Conto: Infância e poesia
Pablo Neruda
Havia em minha casa também um baú com
objetos fascinantes. No fundo resplandecia um maravilhoso papagaio de
calendário. Um dia em que minha mãe remexia aquela arca sagrada, caí de cabeça dentro
ao tentar alcançar o papagaio. Mas quando fui crescendo abri-a secretamente.
Havia lá uns leques preciosos e impalpáveis.
Conservo outra lembrança daquele baú. A
primeira história de amor que me apaixonou. Eram centenas de cartões-postais, enviados
por alguém que os assinava não sei se Henrique ou Alberto, e todos dirigidos a
Maria Thielman. Estes cartões eram maravilhosos. Eram retratos das grandes
atrizes da época com pedacinhos de vidro engastados e às vezes com cabeleira
colada. Havia também castelos, cidades e paisagens distantes. Durante anos me
contentei somente com as figuras. Mas, à medida que fui crescendo, fui lendo
aquelas mensagens de amor escritas com uma caligrafia perfeita. Sempre imaginei
que o galã era um homem de chapéu-coco, bengala e brilhante na gravata. Mas
aquelas linhas eram de paixão arrebatadora. Foram enviadas a todos os pontos da
Terra pelo visitante, cheias de frases deslumbrantes, de audácia enamorada.
Comecei a enamorar-me também de Maria Thielman. Imaginava-a como uma atriz
desdenhosa, coroada de pérolas. Como haviam chegado ao baú de minha mãe essas
cartas? Nunca pude saber.
O ano de 1910 chegou à cidade de
Temuco. Nesse ano memorável entrei no liceu, um vasto casarão com salas
desarrumadas e subterrâneos sombrios. Do alto do liceu, na primavera, se
divisava o ondulante e delicioso rio Cautín, com suas margens cheias de maçãs
silvestres. Fugíamos das aulas para mergulhar os pés na água fria que corria
sobre as pedras brancas.
Mas o liceu era um território de
perspectivas imensas para meus seis anos de idade. Tudo tinha possibilidade de
mistério: o laboratório de Física (onde não me deixavam entrar), cheio de
instrumentos deslumbrantes, de retortas e pequenas cubas; a biblioteca,
eternamente fechada. (Os filhos dos pioneiros não gostavam da sabedoria.) No
entanto, o lugar de maior fascínio era o subterrâneo. Havia ali um silêncio e
uma escuridão muito grandes. A luz das velas brincávamos de guerra, os
vencedores amarravam os prisioneiros nas velhas colunas. E conservo na memória
o cheiro de umidade, de lugar escondido, de túmulo, que emanava do subterrâneo
do liceu de Temuco.
Fui crescendo. Os livros começaram a me
interessar. Nas façanhas de Buffalo Bill, nas * In: William J. Bennett, O livro
das virtudes. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993. viagens de Salgari, foi se
estendendo meu espírito pelas regiões do sonho. Os primeiros amores, os
puríssimos, se desenvolveram em cartas enviadas a Blanca Wilson. Esta menina
era filha do ferreiro e um dos rapazes, perdido de amor por ela, pediu-me que
escrevesse por ele suas cartas amorosas. Não me lembro de como seriam estas
cartas que foram talvez meus primeiros trabalhos literários, pois, certa vez,
ao encontrar-me com a estudante, esta me perguntou se era eu o autor das cartas
que seu namorado lhe levava.
Não me atrevi a renegar minhas obras e
muito perturbado respondi que sim. Então ela me deu um doce de marmelo que, é
claro, não quis comer e guardei como um tesouro. Afastado assim meu companheiro
do coração da menina, continuei escrevendo intermináveis cartas de amor e
recebendo doces de marmelo.
Os meninos no liceu não conheciam nem
respeitavam minha condição de poeta. A fronteira tinha esse caráter maravilhoso
de far west sem preconceitos. Meus companheiros se chamavam Schnakes, Schlers,
Hausers, Smiths, Taitos, Seranis. Éramos iguais entre os Aracenas e os Ramirez
e os Rayes. Não havia sobrenomes bascos. Havia sefarditas: Albalas, Francos.
Havia irlandeses: McGyntis. Poloneses: Yanichewkys. Brilhavam com luz escura e
sobrenome araucanos, com um perfume de madeira e água: Melivilus, Catrileos.
Combatíamos, às vezes, no grande galpão
fechado, com bolotas de azinheira. Só quem levou um bolotaço sabe o quanto dói.
Antes de chegar ao liceu enchíamos os bolsos de munição. Eu tinha habilidade
escassa, nenhuma força e pouca astúcia. Sempre levava a pior. Enquanto me
entretinha observando a maravilhosa bolota, verde e perfeita com sua carapuça
rugosa e cinzenta, enquanto tratava desajeitadamente de fabricar com ela um
desses pitos que logo me arrebatavam, já me havia caído um dilúvio de bolotaços
na cabeça. Quando estava no segundo ano me ocorreu usar um chapéu impermeável
verde bem vivo. Este chapéu pertencia a meu pai, assim como sua manta de lã,
suas lanternas de sinais verdes e vermelhos que estavam carregados de fascínio
para mim que, sempre que podia, levava ao colégio para me pavonear [...]. Certa
vez chovia implacavelmente e nada parecia mais formidável que o chapéu de oleado
verde como um papagaio. Apenas cheguei à sacada meu chapéu voou como um
papagaio. Eu o perseguia e quando ia pegá-lo, voava de novo entre a gritaria
mais ensurdecedora que jamais escutei. Nunca mais voltei a vê-lo.
Nestas recordações não vejo bem a
precisão periódica do tempo. Confundem-me acontecimentos minúsculos que tiveram
importância para mim e parece que esta foi a primeira aventura erótica,
estranhamente misturada à história natural. Talvez o amor e a natureza foram
desde muito cedo as jazidas de minha poesia.
Em frente à minha casa viviam duas
meninas que continuamente lançavam olhares que me ruborizavam. O que tinha eu
de tímido e de silencioso, tinham elas de precoces e diabólicas. Uma vez,
parado na porta de minha casa, tratava de não olhar para elas, mas tinham nas
mãos algo que me fascinava. Aproximei-me com cautela e me mostraram um ninho de
pássaro silvestre, tecido com musgo e pluminhas, que guardava em seu interior
maravilhosos ovinhos de cor turquesa. Quando fui tomá-lo, uma delas disse que
primeiro deviam tirar minhas roupas. Tremi de terror e escapuli rapidamente,
perseguido pelas jovens ninfas que exibiam o instigante tesouro. Na perseguição
entrei por um beco até uma padaria fechada de propriedade de meu pai. As assaltantes
conseguiram me alcançar e começaram a tirar minhas calças quando pelo corredor
se ouviam os passos de meu pai. Era uma vez um ninho. Os maravilhosos ovinhos
se quebraram na padaria abandonada enquanto, debaixo do balcão, assaltado e
assaltantes contínhamos a respiração.
Lembro-me também de que uma vez,
buscando os pequenos objetos e os minúsculos seres de meu mundo no fundo da
casa, achei um buraco na tábua da cerca. Olhei através do vão e vi um terreno
igual ao de minha casa, baldio e silvestre. Recuei uns passos porque adivinhei
que ia acontecer alguma coisa. Súbito apareceu uma mão. Era a mão pequenina de
um menino da minha idade. Quando me aproximei, a mão já não estava e, em seu
lugar, havia uma pequena ovelha branca.
Era uma ovelha de lã desbotada. As
rodas com que deslizava haviam sumido. Nunca tinha visto uma ovelha tão linda.
Fui em casa e voltei com um presente que deixei no mesmo lugar: uma pinha de
pinheiro entreaberta, cheirosa e balsâmica, que eu adorava.
Nunca mais vi a mão do menino. Nunca
mais voltei a ver uma ovelhinha como aquela. Perdi-a num incêndio. E ainda
agora, nestes anos todos, quando passo por uma loja de brinquedos, olho
furtivamente as vitrinas. Mas é inútil. Nunca mais se fez uma ovelha como aquela.
Entendendo o conto:
01 – Qual foi o incidente que
ocorreu quando o narrador tentou alcançar o papagaio no baú de sua casa?
O narrador caiu de cabeça dentro do baú.
02 – O que o baú da mãe do
narrador continha além do papagaio de calendário?
O baú continha leques preciosos e
cartões-postais, incluindo uma série de cartas de amor endereçadas a Maria
Thielman.
03 – Quem eram os remetentes
das cartas de amor encontradas no baú?
Os remetentes
eram alguém que assinava como Henrique ou Alberto, enviando as cartas para
Maria Thielman.
04 – Como o narrador descreve
as cartas de amor encontradas no baú?
O narrador
descreve as cartas como cheias de frases deslumbrantes e audácia enamorada,
enviadas a vários lugares da Terra.
05 – Qual era a visão do
narrador do liceu que ele frequentou em 1910?
O liceu era visto
como um território de perspectivas imensas, com o laboratório de Física, a
biblioteca e, especialmente, o subterrâneo, que fascinava o narrador.
06 – O que o narrador fazia no
subterrâneo do liceu durante a primavera?
No subterrâneo, o
narrador brincava de guerra com seus colegas, amarrando os prisioneiros nas
velhas colunas.
07 – Quem era Maria Thielman
no contexto das cartas de amor?
Maria Thielman
era a destinatária das cartas de amor encontradas no baú.
08 – Como o narrador se
envolveu nos primeiros amores literários?
O narrador
escrevia cartas de amor em nome de um rapaz apaixonado por Blanca Wilson, e
isso levou a uma situação constrangedora quando Blanca descobriu a verdade.
09 – O que aconteceu com o
chapéu verde do narrador durante um dia chuvoso?
O chapéu verde
voou como um papagaio durante uma chuva, e o narrador nunca mais o viu.
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