quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CRÔNICA: O JARGÃO - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: O JARGÃO

                Luís Fernando Veríssimo 

Nenhuma figura é tão fascinante quanto o Falso Entendido. É o cara que não sabe nada de nada, mas sabe o jargão. E passa por autoridade no assunto. Um refinamento ainda maior da espécie é o tipo que não sabe o jargão. Mas inventa. 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj0OfWV6aT5jhCSVNaSYIFQ4ovpQq6vxw-aNEyr2PT1jNxKlhvDPKW5_JoZ_fON9QXofvR6UX9F_4poiVWNLpJ9cHMBlvXPlx-ujRC6fIcYxMOBFhZ0tji2t__WoV5AnvKvN0L1vAkeB6iMMbvzndwMCbZIfR-g_z7Tq6WsBA_7HIAzttOUQlEumkds0Lw/s320/JARGAO.png


      - Ó Matias, você que entende de mercado de capitais...

      - Nem tanto, nem tanto... (Uma das características do Falso Entendido é a falsa modéstia.) 

      - Você, no momento, aconselharia que tipo de aplicação? 

      - Bom. Depende do yield pretendido, do throwback e do ciclo refratário. Na faixa de papéis top market – ou o que nós chamamos de topimarque –, o throwback recai sobre o repasse e não sobre o release, entende? 

      - Francamente, não. Aí o Falso Entendido sorri com tristeza e abre os braços como quem diz “É difícil conversar com leigos...”. Uma variação do Falso Entendido é o sujeito que sempre parece saber mais do que ele pode dizer. A conversa é sobre política, os boatos cruzam os ares, mas ele mantém um discreto silêncio. Até que alguém pede a sua opinião, e ele pensa muito antes de se decidir a responder: 

     - Há muito mais coisa por trás disso do que você pensa... 

   Ou então, e esta é mortal: 

     - Não é tão simples assim...

   Faz-se aquele silêncio que precede as grandes revelações, mas o falso informado não diz nada. Fica subentendido que ele está protegendo as suas fontes em Brasília. E há o falso que interpreta. Para ele, tudo o que acontece deve ser posto na perspectiva de vastas transformações históricas que só ele está sacando. 

    - O avanço do socialismo na Europa ocorre em proporção direta ao declínio no uso de gordura animal nos países do Mercado Comum. Só não vê quem não quer. 

   E se alguém quer mais detalhe sobre a sua insólita teoria, ele vê a pergunta como manifestação de uma hostilidade bastante significativa a interpretações não ortodoxas, e passa a interpretar os motivos de quem o questiona, invocando a Igreja medieval, os grandes hereges da história, e vocês sabiam que toda a Reforma se explica a partir da prisão de ventre de Lutero? 

Mas o jargão é uma tentação. Eu, por exemplo, sou fascinado pela linguagem náutica, embora minha experiência no mar se resume a algumas passagens em transatlânticos onde a única linguagem técnica que você precisa saber é “Que horas servem o bufê?”. Nunca pisei num veleiro, e se pisasse seria para dar vexame na primeira onda. Eu enjoo em escada rolante. Mas, na minha imaginação, sou um marinheiro de todos os calados. Senhor de ventos e velas e, principalmente, dos especialíssimos nomes da equipagem. 

  Me imagino no leme do meu grande veleiro, dando ordens à tripulação: 

     - Recolher a traquineta! 

     - Largar a vela bimbão, não podemos perder esse Vizeu. 

   O vizeu é um vento que nasce na costa ocidental da África, faz a volta nas Malvinas e nos ataca a boribordo, cheirando a especiarias, carcaças de baleia e, estranhamente, a uma professora que eu tive no primário. 

    - Quebra o lume da alcatra e baixar a falcatrua! 

    - Cuidado com a sanfona de Abelardo! 

   A sanfona é um perigoso fenômeno que ocorre na vela parruda em certas condições atmosféricas e que, se não contido a tempo, pode decapitar o piloto. Até hoje não encontraram a cabeça do Comodoro Abelardo. 

   - Cruzar a spínola! Domar a espátula! Montar a sirigaita! Tudo a macambúzio e dos quartos de trela senão afundamos, e o capitão é o primeiro a pular. 

   - Cortar o cabo de Eustáquio! 

VERÍSSIMO, Luís Fernando. As mentiras que os homens contam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, pp. 69-71 (Adaptado).

Entendendo o texto

01. Quem é o personagem principal da crônica "O JARGÃO"?

      O personagem principal da crônica é o Falso Entendido, que se destaca por sua falta de conhecimento real, mas habilidade em usar jargões para parecer uma autoridade em diversos assuntos.

02. Qual é a característica marcante do Falso Entendido?

      O Falso Entendido possui a habilidade de utilizar jargões, mesmo sem entender completamente seu significado, criando uma falsa impressão de expertise nos assuntos discutidos.

03. Como o Falso Entendido reage quando questionado sobre sua suposta especialidade?

      O Falso Entendido muitas vezes responde com falsa modéstia, sorri com tristeza e utiliza termos técnicos e complexos, deixando os interlocutores confusos.

04. Quais são algumas variações do Falso Entendido demonstrações na crônica?

       Além do Falso Entendido clássico, há o que parece saber mais do que diz, o que interpreta eventos de forma peculiar e o que guarda o silêncio estratégico, indicando conhecimento privilegiado.

05. Como o autor descreve a tentativa de jargão em sua própria vida?

       O autor revela ser fascinado pela linguagem náutica, mesmo sem experiência no mar, criando uma imaginação de si mesmo como um hábil marinheiro comandando um veleiro e utilizando termos técnicos fictícios.

06. Qual é a importância do jargão na narrativa?

      O jargão serve como uma ferramenta para ilustrar a falsa expertise e a tentativa de aparentar conhecimento em áreas específicas, mesmo quando a compreensão real é limitada.

07. Como o autor explora o humor na crônica?

      O autor utiliza o contraste entre a falta de conhecimento real dos personagens e a confiança aparente gerada pelo uso de jargões, criando situações cômicas e irônicas.

08. Existe um clímax na crônica "O JARGÃO"?

      O texto não apresenta um clímax tradicional, mas sim uma sucessão de situações humorísticas envolvendo o Falso Entendido e suas interações com os outros personagens.

09. Como a crônica se desenvolve até seu estágio final?

      A crônica se desenvolve explorando as diversas facetas do Falso Entendido, suas interações e a tentativa do uso de jargões. Não segue uma narrativa linear, mas sim uma sequência de episódios humorísticos.

10. Qual é a mensagem subjacente na crônica "O JARGÃO"?

      A crônica aborda satiricamente a vaidade de parecer explorador utilizando jargões, destacando a falta de substância por trás de uma linguagem técnica aparentemente sofisticada.

 

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