quinta-feira, 19 de outubro de 2023

CONTO: A DANÇA DA VIDA - HELOÍSA PRIETO - COM GABARITO

 CONTO: A DANÇA DA VIDA – Bahia, 1889

            Heloísa Prieto

        Sempre digo que sou uma pessoa de sorte. Na vida tive tudo o que desejei, como aprender a escrever, em português e francês. No sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento, poucas são as mulheres letradas e, se forem negras como eu, nem pensar. Creio que nasci abençoada por Maria, como dizia minha mãe, e filha de Iansã, como dizia meu avô.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRQ77lKCYdvvgyJBuo0NfgyH5TBGUYuagJY5WOSgiFj3e0_OfpR_7QZ-jJHL4ZuO7jIpcI3z3c1euJX8YseiNQ9FiHqJ4OQqHXR5JlCSjzutrFTu1cRPo4YS5eExMWYZtE4jUadcqG6hONd2MioXMXpuM16gHLn3a4FmlJgZQYmm1MxxrO5B4dE0TbGig/s1600/DAN%C3%87A.jpg 


        Agora que minha vida está por terminar, alegro-me com minhas lembranças. Já tenho oitenta e seis anos. Sinto-me cansada ao caminhar. Mas minhas mãos são ágeis, minha vista é boa e passo os dias recordando e escrevendo. Quem sabe meus netos se interessem pelo que tenho a contar...

        Quando eu era menina, as pessoas me diziam que era muito mimosa. Sinhá Quitéria, que todos chamavam de sinhá Viúva, ordenou que eu trabalhasse na casa grande. Deixei a senzala e comecei a dormir no porão com as outras mucamas. Mas, na verdade passava a maior parte das noites em claro, cuidando de meu sinhozinho.

        Nunca esquecerei a primeira vez em que o vi. A pele tão branca, os olhos tão fundos e delicados, os cabelos castanhos, encaracolados e longos. Ele sorriu para mim, gostou do meu jeito. Passava o dia acamado. Sofria do pulmão. O peito chiava e ele sentia muita fraqueza. Às vezes tossia a noite inteira.

        Mas nos dias em que estava disposto, ele era muito divertido. Vendo como eu adorava os livros encadernados que viviam na sua mesinha-de-cabeceira, sinhozinho resolveu me ensinar a ler. Só para que depois eu lesse histórias para ele. Foi uma alegria. Aprendi tudo num instante.

        Sinhá Quitéria sempre me dizia que não deixasse meu sinhozinho por um minuto sequer. Mas ela nem precisava dar essa ordem. Até hoje continuamos juntos. Só vamos nos separar quando a morte vier.

        Mas como estava dizendo, nas noites em que ele sofria, eu quase morria. Não suportava vê-lo assim. Foi por isso que, certa madrugada, eu o convenci a fugir do quarto.

        Abri as cortinas que viviam fechadas e saímos os dois pela janela. Foi assim que levei meu querido Pedro Manuel de Assis, meu amado sinhozinho, para meu avô examiná-lo.

        Meu avô nascera em Angola; conhecia as ervas e os segredos da cura. Foi uma noite inesquecível. Quando nos aproximamos da senzala, vi que a roda de capoeira já havia começado. Lembro-me ainda hoje do som do berimbau e das cantigas cadenciadas.

        Sinhozinho até parou de tossir. Não tirava os olhos da ginga, dos rabos-de-arraia, das rasteiras, daquela dança mágica da vida. A lua estava cheia, a noite clara e, à luz da fogueira, os homens rodopiavam como se pertencessem a uma constelação de estrelas negras, cortantes e mortais.

        De repente sinhozinho me disse:

        — Eu quero aprender capoeira, Maria Macária. Diga isso ao seu avô.

        Vocês podem imaginar como fiquei apavorada. E se alguma coisa desse errado? E se alguém descobrisse?

        Mas quando meu avô fitou Pedro Manuel bem no fundo dos olhos simplesmente respondeu:

        — Você é filho de Xangô. Se eu ajudar, você nos fará justiça e descobrirá sua própria coragem.

        Foi uma surpresa para mim. Nunca pensei que meu avô um dia aceitasse ensinar capoeira a um branco. Sinhá Quitéria ficou desconfiada quando sinhozinho lhe disse que passaria as tardes em companhia do velho João. Mas como detestava contrariar o filho, acabou permitindo.

        E foi muito, muito divertido. Porque meu avô decidiu que aprenderíamos a ginga juntos. Mandava-nos engatinhar entre as árvores imitando gatos e cachorros. Morríamos de rir dando rasteiras um no outro. Aos poucos fomos aprendendo a dançar e a compreender cada som do berimbau.

        A luz do sol e o toque da terra devolveram a saúde a sinhozinho. A chiadeira foi sumindo, o peito se desenvolvendo, as pernas firmando e finalmente ele conseguia dormir à noite. Sinhá Quitéria ficou muito satisfeita com o “tratamento” de meu avô, e nós começamos a ter regalias. Mas contente mesmo ela ficou no dia da surra.

        Nesse dia, sinhá Quitéria recebeu a visita de dona Raquel, uma mulher muito antipática. Tinha nascido na Europa e detestava a Bahia. Seu filho era seu orgulho: um moleque grandalhão que sempre gritava com as mucamas e adorava matar passarinho. Na tarde da confusão eu estava muito cansada e derrubei chá quente em sua roupa quando fui servi-lo. Ele me deu tabefe tão forte no rosto que eu caí sentada no chão.

        E antes que sinhá Quitéria pudesse dizer qualquer coisa, meu amado sinhozinho já se levantara e segurava o menino pelo colarinho.

        Dona Raquel deu uma risadinha maldosa.

        — Seu filho já está bem de saúde? — perguntou para sinhá Quitéria. — Será que aguenta uma surra?

        Mas a frase ficou perdida no ar, porque rapidamente sinhozinho levou o menino para o meio do quintal. O grandalhão estava contente com a situação. Louco para bater em alguém. Levantou os punhos como se fosse dar socos.

        E sinhozinho começou a gingar. Ele se movimentava sem parar, observando o adversário de soslaio. Depois sorriu levemente, cheio de esperteza e mandinga.

        Quando o grandalhão levou a primeira rasteira, dona Raquel levantou-se indignada. Mas depois nem teve mais tempo de reclamar. Sinhozinho esquivou-se dos socos e o atacou com o arrastão, depois aplicou-lhe a meia-lua, e assim o grandalhão foi levando um tombo atrás do outro. A essas alturas alguém já tocava berimbau e uma roda havia sido formada em torno dos dois meninos. A cada vitória de sinhozinho todos aplaudiam e davam risadas. Ele tomava cuidado para não ferir o grandalhão de verdade. Queria só quebrar aquele orgulho. Mas isso quem fez foi a própria sinhá Quitéria. Pois quando a briga acabou e dona Raquel foi buscar o filho caído no meio do quintal, ela perdeu a compostura e gritou:

        — Muito bem Quitéria, você tem um filho valente. Ele luta como um negro.

        Sinhá Quitéria abraçou Pedro, que ria abraçado ao meu avô, e respondeu com toda a calma:

        — É Raquel, meu filho luta como um homem!

        Nunca mais dona Raquel voltou à fazenda e muitas coisas mudaram depois desse dia. Para mim e sinhozinho essa foi a primeira vitória. Passamos a vida envolvidos em muitas lutas. A luta contra o preconceito, contra a pobreza, contra a ignorância. E hoje, quando vejo nossos netos correndo por aí, acredito que conseguimos várias vitórias. Mas essas são histórias muito longas e ainda levarei dias para escrevê-las. E mesmo sendo velha guerreira, há momentos em que preciso descansar e, quem sabe sonhar. Até mais tarde.

Heloísa Prieto. Heróis e guerreiras. São Paulo, Companhia

das Letrinhas, 1995. Coleção Quase tudo o que você queria saber.

Entendendo o texto:

01 – Onde se passa a história do texto?

      A história do texto se passa no sertão da Bahia, nos arredores de Nossa Senhora do Livramento, em 1889.

02 – Qual é a idade da narradora no início do texto?

      A narradora tem oitenta e seis anos no início do texto.

03 – Como a narradora aprendeu a ler em português e francês?

      A narradora aprendeu a ler em português e francês através do seu sinhozinho, que a ensinou.

04 – Por que a narradora deixou a senzala e passou a dormir no porão?

      A narradora deixou a senzala e passou a dormir no porão porque foi ordenado por Sinhá Quitéria, que todos chamavam de Sinhá Viúva.

05 – Quem é sinhozinho e por que ele estava doente?

      Sinhozinho é o apelido do jovem Pedro Manuel de Assis, que estava doente com problemas pulmonares.

06 – O que a narradora fez para tentar ajudar sinhozinho?

      A narradora convenceu sinhozinho a fugir do quarto e o levou para seu avô, que era conhecedor das ervas e segredos da cura.

07 – Qual é o desejo de sinhozinho após assistir a uma roda de capoeira?

      Sinhozinho expressa o desejo de aprender capoeira após assistir a uma roda de capoeira.

08 – Qual foi a reação do avô da narradora quando sinhozinho pediu para aprender capoeira?

      O avô da narradora aceitou ensinar capoeira a sinhozinho, afirmando que ele era "filho de Xangô".

09 – Como sinhozinho e a narradora aprenderam a ginga da capoeira?

      O avô da narradora decidiu que eles aprenderiam a ginga juntos e os fazia engatinhar entre as árvores imitando gatos e cachorros.

10 – Como sinhozinho enfrentou o grandalhão que agrediu a narradora?

      Sinhozinho usou suas habilidades de capoeira para enfrentar o grandalhão, vencendo a briga e quebrando seu orgulho.

 

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