Crônica: Dona Filósofa e a vassoura de piaçava
Emília Maria M. de Morais
Uma
fábula de Carnaval
Manhã de um sábado de carnaval, num
sobrado antigo, não muito longe da Igreja do Monte, em Olinda.
Um passante esfarrapado anuncia no meio
da rua:
-- Quem quer comprar vassoura de
piaçava para deixar a casa bem limpinha depois da folia?
Dona Filósofa vai até a janela do
sobrado:
-- O Sr. não teria, por acaso, uma
vassoura voadora? Preciso de uma para completar a minha fantasia de Platônica
Perplexa!
-- Quer dizer que a senhora quer alçar
voo até as transcendências? Mas em que plano pretende chegar – ao das entidades
matemáticas, ao das Formas ideais, ou pretende mesmo contemplar o Bem em si?
-- E o Sr. poderia me arranjar uma
vassoura para voos tão elevados?
-- Só depende de suas reservas de pão
espiritual e do vinho da alma.
-- Ah, meu Sr., lamento muito, mas o
meu forno e a minha adega estão quase vazios...
--
Antes estivessem, minha cara Dona Filósofa; de fato, eles estão repletos,
plenos de seus apetites e de sua preguiça.
-- Ora bolas, mas o que posso fazer
contra a minha fome e o meu cansaço?
-- Nada, minha senhora, nada. A questão
é essa: aprender a querer e a fazer como se fosse nada, simplesmente nada!
-- E o que responder a meus desejos?
-- Ora bolas, agora digo eu, minha
cara, a senhora é surda? Nada, nada mesmo, e sobretudo não ousar sequer tentar
escapar do estado de desejar! Seus estudos não lhe ensinaram que esse é o
estigma da condição humana? Porventura, não aprendeu, depois de tantos anos,
uma lição tão elementar?
-- Como é possível, então, desejar sem
preencher de objetos meus desejos?
-- Com mais coragem e humildade a
senhora aprenderia. Compreenderia que não está a seu alcance saber de que vinho
e de que pão deve se alimentar! E, nesse caso, só lhe restaria desejar, desejar
à toa, em vão... Desejar com intensidade, pensar com atenção, operar com
diligência, mas sem se deixar enredar por quaisquer objetos ou objetivos.
Lembre-se das palavras do Pater: Seja feita a Vossa vontade... Por acaso, a
senhora pretende saber qual é a vontade que vem das transcendências? Já não
viveu tantas vezes a experiência do desencanto, até quando julgava saber o
melhor para si? Não tente pois, minha senhora, preencher a sua fome com toda a
pretensão de sua imaginação. Limite-se a reconhecê-la e, creia-me, isto não
seria pouco, seria o limiar da plenitude possível...
-- O Sr. sabe se existe algum Fundo de
Reservas Espirituais (uma espécie de avesso do FMI) que permitisse acesso a
algum crédito sobrenatural, algum empréstimo dessa sabedoria, sem juros
existenciais ou outros encargos?
-- A senhora quer crédito maior do que
a Vida mesma – a chance de, a cada dia, poder contemplar o Sol e recomeçar?
Antes de tudo, é preciso aprender que
as melhores vassouras não servem para juntar ou acumular; servem para limpar e
esvaziar. Por enquanto, Dona Filósofa, o melhor mesmo é a senhora começar
aprendendo a lição mais simples e eficaz desta colorida vassoura de piaçava.
Ela servirá também para complementar o faz de conta da sua fantasia.
Contente-se com isso; cuide-se bem e brinque um alegre carnaval; não
menospreze, sem conhecimento de causa e sem a devida iniciação, as cores e as
luzes deste mundo a seu alcance. No próximo ano, quem sabe... Estou sempre
passando pelas ruas como os melhores e mais antigos blocos de folia...
Emília Maria M. de
Morais.
Entendendo a crônica:
01 – Onde se passa a crônica
"Dona Filósofa e a vassoura de piaçava"?
A crônica se
passa em um sobrado antigo não muito longe da Igreja do Monte, em Olinda,
durante uma manhã de Carnaval.
02 – Quem é Dona Filósofa e o
que ela deseja na crônica?
Dona Filósofa é
uma personagem que deseja uma "vassoura voadora" para completar sua
fantasia de "Platônica Perplexa."
03 – Como o passante responde
ao desejo de Dona Filósofa?
O passante faz perguntas filosóficas e
espirituais, questionando Dona Filósofa sobre seus desejos e suas necessidades
espirituais.
04 – Qual é a mensagem que o
passante tenta transmitir a Dona Filósofa na crônica?
O passante tenta
transmitir a ideia de que a satisfação dos desejos humanos está ligada à
humildade e à renúncia, sugerindo que a busca constante por objetos e objetivos
pode levar ao desencanto.
05 – Por que o passante
compara os desejos de Dona Filósofa a um "estigma da condição
humana"?
O passante acredita
que o desejo constante é uma característica intrínseca da natureza humana e que
a busca por preencher todos os desejos pode ser fútil e desencantadora.
06 – O que Dona Filósofa
pergunta sobre um possível "Fundo de Reservas Espirituais"?
Dona Filósofa
pergunta se existe alguma fonte de sabedoria ou conhecimento espiritual que
possa ser acessada sem encargos, como um "Fundo de Reservas
Espirituais."
07 – Como o passante encerra a
conversa com Dona Filósofa na crônica?
O passante
encerra a conversa sugerindo que Dona Filósofa se contente com a simplicidade
da vassoura de piaçava, cuja função é limpar e esvaziar, e que aproveite o
carnaval antes de pensar em questões mais profundas. Ele também deixa a
possibilidade de se encontrarem novamente no próximo ano.
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