Crônica: O JARGÃO
Luís
Fernando Veríssimo
Nenhuma
figura é tão fascinante quanto o Falso Entendido. É o cara que não sabe nada de
nada, mas sabe o jargão. E passa por autoridade no assunto. Um refinamento
ainda maior da espécie é o tipo que não sabe o jargão. Mas inventa.
- Ó Matias, você que entende de mercado de capitais...
- Nem tanto, nem tanto... (Uma das características do Falso
Entendido é a falsa modéstia.)
- Você, no momento, aconselharia que tipo de aplicação?
- Bom. Depende do yield pretendido, do throwback e do ciclo
refratário. Na faixa de papéis top market – ou o que nós chamamos de topimarque
–, o throwback recai sobre o repasse e não sobre o release, entende?
- Francamente, não. Aí o Falso Entendido sorri com tristeza e
abre os braços como quem diz “É difícil conversar com leigos...”. Uma variação
do Falso Entendido é o sujeito que sempre parece saber mais do que ele pode
dizer. A conversa é sobre política, os boatos cruzam os ares, mas ele mantém um
discreto silêncio. Até que alguém pede a sua opinião, e ele pensa muito antes
de se decidir a responder:
- Há muito mais coisa por trás disso do que você pensa...
Ou então, e esta é mortal:
- Não é tão simples assim...
Faz-se aquele silêncio que precede as grandes revelações, mas o falso
informado não diz nada. Fica subentendido que ele está protegendo as suas
fontes em Brasília. E há o falso que interpreta. Para ele, tudo o que acontece
deve ser posto na perspectiva de vastas transformações históricas que só ele
está sacando.
- O avanço do socialismo na Europa ocorre em proporção direta ao
declínio no uso de gordura animal nos países do Mercado Comum. Só não vê quem
não quer.
E se alguém quer mais detalhe sobre a sua insólita teoria, ele vê a
pergunta como manifestação de uma hostilidade bastante significativa a
interpretações não ortodoxas, e passa a interpretar os motivos de quem o
questiona, invocando a Igreja medieval, os grandes hereges da história, e vocês
sabiam que toda a Reforma se explica a partir da prisão de ventre de
Lutero?
Mas
o jargão é uma tentação. Eu, por exemplo, sou fascinado pela linguagem náutica,
embora minha experiência no mar se resume a algumas passagens em
transatlânticos onde a única linguagem técnica que você precisa saber é “Que
horas servem o bufê?”. Nunca pisei num veleiro, e se pisasse seria para dar
vexame na primeira onda. Eu enjoo em escada rolante. Mas, na minha imaginação,
sou um marinheiro de todos os calados. Senhor de ventos e velas e,
principalmente, dos especialíssimos nomes da equipagem.
Me imagino no leme do meu grande veleiro, dando ordens à tripulação:
- Recolher a traquineta!
- Largar a vela bimbão, não podemos perder esse Vizeu.
O vizeu é um vento que nasce na costa ocidental da África, faz a volta
nas Malvinas e nos ataca a boribordo, cheirando a especiarias, carcaças de
baleia e, estranhamente, a uma professora que eu tive no primário.
- Quebra o lume da alcatra e baixar a falcatrua!
- Cuidado com a sanfona de Abelardo!
A sanfona é um perigoso fenômeno que ocorre na vela parruda em certas
condições atmosféricas e que, se não contido a tempo, pode decapitar o piloto.
Até hoje não encontraram a cabeça do Comodoro Abelardo.
- Cruzar a spínola! Domar a espátula! Montar a sirigaita! Tudo a
macambúzio e dos quartos de trela senão afundamos, e o capitão é o primeiro a
pular.
- Cortar o cabo de Eustáquio!
VERÍSSIMO, Luís Fernando. As mentiras que os homens contam. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001, pp. 69-71 (Adaptado).
Entendendo
o texto
01.
Quem é o personagem principal da crônica "O JARGÃO"?
O personagem principal da crônica é o
Falso Entendido, que se destaca por sua falta de conhecimento real, mas
habilidade em usar jargões para parecer uma autoridade em diversos assuntos.
02.
Qual é a característica marcante do Falso Entendido?
O Falso Entendido possui a habilidade de
utilizar jargões, mesmo sem entender completamente seu significado, criando uma
falsa impressão de expertise nos assuntos discutidos.
03.
Como o Falso Entendido reage quando questionado sobre sua suposta
especialidade?
O Falso Entendido muitas vezes responde
com falsa modéstia, sorri com tristeza e utiliza termos técnicos e complexos,
deixando os interlocutores confusos.
04.
Quais são algumas variações do Falso Entendido demonstrações na crônica?
Além do Falso Entendido clássico, há o
que parece saber mais do que diz, o que interpreta eventos de forma peculiar e
o que guarda o silêncio estratégico, indicando conhecimento privilegiado.
05.
Como o autor descreve a tentativa de jargão em sua própria vida?
O autor revela ser fascinado pela
linguagem náutica, mesmo sem experiência no mar, criando uma imaginação de si
mesmo como um hábil marinheiro comandando um veleiro e utilizando termos
técnicos fictícios.
06.
Qual é a importância do jargão na narrativa?
O jargão serve como uma ferramenta para
ilustrar a falsa expertise e a tentativa de aparentar conhecimento em áreas
específicas, mesmo quando a compreensão real é limitada.
07.
Como o autor explora o humor na crônica?
O autor utiliza o contraste entre a falta
de conhecimento real dos personagens e a confiança aparente gerada pelo uso de
jargões, criando situações cômicas e irônicas.
08.
Existe um clímax na crônica "O JARGÃO"?
O texto não apresenta um clímax
tradicional, mas sim uma sucessão de situações humorísticas envolvendo o Falso
Entendido e suas interações com os outros personagens.
09.
Como a crônica se desenvolve até seu estágio final?
A crônica se desenvolve explorando as
diversas facetas do Falso Entendido, suas interações e a tentativa do uso de
jargões. Não segue uma narrativa linear, mas sim uma sequência de episódios
humorísticos.
10.
Qual é a mensagem subjacente na crônica "O JARGÃO"?
A crônica aborda satiricamente a vaidade
de parecer explorador utilizando jargões, destacando a falta de substância por
trás de uma linguagem técnica aparentemente sofisticada.
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