CONTO: A DANÇA DA VIDA – Bahia, 1889
Heloísa Prieto
Sempre digo que sou uma pessoa de
sorte. Na vida tive tudo o que desejei, como aprender a escrever, em português
e francês. No sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento,
poucas são as mulheres letradas e, se forem negras como eu, nem pensar. Creio
que nasci abençoada por Maria, como dizia minha mãe, e filha de Iansã, como
dizia meu avô.
Agora que minha vida está por terminar,
alegro-me com minhas lembranças. Já tenho oitenta e seis anos. Sinto-me cansada
ao caminhar. Mas minhas mãos são ágeis, minha vista é boa e passo os dias
recordando e escrevendo. Quem sabe meus netos se interessem pelo que tenho a
contar...
Quando eu era menina, as pessoas me
diziam que era muito mimosa. Sinhá Quitéria, que todos chamavam de sinhá Viúva,
ordenou que eu trabalhasse na casa grande. Deixei a senzala e comecei a dormir
no porão com as outras mucamas. Mas, na verdade passava a maior parte das
noites em claro, cuidando de meu sinhozinho.
Nunca esquecerei a primeira vez em que
o vi. A pele tão branca, os olhos tão fundos e delicados, os cabelos castanhos,
encaracolados e longos. Ele sorriu para mim, gostou do meu jeito. Passava o dia
acamado. Sofria do pulmão. O peito chiava e ele sentia muita fraqueza. Às vezes
tossia a noite inteira.
Mas nos dias em que estava disposto,
ele era muito divertido. Vendo como eu adorava os livros encadernados que
viviam na sua mesinha-de-cabeceira, sinhozinho resolveu me ensinar a ler. Só
para que depois eu lesse histórias para ele. Foi uma alegria. Aprendi tudo num
instante.
Sinhá Quitéria sempre me dizia que não
deixasse meu sinhozinho por um minuto sequer. Mas ela nem precisava dar essa
ordem. Até hoje continuamos juntos. Só vamos nos separar quando a morte vier.
Mas como estava dizendo, nas noites em
que ele sofria, eu quase morria. Não suportava vê-lo assim. Foi por isso que,
certa madrugada, eu o convenci a fugir do quarto.
Abri as cortinas que viviam fechadas e
saímos os dois pela janela. Foi assim que levei meu querido Pedro Manuel de
Assis, meu amado sinhozinho, para meu avô examiná-lo.
Meu avô nascera em Angola; conhecia as
ervas e os segredos da cura. Foi uma noite inesquecível. Quando nos aproximamos
da senzala, vi que a roda de capoeira já havia começado. Lembro-me ainda hoje
do som do berimbau e das cantigas cadenciadas.
Sinhozinho até parou de tossir. Não
tirava os olhos da ginga, dos rabos-de-arraia, das rasteiras, daquela dança
mágica da vida. A lua estava cheia, a noite clara e, à luz da fogueira, os
homens rodopiavam como se pertencessem a uma constelação de estrelas negras,
cortantes e mortais.
De repente sinhozinho me disse:
— Eu quero aprender capoeira,
Maria Macária. Diga isso ao seu avô.
Vocês podem imaginar como fiquei
apavorada. E se alguma coisa desse errado? E se alguém descobrisse?
Mas quando meu avô fitou Pedro Manuel
bem no fundo dos olhos simplesmente respondeu:
— Você é filho de Xangô. Se eu ajudar,
você nos fará justiça e descobrirá sua própria coragem.
Foi uma surpresa para mim. Nunca pensei
que meu avô um dia aceitasse ensinar capoeira a um branco. Sinhá Quitéria ficou
desconfiada quando sinhozinho lhe disse que passaria as tardes em companhia do
velho João. Mas como detestava contrariar o filho, acabou permitindo.
E foi muito, muito divertido. Porque
meu avô decidiu que aprenderíamos a ginga juntos. Mandava-nos engatinhar entre
as árvores imitando gatos e cachorros. Morríamos de rir dando rasteiras um no
outro. Aos poucos fomos aprendendo a dançar e a compreender cada som do
berimbau.
A luz do sol e o toque da terra
devolveram a saúde a sinhozinho. A chiadeira foi sumindo, o peito se desenvolvendo,
as pernas firmando e finalmente ele conseguia dormir à noite. Sinhá Quitéria
ficou muito satisfeita com o “tratamento” de meu avô, e nós começamos a ter
regalias. Mas contente mesmo ela ficou no dia da surra.
Nesse dia, sinhá Quitéria recebeu a
visita de dona Raquel, uma mulher muito antipática. Tinha nascido na Europa e
detestava a Bahia. Seu filho era seu orgulho: um moleque grandalhão que sempre
gritava com as mucamas e adorava matar passarinho. Na tarde da confusão eu
estava muito cansada e derrubei chá quente em sua roupa quando fui servi-lo.
Ele me deu tabefe tão forte no rosto que eu caí sentada no chão.
E antes que sinhá Quitéria pudesse
dizer qualquer coisa, meu amado sinhozinho já se levantara e segurava o menino
pelo colarinho.
Dona Raquel deu uma risadinha maldosa.
— Seu filho já está bem de saúde? —
perguntou para sinhá Quitéria. — Será que aguenta uma surra?
Mas a frase ficou perdida no ar, porque
rapidamente sinhozinho levou o menino para o meio do quintal. O grandalhão
estava contente com a situação. Louco para bater em alguém. Levantou os punhos
como se fosse dar socos.
E sinhozinho começou a gingar. Ele se
movimentava sem parar, observando o adversário de soslaio. Depois sorriu
levemente, cheio de esperteza e mandinga.
Quando o grandalhão levou a primeira
rasteira, dona Raquel levantou-se indignada. Mas depois nem teve mais tempo de
reclamar. Sinhozinho esquivou-se dos socos e o atacou com o arrastão, depois
aplicou-lhe a meia-lua, e assim o grandalhão foi levando um tombo atrás do
outro. A essas alturas alguém já tocava berimbau e uma roda havia sido formada
em torno dos dois meninos. A cada vitória de sinhozinho todos aplaudiam e davam
risadas. Ele tomava cuidado para não ferir o grandalhão de verdade. Queria só
quebrar aquele orgulho. Mas isso quem fez foi a própria sinhá Quitéria. Pois
quando a briga acabou e dona Raquel foi buscar o filho caído no meio do
quintal, ela perdeu a compostura e gritou:
— Muito bem Quitéria, você tem um filho
valente. Ele luta como um negro.
Sinhá Quitéria abraçou Pedro, que ria
abraçado ao meu avô, e respondeu com toda a calma:
— É Raquel, meu filho luta como um
homem!
Nunca mais dona Raquel voltou à fazenda
e muitas coisas mudaram depois desse dia. Para mim e sinhozinho essa foi a
primeira vitória. Passamos a vida envolvidos em muitas lutas. A luta contra o
preconceito, contra a pobreza, contra a ignorância. E hoje, quando vejo nossos
netos correndo por aí, acredito que conseguimos várias vitórias. Mas essas são
histórias muito longas e ainda levarei dias para escrevê-las. E mesmo sendo
velha guerreira, há momentos em que preciso descansar e, quem sabe sonhar. Até
mais tarde.
Heloísa
Prieto. Heróis e guerreiras. São Paulo, Companhia
das Letrinhas, 1995.
Coleção Quase tudo o que você queria saber.
Entendendo o texto:
01 – Onde se passa a história
do texto?
A história do
texto se passa no sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do
Livramento, em 1889.
02 – Qual é a idade da
narradora no início do texto?
A narradora tem oitenta e seis anos no
início do texto.
03 – Como a narradora aprendeu
a ler em português e francês?
A narradora
aprendeu a ler em português e francês através do seu sinhozinho, que a ensinou.
04 – Por que a narradora
deixou a senzala e passou a dormir no porão?
A narradora
deixou a senzala e passou a dormir no porão porque foi ordenado por Sinhá
Quitéria, que todos chamavam de Sinhá Viúva.
05 – Quem é sinhozinho e por
que ele estava doente?
Sinhozinho é o
apelido do jovem Pedro Manuel de Assis, que estava doente com problemas
pulmonares.
06 – O que a narradora fez
para tentar ajudar sinhozinho?
A narradora
convenceu sinhozinho a fugir do quarto e o levou para seu avô, que era
conhecedor das ervas e segredos da cura.
07 – Qual é o desejo de
sinhozinho após assistir a uma roda de capoeira?
Sinhozinho
expressa o desejo de aprender capoeira após assistir a uma roda de capoeira.
08 – Qual foi a reação do avô
da narradora quando sinhozinho pediu para aprender capoeira?
O avô da narradora aceitou ensinar
capoeira a sinhozinho, afirmando que ele era "filho de Xangô".
09 – Como sinhozinho e a
narradora aprenderam a ginga da capoeira?
O avô da narradora decidiu que eles aprenderiam a ginga
juntos e os fazia engatinhar entre as árvores imitando gatos e cachorros.
10 – Como sinhozinho enfrentou
o grandalhão que agrediu a narradora?
Sinhozinho usou
suas habilidades de capoeira para enfrentar o grandalhão, vencendo a briga e
quebrando seu orgulho.
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