Crônica: O segredo
Fernando Sabino
[...]
Estava empenhado nisso, quando senti
que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos
meus ouvidos, perguntou:
-- Que é que você está fazendo?
Sem me voltar, tão entretido estava com
as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego
delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se agachou a meu lado,
dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma
atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:
-- Quantas formigas eram?
Pensei um pouco, fazendo cálculos.
Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética: uma na frente de duas faziam
três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas, mais três.
-- Nove! Exclamei, triunfante.
Ele começou a rir e sacudiu a cabeça,
dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda em fila, uma atrás da
outra.
Então perguntei a ele o que é que cai
em pé e corre deitado.
-- Cobra? – ele arriscou, enrugando a
testa, intrigado.
Foi a minha vez de achar graça:
-- Que cobra que nada! É a chuva – e comecei
a rir também.
-- Você sabe o que é que caindo no chão
não quebra e caindo n'água quebra?
-- Sei: papel.
Gostei daquele homem: ela sabia uma
porção de coisas que eu também sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados
na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinquenta anos
mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma
porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia
andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha ventura de
escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta
Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, o Birica, valentão da minha
escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o meu primeiro amor, o
capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha
amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o
Godofredo em seu poleiro:
-- Fernando! – berrou o papagaio,
imitando mamãe: – Vem pra dentro, menino! Olha o sereno!
-- Hindemburgo apareceu correndo, a
agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou com medo do cachorrão,
nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois mostrei-lhe o
Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em roer
uma folha de couve.
O homem me disse que tinha de ir embora
– antes queria me ensinar uma coisa muito importante:
-- Você quer conhecer o segredo de ser
um menino feliz para o resto da sua vida?
-- Quero – respondi.
O segredo se resumia em três palavras,
que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus
olhos:
-- Pense nos outros.
Na hora achei esse segredo meio sem
graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes na vida
deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui-lo,
fazendo-me feliz como um menino.
O homem se curvou para me beijar na
testa, se despedindo:
-- Quem é você? – perguntei ainda.
Ele se limitou a sorrir, depois disse
adeus com um aceno e foi-se embora para sempre.
In: SABINO, Fernando,
O Menino no espelho. São Paulo, Record, 1984. p. 15-18.
Fonte: Português –
Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder
Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 64-7.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Soar: fazer barulho, produzir som.
·
Poleiro: vara onde as aves pousam e dormem.
·
Entretido: ocupado; distraído.
·
Pronunciar: falar, expressar verbalmente, articular.
·
Recompondo: formando outra vez.
·
Intensidade: força.
·
Intrigado: curioso; interessado; desconfiado.
·
Aceno: gesto de mão em movimento.
·
Sósia: alguém tão semelhante que parece igual.
02 – Quem são as personagens
do texto? Descreva cada uma delas.
As personagens do texto são um menino e
um adulto. O primeiro é arteiro, alegre, comunicativo e mistura fantasia e
realidade. O adulto é muito simpático, parece conviver bem com crianças.
03 – Nem todas as
características das personagens são claramente apontadas pelo autor: algumas
são percebidas pelo leitor por meio de inferências
que o texto sugere. A partir dos trechos abaixo, que inferência poderíamos
fazer:
a) Sobre o garoto, em “Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte”?
É provavelmente um garoto sensível, imaginativo e bom observador,
pois é capaz de dedicar-se a algo tão lento como a caminhada das formigas.
b) Sobre o adulto em “Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia [...] lhe contei uma porção de coisas [...] tinha de ir embora – antes queria me ensinar uma coisa muito importante”?
Sugestão: gostava de crianças, tinha facilidade de conversar com
elas, despertava simpatia e confiança, tinha experiência de vida.
04 – O menino revela
simpatia pelo estranho, por reconhecer semelhanças entre eles. Indique o trecho
em que isso ocorre.
“Gostei daquele homem: ele sabia uma
porção de coisas que eu também sabia”.
05 – Que segredos sobre sua
própria vida o menino revela ao estranho?
Falou da galinha
Fernanda, dos milagres que andou fazendo, de como aprendeu a voar como os
pássaros, das suas aventuras como detetive e escoteiro, do sósia que retirou do
espelho, do valentão da escola, do dia em que foi campeão de futebol, do
primeiro amor, do capitão Patifaria, da passarinhada que soltou junto com
Mariana. Levou-o para ver o papagaio Godofredo.
06 – Dessa série de
acontecimentos que o menino conta ao estranho, todos lhe parecem verdadeiros?
Faça um comentário a respeito.
Alguns são parte
do mundo de fantasia que envolve seu universo de brincadeiras, como o sósia que
retirou do espelho e o fato de ter aprendido a voar como os pássaros.
07 – Quando o menino
entendeu o conselho do homem? Por quê?
O menino entendeu o conselho do homem
muito mais tarde. Faltava-lhe maturidade.
08 – Por que o menino deixou
de seguir o conselho que o homem lhe dera?
Provavelmente,
porque na maioria das vezes estava preocupado consigo mesmo e não com os
outros, como age tanta gente.
09 – Qual é a sua opinião
sobre o conselho do homem?
Resposta pessoal do aluno.
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