Conto: Dezembro no bairro
Lygia
Fagundes Telles
O cinema no porão da nossa casa não
tinha dado certo porque antes mesmo do intervalo o Pedro Piolho pôs-se a berrar
que não estava enxergando nada, que aquilo tudo era uma grandessíssima
porcaria. Queria o dinheiro de volta. Os outros meninos também começaram a
vaiar, ameaçando quebrar as cadeiras. Foi quando apareceu minha mãe mandando
que toda a gente calasse a boca. E exigindo que devolvêssemos o dinheiro das
entradas. Proibiu ainda que fizéssemos outras sessões iguais. E levou a cesta
de pão que eu segurava no colo, estava combinado que no intervalo eu devia sair
anunciando “Balas, bombons, chocolates”!... Embora houvesse na cesta apenas um
punhado de rebuçados de Lisboa. Caramelo; bala.
— Você não presta como chefe — disse
meu irmão ao Maneco. — Com que dinheiro agora vamos fazer o presépio? Eu avisei
que o projetor não estava funcionando. Não avisei?
Maneco era o filho do Marcolino, um
vagabundo do bairro. Magro e encardido, tinha os cabelos mais negros que já vi
em minha vida.
— Mas só falta comprarmos o céu —
retrucou o Maneco. — Papel de seda azul para o céu e o papel prateado para as
estrelas, eu já disse que faço as estrelas. Não fiz da outra vez?
— Não quero saber de nada. Agora o
chefe sou eu.
— É o que vamos decidir lá fora —
ameaçou Maneco avançando para o meu irmão.
Foram para a rua. Em silêncio seguimos
todos atrás. A luta travou-se debaixo da árvore, uma luta desigual porque meu
irmão, que era um touro de forte, logo de saída atirou Maneco no chão e montou
em cima. Mordeu-lhe o peito.
— Pede água! Pede água!
Foi aí que apareceu o Marcolino.
Agarrou o filho pelos cabelos, sacudiu-o no ar e deu-lhe um bofetão que o fez
rodopiar até se estender no meio da calçada.
— Em casa a gente conversa melhor —
disse o homem apertando o cinto das calças.
A noite estava escura, mas mesmo assim
pudemos ver que ele estava bêbado.
— Vamos embora, anda!
Maneco limpou na mão o sangue do nariz.
Seus cabelos formavam uma espécie de capacete negro caindo na testa até as
sobrancelhas. Fechou no peito a camisa rasgada e seguiu o pai.
— Os meninos já entraram? — perguntou
minha mãe quando me viu chegar.
— Estão se lavando lá no tanque. Ela
ouvia uma novela no rádio. E cerzia meias.
— Que é que vocês estavam fazendo?
— Nada...
— O Maneco estava com vocês?
— Só um pouco, foi embora logo.
— Esse menino é doente e essa doença
pega, já avisei mil vezes! Não mandei se afastarem dele, não mandei?
Um pobre de um menino pesteado e com o
pai daquele jeito...
— É que o céu do nosso presépio
queimou, mãe! Não sei quem acendeu aquela vela e o céu pegou fogo. O Natal está
chegando e só ele é que sabe cortar as estrelas, só ele é que sabe.
— Vocês andam impossíveis! Continuem
assim e veremos se vai ter presente no sapato.
Já sabíamos que o Papai Noel era ela.
Ou então, o pai, quando calhava de voltar das suas viagens antes do fim do ano.
Mas ambos insistiam em continuar falando no santo que devia descer pela
lareira, a tal lareira que por sinal nunca tivemos. Então a gente achava melhor
entrar no jogo com a maior cara-de-pau do mundo. Eu chegava ao ponto de
escrever bilhetinhos endereçados a Papai Noel pedindo-lhe tudo o que me passava
pela cabeça. Minha mãe lia os bilhetes, guardava-os de novo no envelope e não
dizia nada. Já meus irmãos, mais audaciosos, tentavam forçar o cadeado da
cômoda onde ela ia escondendo os presentes: enfiavam pontas de faca nas frestas
das gavetas, cheiravam as frestas, trocavam ideias sobre o que podia caber lá
dentro e se torciam de rir com as obscenidades que prometiam escrever nas suas
cartas. Mas quando chegava dezembro, nas vésperas da grande visita, ficavam
delicadíssimos. Faziam aquelas caras de piedade e engraxavam furiosamente os
sapatos porque estava resolvido que Papai Noel deixaria uma barata no sapato
que não estivesse brilhando. Nesse Natal pensamos em ganhar algum dinheiro com
o tal cinema no porão. Mas o projetor não projetava nada, foi aquele vexame.
Restava agora o recurso do presépio com entrada paga, eu ficaria na porta
chamando os possíveis visitantes com minha bata de procissão e asas de anjo.
— E o céu? — lembrou meu irmão lançando
um olhar desconfiado na direção de Maneco. — Como vai ser o céu?
Estávamos sentados nos degraus de pedra
da escadaria da igreja. Meus irmãos tinham ido me buscar depois da aula de catecismo
e agora tratávamos dos nossos assuntos, tão pasmados quanto as moscas
estateladas em nosso redor, tomando sol. Pareciam tão inertes que davam a
impressão de que poderíamos segurá-las pelas asas. Mas sabíamos que nenhum de
nós prenderia qualquer uma delas assim naquela aparente abstração.
— Eu já prometi que faço as estrelas,
dou o papel prateado das estrelas — disse Maneco riscando com a ponta da unha
as pernas magras, com marcas de cicatrizes. Baixou a cara amarela. — Já andei tirando
areia de uma construção, está num caixotinho lá em casa, uma areia branca,
limpa. Tem areia à beça.
— Então você dá o papel.
— Dou o prateado das estrelas, estrela
tem que ser prateada. O papel azul do céu é com vocês que já estou dando muito.
Confabulamos em voz baixa. E ficou decidido que no dia seguinte iríamos catar
alguma coisa num palacete vago da avenida Angélica, na hora em que o vigilante
devia sair para almoçar. Mas o Maneco não apareceu. Durante três dias esperamos
por ele.
— Ficou com medo — disse meu irmão. — É
um covarde, uma besta.
O Polaquinho protestou: — Mas ele está
doente, não pode nem se levantar. Meu pai acha que ele vai morrer logo.
— Não interessa, prometeu e não
cumpriu, é um covarde. Vamos nós e pronto.
Entramos pela janela dos fundos, que
estava aberta, enfiamos numa sacola de feira todas as lâmpadas e maçanetas de
porta que pudemos desatarraxar e fugimos antes que o vigilante voltasse. Quando
chegamos em casa, fomos retos para o porão e abrimos a sacola. A verdade é que
longe do palacete, isoladas dos grandes lustres de cristal e daquelas portas
trabalhadas, as lâmpadas e maçanetas tinham perdido todo o prestígio: vistas
assim de perto, não passavam de maçanetas gastas. É de um monte de lâmpadas
empoeiradas e que talvez não se acendessem nunca. Esfreguei na palma da mão a
mais escura delas: e se fosse a lâmpada mágica de Aladim? O que eu pediria ao
esfumaçado gênio de calças bufantes e argolas de ouro?
— Depressa, gente, depressa! Tem um
Papai Noel lá na loja do Samuel —anunciou o Marinho chegando quase sem fôlego.
— Um Papai Noel de verdade? Na loja do
Samuel? Deixe de mentira...
— Mentira nada! Venham depressa que ele
está lá com a barba branca, a roupa vermelha, juro que é verdade!
— Um Papai Noel na loja do Samuel, a
loja mais mambembe do bairro?
— Se for mentira, você me paga —
ameaçou o Polaquinho encostando o punho fechado no queixo do Marinho.
— Quero ficar cego se estou mentindo!
Esse mesmo juramento ele fazia quando
contava as piores mentiras. Mas o fato é que já estávamos há muito tempo ali
parados diante da sacola aberta, sem nos ocorrer um destino a dar àquilo tudo.
Era preciso fazer outra coisa. Fomos atrás do Marinho, que ia falando na maior
agitação, descrevendo o capuz vermelho, a bata debruada de algodão branco, como
aparecia nas ilustrações. Quando dobramos a esquina, ficamos de boca aberta,
olhando: lá estava ele de carne e osso, a sepavonear de um lado para outro sob
o olhar radiante de Samuel, na porta da loja. Fomos nos aproximando devagar.
Sacudindo um pequeno sino dourado, o Papai Noel alisava a barba postiça e dizia
gracinhas ao filho de um tipo que parecia ter dinheiro.
— Não quer encomendar nada a este
Papai Noel? Vamos, queridinho, faça seu pedido... Uma bola? Um patinete?
— Estou conhecendo esse cara —
resmungou o Polaquinho apertando os olhos. — Já vi ele em algum lugar...
Sentindo-se observado, o homem deu-nos
as costas enquanto estendia a mão enluvada na direção do menino. Fizemos a
volta até vê-lo de frente. Foi o bastante para o homem esquivar-se de novo,
fingindo arrumar os brinquedos dependurados na porta. Essa segunda manobra
alertou-nos. Fomos nos aproximando assim com ar de quem não estava querendo
nada. O queixo e a boca não se podiam ver sob o emaranhado do algodão da barba.
O gorro vermelho também escondia toda a cabeça. Mas, e aqueles ombros curvos e
aquele jeito assim balanceado de andar? Era um conhecido, sem dúvida. Mas
quem? E por que nos evitava, por quê? Penso agora que se ele não tivesse
disfarçado tanto, não teríamos desconfiado de nada: seria mais um Papai Noel
como dezenas de outros que víamos andando pela cidade. Mas aquela preocupação
de se esconder acabou por denunciá-lo. Ficamos na maior excitação: ele estava
com medo. Nunca nos sentimos tão poderosos.
— Esse filho-da-mãe é aqui do bairro —
cochichou meu irmão. — Dou minha cabeça a cortar como ele é daqui do
bairro.
Polaquinho olhava agora para os pés dele, para aqueles sapatos deformados sob
as perneiras de oleado preto fingindo bota. Os sapatos! Aqueles sapatos velhos,
sapatos de andarilho, eram a própria face do homem. Jamais sapato algum acabou
por adquirir tão fielmente as feições do dono: era o pai de Maneco.
— Marcolino!
Ele voltou-se como se tivesse sido
golpeado pelas costas.
Desatamos a rir e a gritar, era o
malandro do Marcolino fazendo de Papai Noel, era o Marcolino!...
— Marcolino, eh! Marcolino!... Tira a
barba, Marcolino!
A alegria da descoberta nos fez
delirantes, pulávamos e cantávamos aos gritos, fazendo roda, de mãos dadas,
"Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! Em vão ele tentou prosseguir representando o
seu papel. Rompendo o frágil disfarce do algodão e dos panos, sentimos sua
vergonha. Sua raiva. Duas velhas da casa vizinha abriram a janela e ficaram
olhando e rindo.
— Molecada suja! — gritou o Samuel
saindo da loja. Sacudiu os punhos fechados. — Fora daqui seus ladrõezinhos!
Fora!
Fugimos. Para voltar em seguida mais
exaltados, com Firpo que apareceu de repente correndo e latindo feito louco,
investindo às cegas por entre nossas pernas. Gritávamos compassadamente, com
todas as forças: — Mar-co-li-no! Mar-co-li-no!...Ele então arrancou a barba.
Arrancou o gorro, arrancou a bata e atirou tudo no chão. Pôs-se a pisotear em
cima, a pisotear tão furiosamente que o Samuel não pensou sequer em impedir,
ficou só ali parado, olhando. E dessa vez o homem não tinha bebido, era raiva
mesmo, uma raiva tamanha que chegou a nos assustar, quando vimos sua cara
amarfanhada, branca. Em meio ao susto que nos fez calar, ocorreu-me pela
primeira vez o quanto o Maneco era parecido com o pai quando ficava assim
furioso, ah, eram iguais aqueles capacetes de cabelo desabando até as
sobrancelhas negras. Quando se cansou de pular em cima da fantasia, foi-se
embora naquele andar gingado, a fralda da camisa fora da calça, os sapatões
esparramados. Samuel entrou de novo na loja. Fecharam-se as janelas. Firpo saiu
correndo, levando a carapuça vermelha nos dentes, enquanto o vento espalhava o
algodão da barba por todo o quarteirão. Polaquinho apanhou alguns fiapos e
grudou-os com cuspe no queixo, mas ninguém achou graça. Voltamos à nossa sacola
de maçanetas e lâmpadas. No dia seguinte, um outro Papai Noel mais baixo e mais
gordo passeava diante da loja. Olhou-nos com ar ameaçador, mas seguimos firmes,
esse nós não conhecíamos. Depois do jantar, meu irmão instalou-se em cima da
árvore na calçada, diante da nossa casa. Abriu a folhagem e ficou olhando lá de
cima.
— Boca-de-forno!
— Forno! — repetimos fazendo
continência.
— Fareis tudo o que o vosso mestre
mandar?
— Faremos com muito gosto!
— Quero que vocês entrem no porão do
Maneco, gritem duas vezes Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! e voltem correndo. Já!
Saímos em disparada pela rua afora. O
portão do cortiço estava apenas cerrado. Duas pretas gordas conversavam
refesteladas em cadeiras na calçada. Empurramos devagarinho a portinhola
carcomida. Entramos. E paramos assustados no meio do porão de paredes
encardidas e trastes velhos amontoados nos cantos. Sabíamos que eles eram
pobres, mas assim desse jeito? Maneco estava sozinho, deitado num colchão com a
palha saindo por entre os remendos. Mal teve tempo de esconder qualquer coisa
debaixo do lençol. Tinha na mão uma tesoura, devia estar cortando o papel que
escondeu. Brincadeira em que uma criança, o "mestre", distribui
tarefas para as outras. Sob a luz débil da lamparina em cima do caixotinho ele
me pareceu completamente amarelo, o cabelo negro mais crescido fechando-lhe a
cara.
— Seus traidores! — gritou com voz
rouca. — Que é que vocês querem aqui, seus traidores! Traidores!
Morreu
na semana seguinte, foi essa a última vez que o vimos. Fomos saindo em silêncio
e de cabeça baixa. Só eu olhei ainda para trás. Ele fungava por entre as
lágrimas enquanto procurava esconder debaixo do lençol a ponta de uma estrela
de papel prateado.
Lygia Fagundes Telles.
Entendendo o conto:
01 – Quem é o protagonista do
conto?
O protagonista é
uma criança narradora, não especificamente nomeada.
02 – Qual é o problema
principal enfrentado pelos personagens no conto?
Eles enfrentam
dificuldades financeiras e tentam organizar um presépio para ganhar dinheiro,
mas as coisas não saem como planejado.
03 – Quem é Maneco?
Maneco é o filho
de Marcolino, um vagabundo do bairro, e ele se envolve com as crianças na
tentativa de fazer um presépio.
04 – Por que o cinema no porão
da casa não foi bem-sucedido?
O Pedro Piolho e
outros meninos começaram a reclamar durante a exibição, causando tumulto, o que
levou à interrupção da sessão.
05 – O que os personagens
tentam fazer para arrecadar dinheiro no período de Natal?
Eles tentam
organizar um presépio com entrada paga para ganhar dinheiro.
06 – Como os personagens
descobrem a identidade do Papai Noel na loja do Samuel?
Eles reconhecem
que o Papai Noel disfarçado é na verdade o pai de Maneco, Marcolino, devido aos
sapatos que ele usa.
07 – Por que o Marcolino se
disfarça de Papai Noel?
Não é
explicitamente mencionado no conto, mas provavelmente é uma tentativa de ganhar
dinheiro durante a temporada de Natal.
08 – Qual é a reação das
crianças ao descobrir a identidade do Papai Noel?
Eles começam a
gritar o nome de Marcolino e riem dele, fazendo-o tirar o disfarce.
09 – O que acontece com Maneco
no desfecho do conto?
Ele morre na
semana seguinte após a última interação com as crianças, tentando esconder a
ponta de uma estrela de papel prateado debaixo do lençol.
10 – Como o conto retrata a
visão das crianças sobre o Natal e a figura do Papai Noel?
Mostra que as
crianças têm uma mistura de crença e desconfiança em relação ao Papai Noel,
sabendo que é uma invenção, mas ao mesmo tempo se envolvendo nas tradições e
expectativas natalinas.
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