Conto: O FISCO – Fragmento – 1918
Monteiro Lobato
Conto de Natal – PRÓLOGO
No princípio era o pântano, com valas
de agrião e rãs coaxantes. Hoje é o Parque do Anhangabaú, todo ele relvado, com
ruas de asfalto, pérgola grata a namoriscos noturnos, a Eva de Brecheret, a
estátua dum adolescente nu que corre — e mais coisas. Autos voam pela via
central, e cruzam-se pedestres em todas as direções. Lindo parque,
civilizadíssimo.
Atravessando-o certa tarde, vi
formar-se ali um bolo de gente, rumo ao qual vinha vindo um polícia apressado.
“Fagocitose”, pensei. A rua é a artéria;
os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado, o gatuno são os micróbios
maléficos, perturbadores do ritmo circulatório. O soldado de polícia é o
glóbulo branco — o fagócito de Metchnikoff [biólogo microbiologista e
anatomista ucraniano, falecido em 1916]. Está de ordinário parado no seu posto,
circunvagando olhares atentos. Mal se congestiona o tráfego pela ação
antissocial do desordeiro, o fagócito move-se, caminha, corre, cai a fundo
sobre o mau elemento e arrasta-o para o xadrez.
Foi assim naquele dia.
Dia sujo, azedo. Céu dúbio, de
decalcomania vista pelo avesso. Ar arrepiado.
Alguém perturbara a paz do jardim, e em
redor desse rebelde logo se juntou um grupo de glóbulos vermelhos, vulgo
passantes. E lá vinha agora o fagócito fardado restabelecer a harmonia
universal.
O caso girava em torno de uma criança
maltrapilha, que tinha a tiracolo uma caixa tosca de engraxate, visivelmente
feita pelas suas próprias mãos. Muito sarapantado, com lágrimas a brilharem nos
olhos cheios de pavor, o pequeno murmurava coisas de ninguém atendidas.
Sustinha-o pela gola um fiscal da Câmara.
— Então, seu cachorrinho, sem licença,
hein? — exclamava entre colérico e vitorioso o mastim municipal, focinho muito
nosso conhecido. É um que não é um, mas sim legião, e sabe ser tigre ou
cordeiro conforme o naipe do contraventor.
A miserável criança evidentemente não
entendia, não sabia que coisa era aquela de licença, tão importante, reclamada
assim a empuxões brutais. Foi quando entrou em cena o polícia.
Este glóbulo branco era preto. (...)
Aproximou-se e rompeu o magote com um napoleônico “Espalha!”.
Humildes alas se abriram àquele Sésamo,
e a Autoridade, avançando, interpelou o Fisco:
— Que encrenca é esta, chefe?
— Pois este cachorrinho não é que está
exercendo ilegalmente a profissão de engraxate? Encontrei-o banzando por aqui
com estes troços, a fisgar com os olhos os pés dos transeuntes e a dizer
“Engraxa, freguês”. Eu vi a coisa de longe. Vim pé ante pé, disfarçando e, de
repente, nhoc! “Mostre a licença”, gritei. “Que licença?”, perguntou ele com
arzinho de inocência.
“Ah, você diz que licença, cachorro?
Está me debochando, ladrão? Espera que te ensino o que é licença, trapo!” E
agarrei-o. Não quer pagar a multa. Vou levá-lo ao depósito, autuar a infração
para proceder de acordo com as posturas — concluiu com soberbo entono o cariado
canino da Maxila Fiscal. O solene Mata-Piolho da Manopla Policial concordou.
— É isso mesmo. Casca-lhes!
E chiando por entre os dentes uma
cusparada de esguicho, deu a sua sacudidela suplementar no menino. Depois
voltou-se para os basbaques e ordenou com império de soba africana:
— Circula, paisanada! É “purivido” ajuntamentos
de mais de um.
Os glóbulos vermelhos dispersaram-se em
silêncio. O buldogue lá seguiu com o pequeno nas unhas. E o Pau de Fumo, em
atitude de Bonaparte em face das pirâmides, ficou, de dedo no nariz e boca
entreaberta, a gozar a prontidão com que, num ápice, sua energia resolvera o
tumor maligno formado na artéria sob a sua fiscalização.
(...)
PEDRINHO, SEM SER CONSULTADO, NASCE
Viram-se, ele e ela. Namoraram-se.
Casaram.
Casados, proliferaram.
Eram dois. O amor transformou-os em
três. Depois em quatro, em cinco, em seis...
Chamava-se Pedrinho o filho mais velho.
A VIDA
De pé na porta a mãe espera o menino
que foi à padaria. Entra o pequeno com as mãos abanando.
— Diz que subiu; custa agora
oitocentos.
A mulher, com uma criança ao peito,
franze a testa desconsolada.
— Meu Deus! Onde iremos parar? Ontem
era a lenha; hoje é o pão... Tudo sobe. Roupa, pela hora da morte. José
ganhando sempre a mesma coisa. Que será de nós, Deus do céu!
E voltando-se para o filho:
— Vá a outra padaria, quem sabe se
lá... Se for a mesma coisa, traga só um pedaço.
Pedrinho sai. Nove anos. Franzino,
doentio, sempre mal alimentado e vestido com os restos das roupas do pai.
Trabalha este num moinho de trigo,
ganhando jornal [remuneração salarial feita por dia de trabalho] insuficiente
para a manutenção da família. Se não fosse a bravura da mulher, que lavava para
fora, não se sabe como poderiam subsistir. Todas as tentativas feitas com o
intuito de melhorarem a vida com indústrias caseiras esbarraram no óbice
tremendo do Fisco. A fera condenava-os à fome. Assim escravizados, José perdeu
aos poucos a coragem, o gosto de viver, a alegria. Vegetava, recorrendo ao
álcool para alívio de uma situação sem remédio.
Bendito sejas, amável veneno, refúgio
derradeiro do miserável, gole inebriante de morte que faz esquecer a vida e lhe
resume o curso! Bendito sejas!
Apesar de moça, vinte e sete apenas,
Mariana aparentava o dobro. A labuta permanente, os partos sucessivos, a
chiadeira da filharada, a canseira sem-fim, o serviço emendado com o serviço,
sem folga outra além da que o sono força, fizeram da bonita moça que fora a
escanzelada besta de carga que era.
Seus dez anos de casada... Que
eternidade de canseiras!...
Rumor à porta. Entra o marido. A
mulher, ninando a pequena de peito, recebe-o com a má nova.
— O pão subiu, sabe?
Sem murmurar palavra o homem senta-se,
apoiando nas mãos a cabeça. Está cansado.
A mulher prossegue:
— Oitocentos réis o quilo agora. Ontem
foi a lenha; hoje é o pão... E lá? Aumentaram o salário?
O marido esboçou um gesto de desalento
e permaneceu mudo, com o olhar vago. A vida era um jogo de engrenagens de aço
entre cujos dentes se sentia esmagar. Inútil resistir. Destino, sorte.
Na cama, à noite, confabulavam. A mesma
conversa de sempre. José acabava grunhindo rugidos surdos de revolta. Falava em
revolução, saque. A esposa consolava-o, de esperança posta nos filhos.
— Pedrinho tem nove anos. Logo estará
em ponto de ajudar-nos. Um pouco mais de paciência e a vida melhora.
Aconteceu que nessa noite Pedrinho
ouviu a conversa e a referência à sua futura ação. Entrou a sonhar. Que fariam
dele? Na fábrica, como o pai? Se lhe dessem a escolher, iria a engraxador.
Tinha um tio no ofício, e em casa do tio era menor a miséria. Pingavam níqueis.
Sonho vai, sonho vem, brota na cabeça
do menino uma ideia, que cresceu, tomou vulto extraordinário e fê-lo perder o
sono. Começar já, amanhã, por que não? Faria ele mesmo a caixa; escovas e
graxa, com o tio arranjaria. Tudo às ocultas, para surpresa dos pais! Iria
postar-se num ponto por onde passasse muita gente.
Diria como os outros: “Engraxa,
freguês!”, e níqueis haviam de juntar-se no seu bolso. Voltaria para casa
recheado, bem tarde, com ar de quem as fez... E mal a mãe começasse a ralhar,
ele lhe taparia a boca despejando na mesa o monte de dinheiro.
O espanto dela, a cara admirada do pai,
o regalo da criançada com a perspectiva da ração em dobro! E a mãe a apontá-lo
aos vizinhos: “Estão vendo que coisa? Ganhou, só ontem, primeiro dia, dois
mil-réis!”. E a notícia a correr... E murmúrios na rua quando o vissem passar:
“É aquele!”.
Pedrinho não dormiu essa noite. De
manhãzinha já estava a dispor a madeira dum caixote velho sob forma de caixa de
engraxate ao molde clássico. Lá a fez. Os pregos, bateu com o salto de uma
velha botina. As tábuas, serrou pacientemente com um facão dentado. Saiu coisa
tosca e mal-ajambrada, de fazer rir a qualquer carapina e pequena demais —
sobre ela só caberia um pé de criança igual ao seu. Mas Pedrinho não notou nada
disso, e nunca trabalho nenhum de carpintaria lhe pareceu mais perfeito.
Conclusa a caixa, pô-la a tiracolo e
esgueirou-se para a rua, às escondidas. Foi à casa do tio e lá obteve duas
velhas escovas fora de uso, já sem pelos, mas que à sua exaltada imaginação se
afiguraram ótimas. Graxa, conseguiu alguma raspando o fundo de quanta lata
velha encontrou no quintal.
Aquele momento marcou em sua vida um
apogeu de felicidade vitoriosa. Era como um sonho — e sonhando saiu para a rua.
Em caminho viu o dinheiro crescer-lhe nas mãos, aos montes. Dava à família
parte, e o resto encafuava.
Quando enchesse o canto da arca onde
tinha suas roupas, montaria um “corredor”, pondo a jornal outros colegas.
Aumentaria as rendas! Enriqueceria! Compraria bicicletas, automóvel, doces
todas as tardes na confeitaria, livros de figura, uma casa, um palácio, outro
palácio para os pais. Depois...
Chegou ao parque. Tão bonito aquilo — a
relva tão verde, tosadinha... Havia de ser bom o ponto. Parou perto de um banco
de pedra e, sempre sonhando as futuras grandezas, pôs-se a murmurar para cada
passante, fisgando-lhe os pés: — Engraxa, freguês!
Os fregueses passavam sem lhe dar
atenção. “É assim mesmo”, refletia consigo o menino; “no começo custa. Depois
se afreguesam.”
Súbito, viu um homem de boné caminhando
para o seu lado. Olhou-lhe para as botinas. Sujas. Viria engraxar, com certeza —
e o coração bateu-lhe apressado, no tumulto delicioso da estreia. Encarou o
homem já a cinco passos e sorriu com infinita ternura nos olhos, num
agradecimento antecipado em que havia tesouros de gratidão.
Mas em vez de lhe espichar o pé, o
homem rosnou aquela terrível interpelação inicial:
— Então, cachorrinho, que é da licença?
EPÍLOGO? NÃO! PRIMEIRO ATO...
Horas depois o fiscal aparecia em casa
de Pedrinho com o pequeno pelo braço. Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a
mãe. O homem nesses momentos não aparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir
do quarto o bate-boca.
O fiscal exigia o pagamento da multa. A
mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim, rompeu em choro.
— Não venha com lamúrias — rosnou o
buldogue —; conheço o truque dessa aguinha nos olhos. Não me embaça, não. Ou
bate aqui os vinte mil-réis, ou penhoro toda esta cacaria.
Exercer ilegalmente a profissão! Ora
dá-se! E olhe cá, madama, considere-se feliz de serem só vinte. Eu é de dó de
vocês, uns miseráveis; senão, aplicava o máximo. Mas se resiste dobro a dose!
A mulher limpou as lágrimas. Seus olhos
endureceram, com uma chispa má de ódio represado a faiscar. O Fisco, percebendo-o,
motejou:
— Isso. É assim que as quero —
tesinhas, ah, ah. Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro
existente — dezoito mil-réis ratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso
dalguma doença, e entregou-os ao Fisco.
— É o que há — murmurou com tremura na
voz. O homem pegou o dinheiro e gostosamente o afundou no bolso, dizendo:
— Sou generoso, perdoo o resto.
Adeuzinho, amor!
E foi à venda próxima beber dezoito
mil-réis de cerveja. Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia
furiosamente no menino.
Monteiro Lobato.
Entendendo o conto:
01 – Quem são os personagens
principais no conto?
Pedrinho, sua
família, o fiscal da Câmara e o policial.
02 – Qual é o conflito
principal enfrentado por Pedrinho e sua família?
Pedrinho é
acusado de exercer ilegalmente a profissão de engraxate, enfrentando multas e
abuso de autoridade.
03 – Como é retratada a
atuação do fiscal da Câmara?
O fiscal é
representado como alguém abusivo e implacável, impondo multas pesadas e sem
piedade, mesmo diante da situação precária da família de Pedrinho.
04 – Quais são as expectativas
e sonhos de Pedrinho ao iniciar seu trabalho como engraxate?
Ele sonha em
prosperar financeiramente, ajudar a família, enriquecer, comprar coisas
luxuosas e impressionar os pais com seu sucesso.
05 – Qual é a reação da mãe de
Pedrinho diante da situação imposta pelo fiscal?
Inicialmente, ela se debate e tenta
argumentar, mas acaba cedendo à pressão e entregando todo o dinheiro que tinham
guardado para emergências.
06 – Como é retratado o estado
emocional e físico da família de Pedrinho ao longo do conto?
Eles enfrentam
dificuldades financeiras, desânimo, cansaço físico e emocional devido à
situação de pobreza e à pressão do fiscal.
07 – Qual é a atitude do
policial diante da situação com Pedrinho?
O policial,
representado como um "glóbulo branco" na analogia do conto, aparece
como alguém que intervém para dispersar a situação, mas não para proteger
Pedrinho.
08 – Como é caracterizado o
comportamento do fiscal e sua relação com a família de Pedrinho?
O fiscal é retratado como arrogante,
abusivo e sem compaixão, tratando a família de Pedrinho com desprezo e exigindo
dinheiro mesmo sabendo da difícil situação deles.
09 – Que reflexões sobre a
burocracia, abuso de poder e as dificuldades enfrentadas por famílias pobres
são apresentadas no conto?
O conto explora a
burocracia impiedosa, o abuso de poder e a maneira como as famílias pobres são
exploradas, mesmo quando estão em situações desesperadoras.
10 – Qual é o sentimento
predominante ao final do conto?
O sentimento
predominante é de injustiça, impotência e desespero, já que Pedrinho e sua
família são vítimas de abuso de poder e da falta de compaixão das autoridades.
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