quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CONTO: O FISCO - (FRAGMENTO - 1918) - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: O FISCO – Fragmento – 1918   

            Monteiro Lobato

          Conto de Natal – PRÓLOGO  

        No princípio era o pântano, com valas de agrião e rãs coaxantes. Hoje é o Parque do Anhangabaú, todo ele relvado, com ruas de asfalto, pérgola grata a namoriscos noturnos, a Eva de Brecheret, a estátua dum adolescente nu que corre — e mais coisas. Autos voam pela via central, e cruzam-se pedestres em todas as direções. Lindo parque, civilizadíssimo.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDuVQE6POYmmxjzS67FyOP7r-rrGALNrhGEAOr_7DSVZI8ZfI_M4YYvBTejiiZNLseShxgn7WafcowIRVrZLDCh16EfVq6Xrf6XHPoFh4RUIwIVjZujRr2xnO9LCXNWY2I2DMunyB1Js5gXFYKoz4KS_4-l-l4yzCnAocXp7zI-DtJIeqv4uRrRtLfZ38/s320/pARQUE.jpg


        Atravessando-o certa tarde, vi formar-se ali um bolo de gente, rumo ao qual vinha vindo um polícia apressado.

        “Fagocitose”, pensei. A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado, o gatuno são os micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório. O soldado de polícia é o glóbulo branco — o fagócito de Metchnikoff [biólogo microbiologista e anatomista ucraniano, falecido em 1916]. Está de ordinário parado no seu posto, circunvagando olhares atentos. Mal se congestiona o tráfego pela ação antissocial do desordeiro, o fagócito move-se, caminha, corre, cai a fundo sobre o mau elemento e arrasta-o para o xadrez.

        Foi assim naquele dia.

        Dia sujo, azedo. Céu dúbio, de decalcomania vista pelo avesso. Ar arrepiado.

        Alguém perturbara a paz do jardim, e em redor desse rebelde logo se juntou um grupo de glóbulos vermelhos, vulgo passantes. E lá vinha agora o fagócito fardado restabelecer a harmonia universal.

        O caso girava em torno de uma criança maltrapilha, que tinha a tiracolo uma caixa tosca de engraxate, visivelmente feita pelas suas próprias mãos. Muito sarapantado, com lágrimas a brilharem nos olhos cheios de pavor, o pequeno murmurava coisas de ninguém atendidas. Sustinha-o pela gola um fiscal da Câmara.

        — Então, seu cachorrinho, sem licença, hein? — exclamava entre colérico e vitorioso o mastim municipal, focinho muito nosso conhecido. É um que não é um, mas sim legião, e sabe ser tigre ou cordeiro conforme o naipe do contraventor.

        A miserável criança evidentemente não entendia, não sabia que coisa era aquela de licença, tão importante, reclamada assim a empuxões brutais. Foi quando entrou em cena o polícia.

        Este glóbulo branco era preto. (...) Aproximou-se e rompeu o magote com um napoleônico “Espalha!”.

        Humildes alas se abriram àquele Sésamo, e a Autoridade, avançando, interpelou o Fisco:

        — Que encrenca é esta, chefe?

        — Pois este cachorrinho não é que está exercendo ilegalmente a profissão de engraxate? Encontrei-o banzando por aqui com estes troços, a fisgar com os olhos os pés dos transeuntes e a dizer “Engraxa, freguês”. Eu vi a coisa de longe. Vim pé ante pé, disfarçando e, de repente, nhoc! “Mostre a licença”, gritei. “Que licença?”, perguntou ele com arzinho de inocência.

        “Ah, você diz que licença, cachorro? Está me debochando, ladrão? Espera que te ensino o que é licença, trapo!” E agarrei-o. Não quer pagar a multa. Vou levá-lo ao depósito, autuar a infração para proceder de acordo com as posturas — concluiu com soberbo entono o cariado canino da Maxila Fiscal. O solene Mata-Piolho da Manopla Policial concordou.

        — É isso mesmo. Casca-lhes!

        E chiando por entre os dentes uma cusparada de esguicho, deu a sua sacudidela suplementar no menino. Depois voltou-se para os basbaques e ordenou com império de soba africana:

        — Circula, paisanada! É “purivido” ajuntamentos de mais de um.

        Os glóbulos vermelhos dispersaram-se em silêncio. O buldogue lá seguiu com o pequeno nas unhas. E o Pau de Fumo, em atitude de Bonaparte em face das pirâmides, ficou, de dedo no nariz e boca entreaberta, a gozar a prontidão com que, num ápice, sua energia resolvera o tumor maligno formado na artéria sob a sua fiscalização.

        (...)

        PEDRINHO, SEM SER CONSULTADO, NASCE

        Viram-se, ele e ela. Namoraram-se. Casaram.

        Casados, proliferaram.

        Eram dois. O amor transformou-os em três. Depois em quatro, em cinco, em seis...

        Chamava-se Pedrinho o filho mais velho.

        A VIDA

        De pé na porta a mãe espera o menino que foi à padaria. Entra o pequeno com as mãos abanando.

        — Diz que subiu; custa agora oitocentos.

        A mulher, com uma criança ao peito, franze a testa desconsolada.

        — Meu Deus! Onde iremos parar? Ontem era a lenha; hoje é o pão... Tudo sobe. Roupa, pela hora da morte. José ganhando sempre a mesma coisa. Que será de nós, Deus do céu!

        E voltando-se para o filho:

        — Vá a outra padaria, quem sabe se lá... Se for a mesma coisa, traga só um pedaço.

        Pedrinho sai. Nove anos. Franzino, doentio, sempre mal alimentado e vestido com os restos das roupas do pai.

        Trabalha este num moinho de trigo, ganhando jornal [remuneração salarial feita por dia de trabalho] insuficiente para a manutenção da família. Se não fosse a bravura da mulher, que lavava para fora, não se sabe como poderiam subsistir. Todas as tentativas feitas com o intuito de melhorarem a vida com indústrias caseiras esbarraram no óbice tremendo do Fisco. A fera condenava-os à fome. Assim escravizados, José perdeu aos poucos a coragem, o gosto de viver, a alegria. Vegetava, recorrendo ao álcool para alívio de uma situação sem remédio.

        Bendito sejas, amável veneno, refúgio derradeiro do miserável, gole inebriante de morte que faz esquecer a vida e lhe resume o curso! Bendito sejas!

        Apesar de moça, vinte e sete apenas, Mariana aparentava o dobro. A labuta permanente, os partos sucessivos, a chiadeira da filharada, a canseira sem-fim, o serviço emendado com o serviço, sem folga outra além da que o sono força, fizeram da bonita moça que fora a escanzelada besta de carga que era.

        Seus dez anos de casada... Que eternidade de canseiras!...

        Rumor à porta. Entra o marido. A mulher, ninando a pequena de peito, recebe-o com a má nova.

        — O pão subiu, sabe?

        Sem murmurar palavra o homem senta-se, apoiando nas mãos a cabeça. Está cansado.

        A mulher prossegue:

        — Oitocentos réis o quilo agora. Ontem foi a lenha; hoje é o pão... E lá? Aumentaram o salário?

        O marido esboçou um gesto de desalento e permaneceu mudo, com o olhar vago. A vida era um jogo de engrenagens de aço entre cujos dentes se sentia esmagar. Inútil resistir. Destino, sorte.

        Na cama, à noite, confabulavam. A mesma conversa de sempre. José acabava grunhindo rugidos surdos de revolta. Falava em revolução, saque. A esposa consolava-o, de esperança posta nos filhos.

        — Pedrinho tem nove anos. Logo estará em ponto de ajudar-nos. Um pouco mais de paciência e a vida melhora.

        Aconteceu que nessa noite Pedrinho ouviu a conversa e a referência à sua futura ação. Entrou a sonhar. Que fariam dele? Na fábrica, como o pai? Se lhe dessem a escolher, iria a engraxador. Tinha um tio no ofício, e em casa do tio era menor a miséria. Pingavam níqueis.

        Sonho vai, sonho vem, brota na cabeça do menino uma ideia, que cresceu, tomou vulto extraordinário e fê-lo perder o sono. Começar já, amanhã, por que não? Faria ele mesmo a caixa; escovas e graxa, com o tio arranjaria. Tudo às ocultas, para surpresa dos pais! Iria postar-se num ponto por onde passasse muita gente.

        Diria como os outros: “Engraxa, freguês!”, e níqueis haviam de juntar-se no seu bolso. Voltaria para casa recheado, bem tarde, com ar de quem as fez... E mal a mãe começasse a ralhar, ele lhe taparia a boca despejando na mesa o monte de dinheiro.

        O espanto dela, a cara admirada do pai, o regalo da criançada com a perspectiva da ração em dobro! E a mãe a apontá-lo aos vizinhos: “Estão vendo que coisa? Ganhou, só ontem, primeiro dia, dois mil-réis!”. E a notícia a correr... E murmúrios na rua quando o vissem passar: “É aquele!”.

        Pedrinho não dormiu essa noite. De manhãzinha já estava a dispor a madeira dum caixote velho sob forma de caixa de engraxate ao molde clássico. Lá a fez. Os pregos, bateu com o salto de uma velha botina. As tábuas, serrou pacientemente com um facão dentado. Saiu coisa tosca e mal-ajambrada, de fazer rir a qualquer carapina e pequena demais — sobre ela só caberia um pé de criança igual ao seu. Mas Pedrinho não notou nada disso, e nunca trabalho nenhum de carpintaria lhe pareceu mais perfeito.

        Conclusa a caixa, pô-la a tiracolo e esgueirou-se para a rua, às escondidas. Foi à casa do tio e lá obteve duas velhas escovas fora de uso, já sem pelos, mas que à sua exaltada imaginação se afiguraram ótimas. Graxa, conseguiu alguma raspando o fundo de quanta lata velha encontrou no quintal.

        Aquele momento marcou em sua vida um apogeu de felicidade vitoriosa. Era como um sonho — e sonhando saiu para a rua. Em caminho viu o dinheiro crescer-lhe nas mãos, aos montes. Dava à família parte, e o resto encafuava.

        Quando enchesse o canto da arca onde tinha suas roupas, montaria um “corredor”, pondo a jornal outros colegas. Aumentaria as rendas! Enriqueceria! Compraria bicicletas, automóvel, doces todas as tardes na confeitaria, livros de figura, uma casa, um palácio, outro palácio para os pais. Depois...

        Chegou ao parque. Tão bonito aquilo — a relva tão verde, tosadinha... Havia de ser bom o ponto. Parou perto de um banco de pedra e, sempre sonhando as futuras grandezas, pôs-se a murmurar para cada passante, fisgando-lhe os pés: — Engraxa, freguês!

        Os fregueses passavam sem lhe dar atenção. “É assim mesmo”, refletia consigo o menino; “no começo custa. Depois se afreguesam.”

        Súbito, viu um homem de boné caminhando para o seu lado. Olhou-lhe para as botinas. Sujas. Viria engraxar, com certeza — e o coração bateu-lhe apressado, no tumulto delicioso da estreia. Encarou o homem já a cinco passos e sorriu com infinita ternura nos olhos, num agradecimento antecipado em que havia tesouros de gratidão.

        Mas em vez de lhe espichar o pé, o homem rosnou aquela terrível interpelação inicial:

        — Então, cachorrinho, que é da licença?

        EPÍLOGO? NÃO! PRIMEIRO ATO...

        Horas depois o fiscal aparecia em casa de Pedrinho com o pequeno pelo braço. Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a mãe. O homem nesses momentos não aparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir do quarto o bate-boca.

        O fiscal exigia o pagamento da multa. A mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim, rompeu em choro.

        — Não venha com lamúrias — rosnou o buldogue —; conheço o truque dessa aguinha nos olhos. Não me embaça, não. Ou bate aqui os vinte mil-réis, ou penhoro toda esta cacaria.

        Exercer ilegalmente a profissão! Ora dá-se! E olhe cá, madama, considere-se feliz de serem só vinte. Eu é de dó de vocês, uns miseráveis; senão, aplicava o máximo. Mas se resiste dobro a dose!

        A mulher limpou as lágrimas. Seus olhos endureceram, com uma chispa má de ódio represado a faiscar. O Fisco, percebendo-o, motejou:

        — Isso. É assim que as quero — tesinhas, ah, ah. Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro existente — dezoito mil-réis ratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso dalguma doença, e entregou-os ao Fisco.

        — É o que há — murmurou com tremura na voz. O homem pegou o dinheiro e gostosamente o afundou no bolso, dizendo:

        — Sou generoso, perdoo o resto. Adeuzinho, amor!

        E foi à venda próxima beber dezoito mil-réis de cerveja. Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia furiosamente no menino.

Monteiro Lobato.

Entendendo o conto:

01 – Quem são os personagens principais no conto?

      Pedrinho, sua família, o fiscal da Câmara e o policial.

02 – Qual é o conflito principal enfrentado por Pedrinho e sua família?

      Pedrinho é acusado de exercer ilegalmente a profissão de engraxate, enfrentando multas e abuso de autoridade.

03 – Como é retratada a atuação do fiscal da Câmara?

      O fiscal é representado como alguém abusivo e implacável, impondo multas pesadas e sem piedade, mesmo diante da situação precária da família de Pedrinho.

04 – Quais são as expectativas e sonhos de Pedrinho ao iniciar seu trabalho como engraxate?

      Ele sonha em prosperar financeiramente, ajudar a família, enriquecer, comprar coisas luxuosas e impressionar os pais com seu sucesso.

05 – Qual é a reação da mãe de Pedrinho diante da situação imposta pelo fiscal?

      Inicialmente, ela se debate e tenta argumentar, mas acaba cedendo à pressão e entregando todo o dinheiro que tinham guardado para emergências.

06 – Como é retratado o estado emocional e físico da família de Pedrinho ao longo do conto?

      Eles enfrentam dificuldades financeiras, desânimo, cansaço físico e emocional devido à situação de pobreza e à pressão do fiscal.

07 – Qual é a atitude do policial diante da situação com Pedrinho?

      O policial, representado como um "glóbulo branco" na analogia do conto, aparece como alguém que intervém para dispersar a situação, mas não para proteger Pedrinho.

08 – Como é caracterizado o comportamento do fiscal e sua relação com a família de Pedrinho?

      O fiscal é retratado como arrogante, abusivo e sem compaixão, tratando a família de Pedrinho com desprezo e exigindo dinheiro mesmo sabendo da difícil situação deles.

09 – Que reflexões sobre a burocracia, abuso de poder e as dificuldades enfrentadas por famílias pobres são apresentadas no conto?

      O conto explora a burocracia impiedosa, o abuso de poder e a maneira como as famílias pobres são exploradas, mesmo quando estão em situações desesperadoras.

10 – Qual é o sentimento predominante ao final do conto?

      O sentimento predominante é de injustiça, impotência e desespero, já que Pedrinho e sua família são vítimas de abuso de poder e da falta de compaixão das autoridades.

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