segunda-feira, 13 de novembro de 2023

CONTO: INFÂNCIA E POESIA - PABLO NERUDA - COM GABARITO

 Conto: Infância e poesia

           Pablo Neruda

        Havia em minha casa também um baú com objetos fascinantes. No fundo resplandecia um maravilhoso papagaio de calendário. Um dia em que minha mãe remexia aquela arca sagrada, caí de cabeça dentro ao tentar alcançar o papagaio. Mas quando fui crescendo abri-a secretamente. Havia lá uns leques preciosos e impalpáveis.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjrfCP5xFsqxTI8TQam5KvOdbif4KAi4mdQ9RpEKH4CzgpA8z2l6Tn04xtD63rsxVfNJshhLunANI6reNRqoKlZ5-IRbVojTuE4eiwROMTVcVmghvcLCRXASFsVf2YkMpuQM3Np7pyimwfDkSsp3m9gw4Vm3GmXlL21Hv102fLagIvQrHh9Px3vOOSJlww/s320/BAU.jpg


        Conservo outra lembrança daquele baú. A primeira história de amor que me apaixonou. Eram centenas de cartões-postais, enviados por alguém que os assinava não sei se Henrique ou Alberto, e todos dirigidos a Maria Thielman. Estes cartões eram maravilhosos. Eram retratos das grandes atrizes da época com pedacinhos de vidro engastados e às vezes com cabeleira colada. Havia também castelos, cidades e paisagens distantes. Durante anos me contentei somente com as figuras. Mas, à medida que fui crescendo, fui lendo aquelas mensagens de amor escritas com uma caligrafia perfeita. Sempre imaginei que o galã era um homem de chapéu-coco, bengala e brilhante na gravata. Mas aquelas linhas eram de paixão arrebatadora. Foram enviadas a todos os pontos da Terra pelo visitante, cheias de frases deslumbrantes, de audácia enamorada. Comecei a enamorar-me também de Maria Thielman. Imaginava-a como uma atriz desdenhosa, coroada de pérolas. Como haviam chegado ao baú de minha mãe essas cartas? Nunca pude saber.

        O ano de 1910 chegou à cidade de Temuco. Nesse ano memorável entrei no liceu, um vasto casarão com salas desarrumadas e subterrâneos sombrios. Do alto do liceu, na primavera, se divisava o ondulante e delicioso rio Cautín, com suas margens cheias de maçãs silvestres. Fugíamos das aulas para mergulhar os pés na água fria que corria sobre as pedras brancas.

        Mas o liceu era um território de perspectivas imensas para meus seis anos de idade. Tudo tinha possibilidade de mistério: o laboratório de Física (onde não me deixavam entrar), cheio de instrumentos deslumbrantes, de retortas e pequenas cubas; a biblioteca, eternamente fechada. (Os filhos dos pioneiros não gostavam da sabedoria.) No entanto, o lugar de maior fascínio era o subterrâneo. Havia ali um silêncio e uma escuridão muito grandes. A luz das velas brincávamos de guerra, os vencedores amarravam os prisioneiros nas velhas colunas. E conservo na memória o cheiro de umidade, de lugar escondido, de túmulo, que emanava do subterrâneo do liceu de Temuco.

        Fui crescendo. Os livros começaram a me interessar. Nas façanhas de Buffalo Bill, nas * In: William J. Bennett, O livro das virtudes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993. viagens de Salgari, foi se estendendo meu espírito pelas regiões do sonho. Os primeiros amores, os puríssimos, se desenvolveram em cartas enviadas a Blanca Wilson. Esta menina era filha do ferreiro e um dos rapazes, perdido de amor por ela, pediu-me que escrevesse por ele suas cartas amorosas. Não me lembro de como seriam estas cartas que foram talvez meus primeiros trabalhos literários, pois, certa vez, ao encontrar-me com a estudante, esta me perguntou se era eu o autor das cartas que seu namorado lhe levava.

        Não me atrevi a renegar minhas obras e muito perturbado respondi que sim. Então ela me deu um doce de marmelo que, é claro, não quis comer e guardei como um tesouro. Afastado assim meu companheiro do coração da menina, continuei escrevendo intermináveis cartas de amor e recebendo doces de marmelo.

        Os meninos no liceu não conheciam nem respeitavam minha condição de poeta. A fronteira tinha esse caráter maravilhoso de far west sem preconceitos. Meus companheiros se chamavam Schnakes, Schlers, Hausers, Smiths, Taitos, Seranis. Éramos iguais entre os Aracenas e os Ramirez e os Rayes. Não havia sobrenomes bascos. Havia sefarditas: Albalas, Francos. Havia irlandeses: McGyntis. Poloneses: Yanichewkys. Brilhavam com luz escura e sobrenome araucanos, com um perfume de madeira e água: Melivilus, Catrileos.

        Combatíamos, às vezes, no grande galpão fechado, com bolotas de azinheira. Só quem levou um bolotaço sabe o quanto dói. Antes de chegar ao liceu enchíamos os bolsos de munição. Eu tinha habilidade escassa, nenhuma força e pouca astúcia. Sempre levava a pior. Enquanto me entretinha observando a maravilhosa bolota, verde e perfeita com sua carapuça rugosa e cinzenta, enquanto tratava desajeitadamente de fabricar com ela um desses pitos que logo me arrebatavam, já me havia caído um dilúvio de bolotaços na cabeça. Quando estava no segundo ano me ocorreu usar um chapéu impermeável verde bem vivo. Este chapéu pertencia a meu pai, assim como sua manta de lã, suas lanternas de sinais verdes e vermelhos que estavam carregados de fascínio para mim que, sempre que podia, levava ao colégio para me pavonear [...]. Certa vez chovia implacavelmente e nada parecia mais formidável que o chapéu de oleado verde como um papagaio. Apenas cheguei à sacada meu chapéu voou como um papagaio. Eu o perseguia e quando ia pegá-lo, voava de novo entre a gritaria mais ensurdecedora que jamais escutei. Nunca mais voltei a vê-lo.

        Nestas recordações não vejo bem a precisão periódica do tempo. Confundem-me acontecimentos minúsculos que tiveram importância para mim e parece que esta foi a primeira aventura erótica, estranhamente misturada à história natural. Talvez o amor e a natureza foram desde muito cedo as jazidas de minha poesia.

        Em frente à minha casa viviam duas meninas que continuamente lançavam olhares que me ruborizavam. O que tinha eu de tímido e de silencioso, tinham elas de precoces e diabólicas. Uma vez, parado na porta de minha casa, tratava de não olhar para elas, mas tinham nas mãos algo que me fascinava. Aproximei-me com cautela e me mostraram um ninho de pássaro silvestre, tecido com musgo e pluminhas, que guardava em seu interior maravilhosos ovinhos de cor turquesa. Quando fui tomá-lo, uma delas disse que primeiro deviam tirar minhas roupas. Tremi de terror e escapuli rapidamente, perseguido pelas jovens ninfas que exibiam o instigante tesouro. Na perseguição entrei por um beco até uma padaria fechada de propriedade de meu pai. As assaltantes conseguiram me alcançar e começaram a tirar minhas calças quando pelo corredor se ouviam os passos de meu pai. Era uma vez um ninho. Os maravilhosos ovinhos se quebraram na padaria abandonada enquanto, debaixo do balcão, assaltado e assaltantes contínhamos a respiração.

        Lembro-me também de que uma vez, buscando os pequenos objetos e os minúsculos seres de meu mundo no fundo da casa, achei um buraco na tábua da cerca. Olhei através do vão e vi um terreno igual ao de minha casa, baldio e silvestre. Recuei uns passos porque adivinhei que ia acontecer alguma coisa. Súbito apareceu uma mão. Era a mão pequenina de um menino da minha idade. Quando me aproximei, a mão já não estava e, em seu lugar, havia uma pequena ovelha branca.

        Era uma ovelha de lã desbotada. As rodas com que deslizava haviam sumido. Nunca tinha visto uma ovelha tão linda. Fui em casa e voltei com um presente que deixei no mesmo lugar: uma pinha de pinheiro entreaberta, cheirosa e balsâmica, que eu adorava.

        Nunca mais vi a mão do menino. Nunca mais voltei a ver uma ovelhinha como aquela. Perdi-a num incêndio. E ainda agora, nestes anos todos, quando passo por uma loja de brinquedos, olho furtivamente as vitrinas. Mas é inútil. Nunca mais se fez uma ovelha como aquela.

Entendendo o conto:

01 – Qual foi o incidente que ocorreu quando o narrador tentou alcançar o papagaio no baú de sua casa?

      O narrador caiu de cabeça dentro do baú.

02 – O que o baú da mãe do narrador continha além do papagaio de calendário?

      O baú continha leques preciosos e cartões-postais, incluindo uma série de cartas de amor endereçadas a Maria Thielman.

03 – Quem eram os remetentes das cartas de amor encontradas no baú?

      Os remetentes eram alguém que assinava como Henrique ou Alberto, enviando as cartas para Maria Thielman.

04 – Como o narrador descreve as cartas de amor encontradas no baú?

      O narrador descreve as cartas como cheias de frases deslumbrantes e audácia enamorada, enviadas a vários lugares da Terra.

05 – Qual era a visão do narrador do liceu que ele frequentou em 1910?

      O liceu era visto como um território de perspectivas imensas, com o laboratório de Física, a biblioteca e, especialmente, o subterrâneo, que fascinava o narrador.

06 – O que o narrador fazia no subterrâneo do liceu durante a primavera?

      No subterrâneo, o narrador brincava de guerra com seus colegas, amarrando os prisioneiros nas velhas colunas.

07 – Quem era Maria Thielman no contexto das cartas de amor?

      Maria Thielman era a destinatária das cartas de amor encontradas no baú.

08 – Como o narrador se envolveu nos primeiros amores literários?

      O narrador escrevia cartas de amor em nome de um rapaz apaixonado por Blanca Wilson, e isso levou a uma situação constrangedora quando Blanca descobriu a verdade.

09 – O que aconteceu com o chapéu verde do narrador durante um dia chuvoso?

      O chapéu verde voou como um papagaio durante uma chuva, e o narrador nunca mais o viu.

 

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