o
olhar perdido na frente do espelho. Ela estava tão distraída que foi para a
cama sem escovar as unhas, usar o colírio e rearrumar os armários, como fazia
sempre. O Marajá combinou com dona Morgadinha que voltaria dois dias depois, à
mesma hora. Estes dois dias dona Morgadinha passou sentada, sem notar nada,
esquecida até da sua flanela. O filho mais velho chegou a trazer um vira-lata
da rua para fazer xixi no pé da poltrona, mas não conseguiu despertar dona
Morgadinha do seu devaneio. Depois de duas semanas de visitas constantes do
Marajá e do mais absoluto descaso de dona Morgadinha pela higiene da família e
da casa, o marido resolveu que já era demais. Procurou o seu amigo Turcão, que
era árabe e tinha cara de hindu e que ele contratara para se fingir de Marajá e
fazer uma brincadeira com a mulher, e disse que era hora de acabar com a
brincadeira. Turcão, meio sem jeito, disse que com ele tudo bem, mas dona
Morgadinha...
- O quê? - quis saber o
marido, desconfiado...
- Ela levou a sério. Está
falando até em fugir comigo e ir morar no mew-palácio em Jaipur. Negócio chato.
Acho melhor contar a verdade para ela e... Mas o marido de dona Morgadinha
percebeu o que fizera. E percebeu que com as almas simples não se brinca. Se
descobrisse que fora enganada, dona Morgadinha era capaz de se matar, engolindo
detergente. Não, não. Ela não merecia aquilo. Compungido, o marido pediu ao
Turcão que continuasse a visitar a mulher. Mas tentasse desiludi-la. Dando um
arroto. Sei lá.
Entendendo o texto
01. Qual é
o comportamento obsessivo de dona Morgadinha descrito na crônica?
a) Ela coleciona selos raros.
b) Ela está sempre esperando uma
visita ao Marajá de Jaipur. c) Ela gosta de colecionar livros
antigos.
d) Ela é uma aficionada por jardinagem.
02. Por que o marido da dona
Morgadinha distribuiu um limite para sua compulsão de limpeza?
a) Ele não suportava a obsessão da
esposa por limpeza.
b) Ele queria preservar sua biblioteca
pessoal.
c) Ele gostava de provocar a esposa
desafiando suas regras.
d)
Ele era extremamente organizado e não precisava de interferências.
03. O que aconteceu na recepção
diplomática mencionada na crônica?
a) Dona Morgadinha se entendeu muito
bem com o embaixador.
b) O marido da dona Morgadinha fez uma
apresentação formal.
c) Dona Morgadinha tirou um fio de
cabelo da lapela do embaixador.
d) O marido de dona Morgadinha
desafiou as regras da etiqueta.
04.
Como os filhos da dona Morgadinha se comportam em relação às suas
obsessões por limpeza?
a) Eles herdam a compulsão da mãe.
b) Eles a provocam e desafiam suas
regras.
c) Eles não se importam com a limpeza.
d) Eles são tão obsessivos quanto ela.
05. O
que dona Morgadinha faz quando descobre uma visita ao Marajá?
a) Ela pede para a família sair de casa.
b) Ela cancela o almoço e proíbe cheiros
de comida em casa.
c)
Ela prepara uma recepção especial para o Marajá.
d) Ela decidiu se mudar para Jaipur.
06. O
que o marido de dona Morgadinha resolve fazer para acabar com a brincadeira do
Marajá?
a) Ele contratou um detetive para seguir
dona Morgadinha.
b) Ele pede a um amigo para se passar
pelo verdadeiro Marajá.
c) Ele conta a verdade para dona
Morgadinha e enfrentará as consequências.
d) Ele continua a brincadeira, mas de uma
maneira diferente.
07. Como dona Morgadinha reage quando descobre
a verdade sobre o Marajá?
a) Ela fica aliviada e volta à sua
rotina de limpeza.
b) Ela fica furiosa e decide se
divorciar do marido.
c) Ela leva a
sério e planeja fugir com o falso Marajá.
d) Ela se recusa a acreditar na
verdade.
08. Qual é a ocorrência dos filhos de dona
Morgadinha diante da situação com o Marajá?
a) Eles apoiam o pai na brincadeira.
b) Eles ficam chateados com a mentira.
c) Eles decidem contar a verdade para a
mãe.
d) Eles se juntam à brincadeira e fingem
ser súditos do Marajá.
09. O que dona Morgadinha faz durante os
dois dias em que o Marajá não visita?
a) Ela continua sua rotina de limpeza
normalmente.
b) Ela passou sentada, esquecida de tudo.
c) Ela organiza uma recepção surpresa
para o Marajá.
d) Ela planeja uma fuga para Jaipur.
10. Como o marido de dona
Morgadinha decidiu lidar com a situação ao perceber que ela levou a sério a
brincadeira do Marajá?
a)
Ele decide contar a verdade imediatamente.
b) Ele pede desculpas e tenta reclamar a
situação.
c) Ele continua a brincadeira para evitar
magoar dona Morgadinha.
d) Ele consultou um especialista em
relacionamentos para orientação.
Poderia me indicar, por gentileza, em qual parte do texto encontro as respostas para as questões 07 e 08? Pois não é informado à dona Morgadinha e aos filhos que o Marajá é falso. E sendo assim, o certo da questão 06 não 06 não seria a opção d) Ele continua a brincadeira, mas de uma maneira diferente.?
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