Texto: Código de Menores x ECA
Mudanças de Paradigmas – 02 de
dezembro de 2016
Lembrando o início da década de 90,
veremos um período em que as organizações sociais, o MNMMR e vários
profissionais engajados na luta pelos direitos da criança, comemorarem
conquistas. A inclusão desses direitos na Constituição Federal Brasileira
(1988) e a promulgação do ECA (1990). Quem pôde presenciar (mesmo que em filme,
como eu) a participação de crianças e adolescentes num voto simbólico que
ocorreu na Câmara Federal, dizendo sim ao ECA, sabe o quanto essa experiência
foi gratificante.
Já refletindo sobre as mudanças entre o
Código de Menores e o ECA, podemos afirmar que o ECA foi elaborado com a
participação dos movimentos sociais. O caráter participativo deste processo é
uma primeira e importante diferença. O protagonismo da sociedade se impõe pela
expressão de seus interesses. É a democracia, também recentemente conquistada,
se revelando pela prática da participação popular. É a proposição de nova ordem
jurídica a partir da proposta de mudança de mentalidade da sociedade em relação
às suas crianças e adolescentes.
Uma segunda mudança que merece destaque
é o caráter universal dos direitos conferidos. Reside no reconhecimento legal
do direito de todas as crianças e adolescentes à cidadania independentemente da
classe social (Pino, 1990). Enquanto o antigo CM destinava-se somente àqueles
em “situação irregular” ou inadaptados, a nova Lei diz que TODAS as crianças e
adolescentes são sujeitos de direitos. Eis, no meu ponto de vista, uma mudança
de paradigma.
No Código, havia um caráter
discriminatório, que associava a pobreza à “delinquência”, encobrindo as reais
causas das dificuldades vividas por esse público, a enorme desigualdade de
renda e a falta de alternativas de vida. Essa inferiorização das classes
populares continha a ideia de norma, à qual todos deveriam se enquadrar. Como
se os mais pobres tivessem um comportamento desviante e uma certa “tendência
natural à desordem”. Portanto, inaptos a conviver em sociedade. Natural que
fossem condenados à segregação. Os meninos que pertenciam a esse segmento da
população, considerados “carentes, infratores ou abandonados” eram, na verdade,
vítimas da falta de proteção. Mas, a norma lhes impunha vigilância.
Além disso, o antigo Código funcionava
como instrumento de controle, transferindo para o Estado a tutela dos “menores
inadaptados” e assim, justificava a ação dos aparelhos repressivos. Ao
contrário, o ECA serve como instrumento de exigibilidade de direitos àqueles
que estão vulnerabilizados pela sua violação.
O reconhecimento da criança e do
adolescente como sujeitos de direitos, e não mais como simples portadores de
carências (Costa,1990), despersonaliza o fenômeno, e principalmente,
responsabiliza toda sociedade pela criação das condições necessárias ao
cumprimento do novo direito.
Isso não significa negar a relação de
dependência das crianças aos adultos e nem a responsabilidade que os últimos
têm quanto ao desenvolvimento dos primeiros. Contudo, significa impedir a
ocorrência daquilo que, nesta relação, traz a marca do autoritarismo, da
violência e do sofrimento (Teixeira, 1991). Ao assumir que a criança e o
adolescente são “pessoas em desenvolvimento”, a nova Lei deixa de
responsabilizar algumas crianças pela irresponsabilidade dos adultos. Agora,
são TODOS os adultos que devem assumir a responsabilidade pelos seus atos em
relação às TODAS as crianças e aos adolescentes.
A mudança na referência nominal também
contém uma diferença de paradigma. A expressão “menor” é substituída por
“criança ou adolescente” para negar o conceito de incapacidade na infância. O
conceito de infância ligado à expressão “menoridade” contém em si a ideia de
não ter. Ser “menor” significa não ter dezoito anos e, portanto, não ter
capacidades, não ter atingido um estágio de plenitude e não ter, inclusive,
direitos (Volpi, 2000). O paradigma evolucionista aqui revelado, fundamentava a
teoria de desenvolvimento infantil desenvolvida a partir das
competências específicas dos adultos.
Com a formulação do ECA, inicia-se um
debate para compreender as competências e capacidades da população
infanto-juvenil. O paradigma muda, os menores passam a ser denominados crianças
e adolescentes em situação peculiar de desenvolvimento. As crianças e
adolescentes passam a ser vistos pelo seu presente, pelas possibilidades que
têm nessa idade e não pelo futuro, pela esperança do que virão a ser. Isto
significa trazer à tona a positividade do conceito de infância, que é marcada
pela PROVISORIEDADE E SINGULARIDADE. Uma constante metamorfose. Um ser que
é processual.
Insisto na ideia da SINGULARIDADE
vivida pelas crianças e adolescentes. São seres sócio-históricos que não apenas
reagem às determinações sociais, mas são também SUJEITOS de ações. Participam
de um momento histórico em que criam e transformam sua existência, a partir de
suas experiências cotidianas, que são vividas de forma singular.
Neste sentido, o que define a
adolescência não é uma crise inerente à uma idade. Nem uma essência
biológica universal. É um conjunto de características, que inscreve uma
qualidade de pensamento que é diferente na infância e na idade considerada
adulta. Uma qualidade de pensamento que possibilita a reflexão sobre os
significados e sentidos de seus interesses.
Ressalto com isso, que a adolescência
não pode ser considerada como uma fase propícia à transgressão. A atuação do
adolescente depende das relações que ele vive e das que ele conhece no meio
social. Ele atribui SENTIDOS a estas vivências e estes vão servir como
parâmetros para suas futuras relações. Sabemos que quanto mais amplo e
diversificado for o universo cultural do indivíduo, maior a possibilidade de
seu desenvolvimento, conhecimento do mundo, de seus próprios interesses e de
sua capacidade de criação.
Não podemos encarar as crises vividas
na adolescência como patológicas e nem criar um modelo único de adolescência.
Algumas concepções de adolescência negam os aspectos culturais e políticos.
Descontextualizam a adolescência, criando estereótipos que impedem a
compreensão mais ampla deste fenômeno. Aí veremos as crises como desarranjos,
já que a harmonia é “pressuposto natural” (Vygotsky, 1998). O desenvolvimento
de um indivíduo não é movido pela harmonia, mas pelas contradições, pelos
confrontos. Essas contradições são próprias do desenvolvimento humano em
qualquer momento da vida, não se limitam à adolescência. Esta forma de
compreensão deve afastar a ideia de transgressão ligada à adolescência. Se
pensarmos a adolescência como fenômeno psicossocial, não devemos considerá-los
como potenciais agressores. A forma como a adolescência será vivida por cada
indivíduo vai depender das condições dadas para seu desenvolvimento. Vai
depender do respeito ao seu direito de sobreviver, da garantia de sua
integridade física, psicológica e moral.
Neste ponto, o ECA propõe um
reordenamento institucional. Rompe com práticas fundadas na filantropia ou
caridade (Pino, 1990) e institui uma nova ordem onde os direitos das crianças
geram responsabilidades para a família, para o Estado e para a sociedade.
Responsabilidades pela criação e implementação das políticas sociais relativas
a esses direitos.
Neste campo, o Estatuto introduz um
elemento novo que é a constituição de Conselhos de direitos e dos tutelares.
Elementos fundamentais para as novas políticas de atendimento, os conselhos
também são espaços de participação da sociedade organizada. Governo e
sociedade, juntos, assumem responsabilidade pela formulação e controle das
ações relativas aos direitos da Criança e do Adolescente.
Apesar das importantes mudanças de
paradigma, sabemos que, olhando para a prática, o saldo destes 12 anos não é
muito positivo. Sejamos mais claros/as: o ECA não foi implementado. É fato que
algumas políticas públicas passaram por reformulações, mas, infelizmente, nem
todos atendem às concepções expressas na legislação vigente.
Destacamos aqui, o atendimento aos
adolescentes autores de ato infracional. O próprio Ministério da Justiça fez,
em 1997, um levantamento nacional do atendimento às medidas sócio educativas
que mostrava a não implementação do ECA (Apud, Teixeira, 2002).
No caso da privação de liberdade aqui
em São Paulo, o problema está na persistência de uma prática repressiva e no
descumprimento das garantias e prerrogativas legais. Estamos há doze anos
transcorridos da promulgação do ECA e ainda não foram realizadas, na Febem
Paulista, as necessárias adequações à nova legislação. Num rápido panorama
deste quadro, vemos a omissão das autoridades responsáveis e a “preferência”
pela aplicação de medidas de privação de liberdade nos casos em que caberiam
medidas sócio educativas em meio aberto . Também é fato que os adolescentes
autores de ato infracional que estão privados de liberdade, vivem esta situação
sob a lógica da “Tranca e couro”, quer dizer, estão sendo TORTURADOS
cotidianamente.
As inúmeras rebeliões são um duro
emblema da negligência aos direitos conquistados com a nova legislação, dita
aliás, pelos próprios adolescentes que encontram-se encarcerados. No último
sábado (13/07/02), assistimos a mais uma: Franco da Rocha com a entrada da
Tropa de Choque para contê-la.
A desumanidade e crueldade vão
desnudando variadas formas e métodos de humilhação e agressão. A imagem
vinda do relato de adolescentes que apanham com ferros/tacos que trazem
inscritas as palavras Direitos Humanos e ECA, entre outras, é o próprio
retrato/desenho esculpido do reverso da lei.
Vemos ainda, projetos retrógrados de
propostas de redução da idade de imputabilidade penal, além do discurso de
pessoas que acreditam ainda que o ECA serve apenas para encobrir atos
delituosos de adolescentes, protegê-los, retirando-lhes a responsabilidade.
Aqui temos também um outro problema, o da mudança de mentalidade, tarefa esta
que depende também de um processo histórico e da vontade política de educadores
e profissionais na discussão do ECA.
Mas como nos mostra Chauí (1994):
“Se nascemos numa sociedade que nos
ensina certos valores morais -justiça, igualdade, veracidade, generosidade,
coragem, amizade, direito à felicidade – e, no entanto, impede a concretização
deles porque está organizada e estruturada de modo a impedi-los, o
reconhecimento da contradição entre o ideal e a realidade é o primeiro momento
da liberdade e da vida ética como recusa da violência. O segundo momento é a
busca de brechas pelas quais possa passar o possível, isto é, uma outra
sociedade, que concretize no real aquilo que a nossa propõe no ideal…O terceiro
momento é o da nossa decisão de agir e da escolha dos meios para a ação. O
último momento da liberdade é a realização da ação para transformar um possível
num real, uma possibilidade numa realidade” (Chauí, p.365).
E essas últimas tarefas, se fazem, para
nós, muito urgentes… não temos mais tempo a perder.
É preciso comemorar os doze anos do ECA,
com a certeza, de que, se ainda não conseguimos implementá-lo, buscamos
caminhos. É preciso ousar sonhar e ousar transformar. É necessário uma maior e
melhor organização de todos os setores da sociedade com a força e felicidade
humanas, compartilhando a ideia de que a diferença e o outro são importantes
para o desenvolvimento de cada um de nós…A lei já nos fortalece…
Referências bibliográficas
COSTA, A. C. G. da, O novo direito da infância e da
juventude do Brasil: 10 anos do EFA – Avaliando conquistas e projetando metas.
Cad.1- Unicef, 1990.
PINO, A. Direitos e realidade
social da criança no Brasil. A propósito do “Estatuto da Criança e do
Adolescente”. Revista Educação & Sociedade, ano XI, n.36, p.61-79, ago.,
1990.
TEIXIEIRA, M.L.T. O estudo da
criança e do adolescente e a questão do delito. Cadernos
Populares/n.3, Sitraemfa, 1991.
TEIXIEIRA, M.L.T. Adolescência
– violência: uma ferida de nosso tempo. São Paulo, 2002. . Tese (Doutorado).
Serviço Social, PUC/SP.
VOLPI, M. (UNICEF) I Encontro
Estadual de Educação Social na rua. São Paulo, jul,2000 (Palestra).
VYGOTSKY, L. S. Formação
Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 5ªed., 1998.
Ana Silvia Ariza de Souza é
psicóloga e mestre em Psicologia Social pela PUC-SP
Publicado em 20/04/2004
Entendendo o texto:
01 – Quando ocorreu a
promulgação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)?
O ECA foi
promulgado em 1990.
02 – Qual é a primeira
diferença mencionada no texto entre o Código de Menores e o ECA?
A primeira
diferença destacada é o caráter participativo do processo de elaboração do ECA,
com a participação dos movimentos sociais.
03 – O que o antigo Código de
Menores associava à pobreza?
O
antigo Código de Menores associava a pobreza à "delinquência".
04 – Qual é a mudança de
paradigma mencionada no texto em relação à infância?
A mudança de
paradigma envolve o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de
direitos, não mais como simples portadores de carências.
05 – Como o ECA se relaciona
com a responsabilidade em relação às crianças e adolescentes?
O ECA torna todos
os adultos responsáveis por seus atos em relação a todas as crianças e
adolescentes.
06 – Qual é a mudança na
referência nominal destacada no texto?
A expressão
"menor" foi substituída por "criança ou adolescente" para
negar o conceito de incapacidade na infância.
07 – Como o ECA vê a
adolescência em comparação com o Código de Menores?
O ECA vê a
adolescência como uma fase de singularidade e possibilidades no presente, não
como uma fase propícia à transgressão.
08 – Que elementos
institucionais o ECA introduz para promover os direitos das crianças?
O ECA introduz a
constituição de Conselhos de direitos e dos tutelares como elementos
fundamentais para as novas políticas de atendimento.
09 – Como o texto descreve a
implementação do ECA na prática?
O texto afirma
que, na prática, o ECA não foi totalmente implementado, especialmente no que
diz respeito ao atendimento aos adolescentes autores de ato infracional.
10 – Quais são os desafios
mencionados no texto em relação ao ECA?
Os desafios incluem a necessidade de
mudar a mentalidade, garantir o respeito aos direitos das crianças e
adolescentes, e superar a persistência de práticas repressivas e desumanas,
especialmente na privação de liberdade.
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