Conto: Era no Paraíso...
Monteiro Lobato
Era no paraíso e Deus estava contente.
Tinha criado a luz, as estrelas, o ar, a água e por fim criou a Vida,
semeando-a sob milhares de formas por cima da terra fresquinha e nua. E esfervilhou
de viventes o orbe, aqui bactéria e mastodonte, ali musgo e baobá, além craca e
baleia — a suma variedade de aspectos dentro da perfeita unidade de plano.
E Deus, que achara aquilo bom,
deliberou consolidar sua obra de vida per secula seculorum com o
invento da Fome e do Amor, dois apetites tremendos engastados no âmago das
criaturas à guisa de moto-contínuo da Perpetuação. E cofiando a imensa barba
branca, velha como o Tempo, lançou a palavra mágica que tudo move e tudo
explica:
—
Comei-vos uns aos outros e nos intervalos amai!
Em seguida elaborou para regência da
animalidade o Código da Sabedoria Ingênita.
Não deu esse nome ao Código, visto
como, no começo, não existindo homem, não existiam nomes.
— Não existindo homens?...
Sim, o homem não estava nos planos do
Criador. Esta revelação mirífica, que ainda há de roer pelos alicerces as
caducas verdades oficiais (e talvez me conquiste o prêmio Nobel), está
ansiosinha por me fugir da pena. Que fuja, que se espoje no espírito do leitor.
Adeus, filha!...
Não era escrito esse Código. Lei
escrita vale por pura invenção humana — donde a rapidez com que envelhecem os
códigos humanos e as humanas leis. Escrever é fixar e fixar é matar. Perpétuo
movimento, a vida é infixa. Entretanto, se o não escreveu, foi além Jeová:
impregnou com ele cada uma das criaturas recém-formadas, de modo que ao nascer
já viessem ricas da sabedoria infusa e agissem automaticamente de acordo com os
imutáveis preceitos da lei natural.
Este saber sem aprender receberia do
homem o nome de Intuição, assim como o Código Ingênito receberia o nome de
Instinto. Os futuros homens se caracterizariam pelo vezo de dar nome às coisas,
gozando-se da fama de sábios os que com maior entono e mais pomposamente as
nomeassem. Grande doutor, o que tomasse o pulso a um doente, lhe espiasse a
língua e gravibundo dissesse, tirando do nariz os óculos de
ouro: polinevrite metabólica; e, grande mestre, o que apontasse o dedo
para um grupo de estrelas e declarasse com voz firme: constelação do
Centauro. Doença e estrelas, com ou sem nome, seguiriam o seu curso prefixo —
mas nada de louvores ao médico que apenas dissesse: doença, ou ao mestre que
humilde murmurasse: astros. Paga ou louvor não os teria o ignorante, isto
é, o homem que não sabe nomes. Viva o nome!
Assim, inoculou Deus em todos os seres
a sabedoria da vida e pô-los no orbe como notas cromáticas
do pot-pourri sinfônico de cuja audição integral somente os seus
ouvidos gozariam o privilégio.
E Deus achou que estava ótimo.
Grandes coisas tinham feito. A
gravitação dos mundos era jogo de movimentos que mais tarde derrubaria o queixo
a Newton — mas não passava de mecânica pura.
A concepção do éter, da luz, do calor,
assombrosas invenções eram — mas mecânica fria.
O bonito fora a criação da Vida,
porque, obra de arte das mais autênticas, só ela dava medida completa dos
imensos recursos do alto engenho de Deus.
Quanta afinação no tumulto aparente! A
bactéria às voltas com o mastodonte, o musgo em simbiose com o baobá, a craca
aparasitada à baleia...
Vida em vida, vida devorando vida, vida
sobrepondo-se à vida, vida criando vida... O perpétuo ressoar dos uivos de
cólera, berros de dor, guinchos de alegria, gemidos de gozo sonorizando o
perpétuo agitar-se das formas — voo de ave, arranque de tigre, coleio de serpe,
rabanar de peixe, tocaiar de sáurio...
Tão pitoresca saiu a ópera VIDA que o
Sumo Esteta a elegeu para recreio de sua Eterna Displicência. E, debruçado na
amplidão, as longas barbas dispersas ao vento, o contemplativo Jeová antecipou
a figura do sábio que no fundo dos laboratórios cisma sobre o microscópio.
Ora, pois, certo dia de estuporante
mormaço, um casal de chimpanzés dormitava beatificamente no esgalho de enorme
embaúba. Digeriam as bananas comidas e prelibavam, risonhos, as bananas da
manhã seguinte.
Eram chimpanzés como os demais, sábios
de sabedoria inculcada pelo Eterno, e bem-comportadinhas notas da ópera
paradisíaca.
Mas Éolo suspirou no seu antro e um
forte pé de vento deu, que vascolejou com frenesi a árvore e fez o chimpanzé
macho, perdido o equilíbrio, precipitar-se de ponta-cabeça ao chão.
Seria aquilo um tombo como qualquer
outro, sem consequências funestas, se a malícia da serpente não houvesse
colocado ao pé da embaúba uma grande laje, na qual se chocou o crânio do
infeliz desarvorado.
Perdeu os sentidos o macaco; e a
macaca, presa de grande aflição, pulou incontinenti a socorrê-lo. Rondou-lhe em
torno aos guinchos, soprou-lhe nos olhos, amimou-o, beliscou-lhe as carnes
insensíveis e, por fim, convencida de que estava bem morto, deu de ombros, já
com a ideia na escolha de quem lhe consolasse a viuvez.
Mas não morrera o raio do chimpanzé.
Minutos depois entreabria os olhos, piscava sete vezes e levava as mãos à
fronte, significando que lhe doía.
Neste comenos funga no juncal próximo
um tigre. Desde o Paraíso que os tigres “adoram” os macacos, como desde o Paraíso
que os macacos arrenegam dos tigres. Em virtude de tal divergência, a fungadela
felina valeu por frasco de amoníaco nas ventas do contuso. Pôs-se de pé, inda
tonto e, ajudado da companheira, marinhou embaúba acima, rumo ao galho de
pouso, onde, a bom recato, pudesse distrair a dor de cabeça com a linda cena
que é um tigre faminto à caça de bicho que não seja chimpanzé.
Desde essa desastrada queda nunca mais
funcionou normalmente o cérebro do pobre macaco. Doíam-lhe os miolos, e ele
queixava-se de vágados e de estranho mal-estar.
É que sofrera seriíssima lesão.
Digo isto porque sou homem e sei dar
nomes aos bois; homem ignorante, porém, não vou mais longe, nem ponho nome
grego à lesão. Afirmo apenas que era lesão, certo de que me entendem os meus
incontáveis colegas em ignorância nomenclativa.
Lesão grave, gravíssima, e de
resultados imprevisíveis à própria presciência de Jeová.
A Bíblia já tratou do assunto; de modo
simbólico, entretanto, fugindo de tomar a Queda ao pé da letra. Moisés, redator
do Gênesis, tinha veleidades poéticas — mas não previra Darwin, nem a força do
prêmio Nobel como áureo pai de grandes descobertas. Moisés poetizou... Fez um
Adão, uma Eva, uma serpente e um pomo, que certos exegetas declaram ser a maçã,
e outros, a banana. Compôs assim uma peça com a mestria consciente de Edgar Poe
ao carpinteirar O corvo, mas sem deixar, como Poe, um estudo da psicologia
da composição, onde demonstrasse que fez aquilo por a + b e com bem
estudada pontaria. E foi pena! Quanto papel, tinta e sangue tal esclarecimento
não pouparia à humanidade, sempre rixenta na interpretação dos textos bíblicos!
Vem daí que é o Gênesis uma peça de
fina psicologia, e por igual penetrante nas cabeças duras e nas dos Pascais,
permeabilíssimas; o que escasseia ao Gênesis é acordo com a verdade dos fatos.
Essa verdade, mais preciosa que o diamante Cullinan, eu a achei sob o montão de
cascalho das hipóteses e sem nenhum alarde aqui a estampo de graça. Já é ser
generoso! Tenho nas unhas a verdade das verdades e não requeiro do Congresso um
prêmio de cinquenta contos! Contento-me com um apenas...
A partir da Queda, o nosso macaco
entrou a mudar de gênio. Sua cabeça perdeu o frescor da antiga despreocupação e
deu de elaborar uns mostrengozinhos, informes, aos quais, com alguma licença,
caberia o nome de ideias.
Vacilava, ele que nunca vacilara e
sempre agira com os soberbos impulsos do automatismo. Entre duas bananas
pateteava na escolha tomado de incompreensíveis indecisões — e por vezes perdeu
ambas, iludido por monos de bote pronto que não vacilavam nem escolhiam.
Para galgar de um ramo a outro
calculava agora não só a distância como a força do salto — e errava, ele que
antes da lesão nunca errara pulo.
Até em suas relações sentimentais com a
velha companheira o chimpanzé variou. Ganho de malsãs curiosidades, examinava
as outras macacas do bando, comparava-as à sua e cometia o pecado de desejar a
macaca do próximo.
Como também claudicasse na escolha das
frutas, comeu diversas impróprias à alimentação símia, daí provindo as primeiras
perturbações gastrointestinais observadas na higidez do Paraíso — enterites,
colites, disenteria ou o que seja.
Quando iam águias pelo céu, punha-se a
contemplar os seus harmoniosos voos, com vagos anseios nas tripas e muito
desejo na alma de ser águia. Era a inveja a nascer, má cuscuta que vicejaria
luxuriantemente na execrável descendência desse mono. Invejou as aves que
dormiam em ninho fofo e os animais que moravam em boas tocas de pedra.
Abandonou o viver em árvore, prescrito para os da sua laia pelo Código
Ingênito, e deu de andar sobre a terra de pé sobre as patas traseiras, com as
dianteiras — futuras mãos — ocupadas em construir ninho, como os via fazer às
perdizes, ou toca, como as tem o tatu.
E sempre nervoso e inquieto, e
descontente com a ordem das coisas estabelecida no Éden, imaginava mudanças e
“melhoramentos”. E variava e tresvariava, e malucava, arrastando consigo a
pobre companheira que, sem nada compreender de tudo aquilo, em tudo o imitava
passivamente, dócil e meiga.
Aconteceu o que tinha de acontecer. A
admirável disciplina reinante no Éden viu-se logo perturbada pelo estranho
proceder do macaco, advindo daí murmurações e por fim queixas a Jeová. E tais e
tantas foram as queixas, que o Sumo, zangado com a nota desafinadora da sua
música divina, ordenou ao anjo Gabriel que pusesse no olho da rua o sustenido
anárquico.
Até esse ponto vai certo Moisés. Onde
começa a fazer poesia é daí por diante. De fato, Jeová ordenou a expulsão do
rebelde e são Gabriel deu para executá-la os primeiros passos. A curiosidade,
porém, que dizem feminina mas aqui se vê que é divina, fez o Criador
reconsiderar.
— Suspende, Gabriel! Estou curioso de
ver até que extremos irá o desarranjo mental do meu macaco.
Era
Gabriel o Sarrazani daquele jardim zoológico e, graças ao convívio
com o Eterno, adquirira alguma coisa da divina presciência. Assim foi que
objetou:
— Vossa Eternidade me perdoe, mas se lá
deixamos o trapalhão aquilo vira em “humanidade”...
—
Sei disso — retorquiu o Soberano Senhor de todas as coisas. — A lesão do
cérebro do meu macaco põe-no à margem da minha Lei Natural e fá-lo-á discrepar
da harmonia estabelecida. Nascerá nele uma doença, que seus descendentes,
cheios de orgulho, chamarão inteligência — e que, ai deles! lhes será
funestíssima. Esse mal, oriundo da Queda, transmitir-se-á de pais a filhos — e
crescerá sempre, e terrivelmente influirá sobre a terra, modificando-lhe a
superfície de maneira muito curiosa. E, deslumbrados por ela, os homens
ter-se-ão na conta de criaturas privilegiadas, entes à parte no universo, e
olharão com desprezo para o restante da animalidade. E será assim até que um
senhor Darwin surja e prove a verdadeira origem do Homo sapiens...
— ?!
—
Sim. Eles nomear-se-ão Homo sapiens apesar do teu sorriso, Gabriel, e
ter-se-ão como feitos por mim de um barro especial e à minha imagem e
semelhança.
— ?!!
— Os demais chimpanzés permanecerão
como eu os criei; só o ramo agora a iniciar-se com a prole do lesado é que se
destina a sofrer a diferenciação mórbida, cuja resultante será cair o governo
da terra nas unhas de um bicho que não previ.
— ?!!!
— Essa inteligência se caracterizará
pela ânsia de ver-me através das coisas, e para que bem a compreendas, Gabriel,
te direi que será como asas sem ave, luz sem sol, dedos sem pés...
Gabriel não compreendeu coisa nenhuma
da longa definição de Jeová — e como sucederia o mesmo com os meus leitores,
interrompo-a nos dedos sem pés. Até aí ainda a percepção é possível; mas no
ponto em que Jeová lhe assinalou a essência última, nem Einstein pescaria
um x...
Vendo o ar aparvalhado de Gabriel, o
Criador pulou da metagênese abaixo e falou fisicamente.
— Essa inteligência apurará aos
extremos a crueldade, a astúcia e a estupidez. Por meio da astúcia se farão
eles engenhosos, porque o engenho não passa da astúcia aplicada à mecânica. E à
força de engenho submeterão todos os outros animais, e edificarão cidades, e esfuracarão
montanhas, e rasgarão istmos, destruirão florestas, captarão fluidos ambientes,
domesticarão as ondas hertzianas, descobrirão os raios cósmicos, devassarão o
fundo dos mares, roerão as entranhas da terra...
Gabriel estremeceu. Apavorou-o a força
futura da inteligência nascente; mas Jeová sorriu, e quando Jeová sorria
Gabriel serenava.
— Nada receies. Essa inteligência terá
alguns atributos da minha, como o carvão os tem do diamante, mas estará para a
minha como o carvão está para o diamante. A fraqueza dela provirá da sua jaça
de origem. Inteligência sem memória, inteligência de chimpanzé, o homem
esquecerá sempre. Esquecerá o que ensinei aos seus precursores peludos e
esquecerá de colher a boa lição da experiência nova.
“Seu engenho criará engenhosíssimas
armas de alto poder destrutivo — e empolgados pelo ódio se estraçalharão uns
aos outros em nome de pátrias, por meio de lutas tremendas a que chamarão
guerras, vestidos macacalmente, ao som de músicas, tambores e cornetas —
esquecidos de que não criei nem ódio, nem corneta, nem pátria.
“E transporão mares, e perfurarão
montes, e voarão pelo espaço, e rodarão sobre trilhos na vertigem louca de
vencer as distâncias e chegar depressa — esquecidos de que eu não criei a
pressa nem o trilho.
“E viverão em guerra aberta com os
animais, escravizando-os e matando-os pelo puro prazer de matar — esquecidos de
que eu não criei o prazer de matar por matar.
“E inventarão alfabetos e línguas
numerosas, e disputarão sem tréguas sobre gramática, e quanto mais gramáticas
possuírem menos se entenderão. E se entenderão de tal modo imperfeito que
aclamarão o messias do entendimento geral um doutor Zamenhoff...”
— Já sei! Um que proporá a supressão
das línguas.
— Não! Apenas o criador de mais uma. E
eles elaborarão ciências e excogitarão toda a mecânica das coisas, adivinhando
o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo — menos o segredo da vida.
“E um Pascal, muito cotado entre eles,
dará murros na cabeça, na tortura de compreender os xx supremos — e
os homens admirarão grandemente esses murros.
“E criarão artes numerosas, e terão
sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que implantei no Éden — a arte
de ser biologicamente feliz.
“E organizarão o parasitismo na própria
espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes igualmente antinaturais. E
inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má-Fé, a Hipocrisia, a Gula, a Luxúria, o
Patriotismo, o Sentimentalismo, o Filantropismo, a Colocação dos Pronomes —
esquecidos de que eu não criei nada disso e só o que eu criei é.
“E em virtude de tais e tais
macacalidades, a inteligência do homem não conseguirá nunca resolver nenhum dos
problemas elementares da vida, em contraste com os outros seres, que os terão a
todos solvidos de maneira felicíssima.
“Não saberá comer; e ao lado das minhas
abelhas, de tão sábio regime alimentar — sábio porque por mim prescrito —, o
homem morrerá de fome ou indigestão, ou definhará achacoso em consequência de
erros ou vícios dietéticos.
“Não saberá morar — e ao lado das
minhas aranhas, tão felizes na casa que lhes ensinei, habitarão ascorosas
espeluncas sem luz, ou palácios.
“Não resolverá o problema da vida em
sociedade, e experimentará mil soluções, errando em todas. E revoluções
tremendas agitarão de espaço em espaço os homens no desespero de destruir o
parasitismo criado pela inteligência — e as novas formas de equilíbrio surgidas
afirmar-se-ão com os mesmos vícios das velhas formas destruídas. E o homem
olhará com inveja para os meus animaizinhos gregários, que são felizes porque
seguem a minha lei sapientíssima.
“E não solverá o problema do governo; e
mais formas de governo invente, mais sofrerá sob elas — esquecido de que
não criei governo. E criará o Estado, monstro de maxilas leoninas, por meio do
qual a minoria astuta parasitará cruelmente a maioria estúpida. E a fim de
manter nédio e forte esse monstro, os sábios escreverão livros, os matemáticos
organizarão estatísticas, os generais armarão exércitos, os juízes erguerão
cadafalsos, os estadistas estabelecerão fronteiras, os pedagogos atiçarão
patriotismos, os reis deflagrarão guerras tremendas e os poetas cantarão os
heróis da chacina — para que jamais a guerra cesse de ser uma permanente.
“Queres ver ao vivo, Gabriel, o que vai
ser a chimpanzeização do mundo? Corre essa cortina do futuro e espia por um
momento a humanidade.”
Gabriel correu a cortina do futuro e
espiou. E viu sobre a crosta da terra uma certa poeira movediça. Mas, ansioso
de detalhes, Gabriel microscopou e distinguiu uma dolorosa caravana de
chimpanzés pelados, em atropelada marcha para o desconhecido.
Miserável rebanho! Uns grandes, outros
pequenos; estes louros, aqueles negríssimos — nada que recordasse a perfeição
somática dos outros viventes, tão iguaizinhos dentro do tipo de cada espécie.
Que feia variedade! Ao lado do Apolo, o torto, o capenga, o cambaio, o
corcovado, o corcunda, o raquítico, o trôpego, o careteante, o zanaga, o
zarolho, o careca, o manco, o cego, o tonto, o surdo, o espingolado, o
nanico... Caricaturas móveis, com os mais grotescos disparates nas feições, era
impossível apanhar-lhes de pronto o tipo-padrão. E Gabriel evocou mentalmente a
linda coisa que é um desfile de abelhas ou pinguins, no qual não há um só
indivíduo que destoe do padrão comum.
Da manada humana subia um rumor
confuso. Gabriel desencerrou os ouvidos e pôde distinguir sons para ele
inéditos: tosse, espirros, escarradelas, fungos, borborigmos, ronqueira
asmática, gemidos nevrálgicos, ralhos, palavrões de insulto, blasfêmias,
gargalhadas, guinchos de inveja, rilhar de dentes, bufos de cólera, gritos
histéricos...
Depois observou que à frente das
multidões caminhavam seres de escol, semideuses lantejoulantes, vestidos
fantasiosamente, pingentados de cristaizinhos embutidos em engastes metálicos,
com penas de aves na cabeça, cordões e fitas, crachás e miçangas...
— Quem são?
— Os chefes, os magnatas, os reis: os
condutores de povos. Conduzem-nos... não sabem para onde.
E viu, entremeio à multidão, homens
armados, tangendo o triste rebanho a golpes de espada ou vergalho. E viu uns
homens de toga negra que liam papéis e davam sentenças, fazendo pendurar de
forcas miseráveis criaturas, e a outras cortar a cabeça, e a outras lançar em
ergástulos para o apodrecimento em vida. E viu homens a cavalo,
carnavalescamente vestidos, empenachados de plumas, que arregimentavam as
massas, armavam-nas e atiravam-nas umas contra as outras. E viu que depois de
tremenda carnificina um grupo abandonava o campo em desordem, e outro, atolado
em sangue e em carne gemebunda, cantava o triunfo num delírio orgíaco, ao som
de músicas marciais. E viu que os homens de penacho organizadores das chacinas
eram tidos em elevadíssima conta. Todos os aplaudiam, delirantes, e os
carregavam em charolas de apoteose. E viu que a multidão caminhava sempre
inquieta e em guarda, porque o irmão roubava o irmão, e o filho matava o pai, e
o amigo enganava o amigo, e todos se maldiziam e se caluniavam, e se detestavam
e jamais se compreendiam...
Horrorizado, Gabriel cerrou a cortina
do futuro e disse ao Criador:
— Se vai ser assim, cortemos pela raiz
tanto mal vindouro. Um chimpanzé a menos no Paraíso e estará evitado o
desastre.
— Não! — respondeu o Criador. — Tenho
um rival: o Acaso. Ele criou o homem, provocando a lesão desse macaco, e quero
agora ver até a que extremos se desenvolverá essa criatura aberrante e alheia
aos meus planos.
Gabriel piscou por uns momentos
(catorze vezes ao certo), desnorteado pela expressão “quero ver” jamais caída
dos lábios do Senhor. Haveria porventura algo fechado, ou obscuro, à
presciência divina?
E Gabriel ousou interpelar Jeová.
— Não sois, então, Senhor, a
Presciência Absoluta?
Jeová franziu os sobrolhos terríveis e
murmurou apenas:
— Eu Sou, e se Sou, Sou também O que se
não interpela.
Gabriel encolheu-se como fulminado pelo
raio e sumiu-se da presença do Eterno com pretexto de uma vista de olhos pelo
Éden.
Linda tarde! O sol moribundo chapeava
debruns de cobre nos gigantescos samambaiuçus, a cuja sombra dormitavam
megatérios de focinhos metidos entre as patorras.
As arqueopterix desajeitadonas
chocavam na areia seus grandes ovos.
Um urso das cavernas catava as pulgas
da companheira com a minuciosa atenção dum entomologista apaixonado, e de longe
vinham urros de estegossauros perseguidos por mutucões venenosos.
Ao fundo dum vale de avencas viçosas
como bambus, dois labirintodontes amavam-se em silencioso e pacato idílio, não
longe de um leão fulvo que comia a carne fumegante da gazela caçada.
Aves gorjeavam amores nos ramos; serpes
monstruosas magnetizavam monstruosas rãs; flores carnívoras abriam a goela das
corolas para a apanha de animaizinhos incautos.
Paz. Paz absoluta. Felicidade absoluta.
A Vida comia a Vida e a Vida amava para que não se extinguisse a Vida — tudo
rigorosamente de acordo com a senha divina.
Só Adão, o macaco lesado, discrepava,
piscando os olhinhos vivos, como a ruminar certa ideia.
Gabriel parou perto dele e deixou-se
ficar a observá-lo. Viu que Adão, de olhos ferrados numa toca de
onça, raciocinava: “Ela sai e eu entro, e fecho a porta com uma pedra, e a
casa fica sendo minha...”.
Eva, a macaca ilesa, permanecia muda ao
lado, embevecida no macho pensante. Não o compreendia — não o compreenderia
nunca! —, mas admirava-o, imitava-o e obedecia-lhe passivamente.
Nisto, a onça deixou o antro e foi
tocaiar uma veadinha.
— Acompanhe-me! — disse Adão à
companheira, e ambos precipitaram-se para a toca da onça, cuja entrada fecharam
por dentro com uma grande pedra roliça. E ficaram donos.
Gabriel, que acompanhara toda aquela
maromba, acendeu um cigarro de papiro, baforou para o céu três fumaças e
murmurou:
— Ele já é inteligência. Ela não passa
de imitação. É lógico: só ele foi lesado no cérebro; mas vão ver que Eva, a instintiva,
ainda acabará fingindo-se lesada...
E o primeiro difamador da mulher foi
jogar sua partida de gamão com o Todo-Poderoso.
Pesquisa e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2018) Escrito Iba Mendes às 12:54. Marcadores: Conto
de Monteiro Lobato, Era no
Paraíso...
Entendendo o conto:
01 – Qual é a premissa
principal do conto?
O conto descreve
a criação da vida no paraíso e explora a introdução da inteligência no macaco
Adão, causando desequilíbrio na harmonia do Éden.
02 – Como Deus instruiu
inicialmente as criaturas no paraíso?
Deus impregnou
todas as criaturas com o conhecimento da sabedoria da vida, denominada
intuição, e estabeleceu o Código da Sabedoria Ingênita, chamado instinto.
03 – Por que Adão, o macaco,
se torna diferente das outras criaturas do paraíso?
Adão sofre uma
lesão no cérebro após uma queda, resultando em mudanças significativas em seu
comportamento e no início da inteligência.
04 – Quais são algumas
mudanças observadas em Adão após a lesão?
Adão começa a ter
comportamentos mais complexos, como indecisões na escolha de frutas, inveja de
outras criaturas e desejo por mudanças não naturais no Éden.
05 – Por que Deus decide não
expulsar imediatamente Adão do paraíso?
Deus quer ver até
que ponto a inteligência aberrante do macaco evoluirá, mesmo sabendo que essa
mudança causará grandes problemas futuros.
06 – Como Gabriel, o anjo,
reage ao observar o futuro da humanidade?
Gabriel fica
horrorizado ao observar a humanidade, vendo uma multidão desordenada e sofrida,
liderada por indivíduos questionáveis e imersa em conflitos e maldades.
07 – Quais são algumas das
previsões sombrias feitas por Deus sobre o futuro da humanidade?
Deus prevê que a
inteligência humana criará guerras, governos opressivos, sistemas destrutivos
para o meio ambiente e um estado de desequilíbrio constante.
08 – Quais são as
características notáveis observadas em Adão e Eva após a lesão de Adão?
Adão demonstra
comportamento mais inteligente e estratégico, enquanto Eva permanece na
imitação e obediência, incapaz de compreender completamente as ideias do
companheiro.
09 – Como o conto sugere a
origem da humanidade a partir de Adão e Eva?
O conto sugere
que a humanidade evoluiu a partir do desequilíbrio da inteligência de Adão, que
se tornou um ponto de partida para uma linhagem diferente e problemática no
paraíso.
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