sexta-feira, 18 de março de 2022

CRÔNICA: O SEGREDO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: O segredo

              Fernando Sabino

        [...]

        Estava empenhado nisso, quando senti que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:

        -- Que é que você está fazendo?

        Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:

        -- Quantas formigas eram?

        Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética: uma na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas, mais três.

        -- Nove! Exclamei, triunfante.

        Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda em fila, uma atrás da outra. 

        Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.

        -- Cobra? – ele arriscou, enrugando a testa, intrigado. 

        Foi a minha vez de achar graça:

        -- Que cobra que nada! É a chuva – e comecei a rir também.

        -- Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água quebra?

        -- Sei: papel.

        Gostei daquele homem: ela sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinquenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha ventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em seu poleiro:

        -- Fernando! – berrou o papagaio, imitando mamãe: – Vem pra dentro, menino! Olha o sereno!

        -- Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou com medo do cachorrão, nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em roer uma folha de couve.

        O homem me disse que tinha de ir embora – antes queria me ensinar uma coisa muito importante:

        -- Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida?

        -- Quero – respondi.

        O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:

        -- Pense nos outros.

        Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.

        O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:

        -- Quem é você? – perguntei ainda.

        Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre. 

In: SABINO, Fernando, O Menino no espelho. São Paulo, Record, 1984. p. 15-18.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 64-7.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Soar: fazer barulho, produzir som.

·        Poleiro: vara onde as aves pousam e dormem.

·        Entretido: ocupado; distraído.

·        Pronunciar: falar, expressar verbalmente, articular.

·        Recompondo: formando outra vez.

·        Intensidade: força.

·        Intrigado: curioso; interessado; desconfiado.

·        Aceno: gesto de mão em movimento.

·        Sósia: alguém tão semelhante que parece igual.

02 – Quem são as personagens do texto? Descreva cada uma delas.

      As personagens do texto são um menino e um adulto. O primeiro é arteiro, alegre, comunicativo e mistura fantasia e realidade. O adulto é muito simpático, parece conviver bem com crianças.

03 – Nem todas as características das personagens são claramente apontadas pelo autor: algumas são percebidas pelo leitor por meio de inferências que o texto sugere. A partir dos trechos abaixo, que inferência poderíamos fazer:

a)   Sobre o garoto, em “Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte”?

É provavelmente um garoto sensível, imaginativo e bom observador, pois é capaz de dedicar-se a algo tão lento como a caminhada das formigas.

b)   Sobre o adulto em “Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia [...] lhe contei uma porção de coisas [...] tinha de ir embora – antes queria me ensinar uma coisa muito importante”?

Sugestão: gostava de crianças, tinha facilidade de conversar com elas, despertava simpatia e confiança, tinha experiência de vida.

04 – O menino revela simpatia pelo estranho, por reconhecer semelhanças entre eles. Indique o trecho em que isso ocorre.

      “Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia”.

05 – Que segredos sobre sua própria vida o menino revela ao estranho?

      Falou da galinha Fernanda, dos milagres que andou fazendo, de como aprendeu a voar como os pássaros, das suas aventuras como detetive e escoteiro, do sósia que retirou do espelho, do valentão da escola, do dia em que foi campeão de futebol, do primeiro amor, do capitão Patifaria, da passarinhada que soltou junto com Mariana. Levou-o para ver o papagaio Godofredo.

06 – Dessa série de acontecimentos que o menino conta ao estranho, todos lhe parecem verdadeiros? Faça um comentário a respeito.

      Alguns são parte do mundo de fantasia que envolve seu universo de brincadeiras, como o sósia que retirou do espelho e o fato de ter aprendido a voar como os pássaros.

07 – Quando o menino entendeu o conselho do homem? Por quê?

      O menino entendeu o conselho do homem muito mais tarde. Faltava-lhe maturidade.

08 – Por que o menino deixou de seguir o conselho que o homem lhe dera?

      Provavelmente, porque na maioria das vezes estava preocupado consigo mesmo e não com os outros, como age tanta gente.

09 – Qual é a sua opinião sobre o conselho do homem?

      Resposta pessoal do aluno.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário