Conto: A MÚSICA DOS CHIFRES OCOS E PERFURADOS.
Luís da Câmara Cascudo
Na capoeira de Mamanguape pasta uma
notável população de veados. Vivem soltos e perseguidos pelos caçadores
impenitentes. Muitos vão dar na praia enlouquecidos pela perseguição. Ficam
bêbedos de cansaço e desespero. Nestas circunstâncias não é difícil ser abatido
pelos pescadores, que gostam muito de carne. O peixe é prato de todos os dias.
Vez por outra não faz mal uma variação de alimento. E assim a espécie dos
galhudos vai rareando.
Entretanto, a maioria dos caçadores não
lhe comem a carne e até a abandona em pleno mato. Tirado o couro, gostam é de
chegar com o troféu, exibindo-o só pelo prazer de ostentá-lo, e mais nada. A
caça verifica-se em certos dias. Não se faz assim de repente apenas pela
alegria da aventura. Veado nem sem sempre pode ser pegado pelos cachorros e
pelas balas da espingarda.
O motivo da escolha cuidadosa da
ocasião de persegui-lo vem de um fato bem notório que toda gente entendida no
negócio proclama como absolutamente verdadeiro. Existem nas capoeiras alguns
veados chefes de bando que costumam reunir o seu povo para um remoer mais
demorado na tranquilidade. A convocação é feita por intermédio de uma harmonia de
música que toca a todos os corações. Ninguém poderá ouvi-la sem ficar
inteiramente dominado e vencido nos seus propósitos inferiores.
A beleza tem disso: amolece as energias
empregadas no sentido do mal. E como caçar não deixa de ser uma impiedade, fica
adiada a perseguição, fica para outro dia, pois o caçador foi posto à margem, é
supersticioso e não ama contrariar as forças da natureza quando elas se
manifestam tão maravilhosamente.
A demonstração de uma intensa melodia
(notas estranhas e deliciosas já bem conhecidas do homem que corre as matas de
arma ao ombro e sacola de balas a tiracolo) vem como sinal de advertência
generosa. Quem transgredir a norma histórica terá de arcar com as consequências
nem sempre agradáveis. As surpresas então se tornarão constantes e
prejudiciais. E não há necessidade de enfrenta-las assim de caso pensado. O
melhor é aguardar outra vez. Fica para amanhã. Fica para depois. Em qualquer
tempo é tempo para o prazer da perseguição. Aquela música divina não é ouvida
com frequência, é mesmo coisa um tanto rara nas sextas-feiras, nos sábados e
nos domingos. Nos outros dias da semana, a caça não se faz de preferência por
causa do trabalho de campo e outras obrigações de ganha-pão a que o homem
ordinariamente se acha sujeito. Portanto, não convém ir de encontro às
determinações dos deuses ocultos que dirigem os movimentos na floresta ou nos
tabuleiros.
Rebanhos enormes se reúnem em torno dos
chamados “galhudos”. Estes no meio como que dirigindo a sessão. Em torno se
encontra a veadaria deitada em remansoso descanso. Os mateiros mais afeitos se
arrastam cautelosamente até lá com o fim de apreciar o concerto incomparável.
Impõe-se muito cuidado para evitar o menor barulho. Qualquer atrito de folha
seca é razão para que os ouvidos fiquem atentos. Ficam à escuta para uma
arrancada louca de precipitação. Mas quando acontece tal curiosidade é porque
prevaleceu o enfeitiçamento do caçador arrastado pelos encantos de uma música
que tem qualquer coisa de sortilégio. Não tem preocupações de fazer mal. Chega
mesmo a abandonar as armas para melhor facilitar a aproximação sutil nos seus
movimentos de caçador.
Os veados velhos mostram vinte e três
chifres ocos e perfurados como flauta. O vento sopra com uma suavidade de nordeste.
E faz arrancar dos chifres os sons mais sentidos de uma orquestra completa que
toca para amenizar a vida perseguida-e mesmo infeliz de uma raça que entre os
animais da região faz as vezes do judeu escorraçado pela inveja dos que não
possuem predicados de inteligência e habilidade. A reunião prossegue pela noite
adentro. Não é difícil apurar o ouvido e sentir na madrugada fria dos
tabuleiros as melodias mais belas que o vento arranca dos vinte e três chifres
ocos e perfurados como flauta.
Depois vem a dispersão. Cada qual para
o seu canto. E que trate de livrar-se da sanha criminosa dos seus
perseguidores. O fim da semana é para se viver debaixo de toda cautela. Muito
cuidado.
Ainda assim é quando o caçador consegue livremente exercer a sua diversão
extravagante e injusta. Sai para matar sem levar na alma a menor sombra de
preocupação com os imprevistos maus que lhe possam acontecer.
Relato popular
recontado pelos professores Ademar Vidal e Luís da Câmara Cascudo.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o cenário
principal do conto?
O cenário
principal do conto é a capoeira de Mamanguape, onde vive uma população notável
de veados.
02 – Qual é o dilema
enfrentado pelos veados na capoeira de Mamanguape?
Os veados são perseguidos pelos
caçadores, o que os leva a viver constantemente em risco de serem abatidos.
03 – Qual é o motivo que leva
os caçadores a escolher cuidadosamente a ocasião para perseguir os veados?
Os caçadores
esperam por uma melodia especial que é tocada pelos veados chefes de bando como
sinal de convocação. Esta música os impede de caçar, pois é considerada divina
e hipnotizante.
04 – Como os veados se reúnem
em torno dos "galhudos" quando a música é tocada?
Os veados se
reúnem em grandes grupos em torno dos veados chefes de bando, que parecem
dirigir a sessão enquanto o resto da veadaria descansa.
05 – O que acontece quando um
caçador é enfeitiçado pela música dos veados?
O caçador se
deixa levar pelo encanto da música e, às vezes, até abandona suas armas para se
aproximar furtivamente dos veados.
06 – Qual é a peculiaridade
dos chifres dos veados velhos?
Os chifres dos
veados velhos têm vinte e três buracos ocos e perfurados, e quando o vento
sopra, eles produzem sons que se assemelham a uma orquestra tocando melodias
para acalmar a vida dos veados perseguidos.
07 – O que acontece depois da
reunião dos veados em torno dos "galhudos"?
Após a reunião,
os veados se dispersam e cada um vai para o seu canto, tentando evitar a
perseguição dos caçadores. O final de semana é um período de particular
cautela.
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