Conto(Fragmento): O homem que só tinha certezas
Adriana Falcão
Nem o homem feliz de Maiakovsky nem o
homem liberto de Paulo Mendes Campos, resolvi imaginar outra improbabilidade.
Digamos que aparecesse agora, justo aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, mais
exatamente, bem aí na sua frente, um homem que só tivesse certezas.
O homem que só tinha certezas quase
nunca usava ponto de interrogação, e em seu vocabulário não constavam as
expressões: talvez, quiçá, quem sabe, porventura.
Parece que foi de nascença. Ele já
teria vindo ao mundo assim, com todas as certezas junto, pulou a fase dos por
quês e nunca soube o que era curiosidade na vida. Na escola, era uma sensação.
Mas não ligava muito pra isso não. E cresceu achando muito natural viver
derramando afirmações pela boca. Tinha resposta pra tudo, o homem que só tinha
certezas, mas o maior orgulho do homem eram as certezas mais duvidosas que ele
tinha. A certeza de que o mais fraco ia vencer, de que as coisas iam melhorar,
de que o desenganado ainda teria muitos anos pela frente.
A notícia espalhou-se rapidamente. Como
ele vivia no meio de pessoas, e pessoas vivem cheias de dúvidas, logo começaram
a pedir sua opinião para os mais diversos assuntos, os triviais e os de grande
importância, e ele, certo de que podia viver muito bem de suas certezas, virou
um consultor. Pendurou em sua porta uma placa onde estava escrito “Consultor de
tudo” e o negócio foi crescendo aos pouquinhos. Devido ao boca-a-boca favorável
de clientes e a um único anúncio no rádio, passou a atender, sem nenhum
exagero, milhares de pessoas por dia, até que limitou o número de consultas
diárias para quatrocentos e oitenta, um minuto e meio por pessoa, o que era
mais do que suficiente para uma resposta certa desde que a pergunta não fosse
muito longa.
Chegava gente do país inteiro e depois
de outros continentes, pessoas comuns, pessoas ilustres, todas elas indecisas,
mas cada pessoa só tinha direito a uma pergunta por consulta, o que as deixava
mais indecisas ainda. Certa vez uma moça chegou na dúvida se devia perguntar
primeiro sobre o amor ou o trabalho, no que o homem respondeu, sobre o amor, é
claro, senão você não vai conseguir trabalhar direito, e deu por encerrada a
consulta. O homem que só tinha certezas aconselhou um garoto tímido a tomar
quatro cervejas, encorajou um político receoso a aprovar um projeto
esquisitíssimo que se destinava a melhorar a vida dos homens, avisou a uma
senhora preocupada com os anos que no caso dela nada melhor do que beijos na
boca, desentorpeceu um rapaz doente de amor por uma mulher que gostava de
outro, convenceu o ministro da fazenda de que ou o dinheiro era pouco, ou eram
muitos os homens, ou ele estava louco, ou alguém tinha se enganado nas contas.
Não demorou muito para se tornar capa
de todas as revistas e personagem assíduo dos programas de TV. Para cada pergunta
havia uma só resposta certa e era essa que ele dava, invariavelmente,
exterminando aos pouquinhos todas as dúvidas que existiam, até que só restou
uma dúvida no mundo: será que ele não vai errar nunca? Mas ele nunca errava, e
já nem havia mais o que errar, uma vez que não havia mais dúvidas.
Num mundo que só tinha certezas, o
homem que só tinha certezas virou apenas mais um homem no mundo. Melhor assim,
ele pensava, ou melhor, tinha certeza.
Um dia aconteceu um imprevisto, e o
homem que só tinha certezas, quem diria, acordou apaixonado. Para se assegurar
de que aquela era a mulher certa para ele, formulou cento e vinte perguntas,
que ela respondeu sem vacilar, mandou fazer mapas do céu, exames de sangue,
contagem de triglicerídeos, planilhas complicadíssimas e finalmente apresentou
a moça à sua mãe e ao seu cachorro. Os dois se amaram noites adentro, foram a
Barcelona, tiraram fotos juntos, compraram álbuns, porta-retratos, garfos,
facas, um escorredor de pratos, tiveram filhos e tal, e, desde então, por
alguma razão desconhecida, o homem que só tinha certezas foi perdendo todas
elas, uma por uma. No início ainda tentou disfarçar, por via das dúvidas, quem
sabe era um mal passageiro? Mas as dúvidas multiplicavam-se como praga (dúvidas
se multiplicam?), espalharam-se pelo mundo, e agora, meu Deus? Deus existe?
Existe sim. Ou será que não? Ele não estava bem certo.
Adriana Falcão, em “O
doido da garrafa” (Ed. Planeta, 2003).
Entendendo o conto:
01 – Onde se passa a história
do conto?
A história se
passa no Rio de Janeiro, Brasil.
02 – Qual é a característica
mais marcante do homem que só tinha certezas?
A característica
mais marcante desse homem é que ele só tinha certezas, nunca usava pontos de
interrogação e não tinha dúvidas.
03 – Como o homem que só tinha
certezas se tornou conhecido como consultor?
Ele pendurou uma
placa na porta de sua casa com a inscrição "Consultor de tudo" e
começou a atender pessoas que buscavam suas respostas certas.
04 – Qual foi o limite de consultas
diárias estabelecido pelo homem que só tinha certezas?
Ele limitou o
número de consultas diárias para quatrocentos e oitenta, com um minuto e meio
por pessoa.
05 – O que aconteceu quando o
homem que só tinha certezas se apaixonou?
Ele começou a ter
dúvidas, perdeu suas certezas e questionou sua própria convicção.
06 – Qual foi a última dúvida
que restou no mundo após o homem que só tinha certezas perder suas certezas?
A última dúvida
que restou no mundo foi se Deus existe, e o homem já não estava mais certo
sobre isso.
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