Crônica: AQUI NÃO FALTA NADA
Marcos Rey
Carta
TCHAU, MÃE:
Estou me mandando.
Vou pra São Paulo mas não esquente não.
Já sei me virar e estou levando todo o dinheiro que guardei.
Vila Grande não dá mais pé pra mim. Não
pela cidade, que é bacana, mas por tudo que anda acontecendo. Você sabe, eu e o
padrasto, a gente não se dá muito bem. Aquilo de estudar contabilidade podia
ser bom pra empresa dele, pra sua frota de caminhões, não pra mim. Não nasci
pra fazer contas. E um cano.
Outro que me enche é o filho dele, o
Silvano. Um chato, vive implicando comigo, provocando. Quem ele pensa que é?
O jeito que encontrei pra me livrar
disso tudo foi esse: dar o fora daqui, cair no mundo.
Sei que você vai chorar, mas logo
passa.
Papai vai ser meu anjo da guarda,
sempre por perto, aconselhando. E tudo acabará numa boa, como nos filmes de
cinema.
Tchau,
mãe!
Toni
Texto
Dona Amélia entrou no quarto do filho,
viu a carta sobre o travesseiro e adivinhou do que se tratava. As coisas em
casa andavam tensas. Depois de ler o que Toni havia escrito, ela foi abrir o
guarda-roupa do rapaz. Felizmente, ele levara as roupas de inverno. São Paulo é
uma cidade fria.
Na sala, fez uma ligação telefônica:
— Me chamem o Antero, urgente.
Um segundo e ouviu a voz do marido,
sempre bronqueado, como Toni dizia.
— Que aconteceu?
— O Toni...
— O que foi desta vez?
— Fugiu de casa.
— Ah...
— Meu filho foge de casa e você só diz
“ah...”?
— O que quer que eu diga? Juízo ele
nunca teve mesmo. Mas não se aflija, ele volta.
— Acha que volta?
— Acho sim. Vai ser uma lição para ele.
Voltará dando mais valor ao que tinha aqui. Depois a gente conversa. Preciso
despachar um caminhão.
Dona Amélia saía da sala quando entrou
o enteado, Silvano, recém-formado em administração de empresas, sempre
bem-vestido e um tanto pretensioso. Com a madrasta era apenas educado e mais
nada.
— Toni fugiu — ela disse.
Silvano não esboçou a menor reação. Com
cara de quem um dia ia ser patrão, nunca se surpreendia.
— Deve ter ido atrás de sua garota.
— Garota? Que garota?
— Lembra aquela que morava na esquina?
— Uma que o pai trabalhava numa firma
estrangeira?
— Ele foi transferido e se mudou com a
família pra São Paulo.
— Toni não fugiria de casa por causa
duma namorada — replicou dona Amélia, como se tivesse acabado de ouvir um
absurdo.
Silvano sentiu que poderia complicar a
situação de Toni. Não suportava o meio-irmão nem à distância.
— Que outro motivo Toni poderia ter, dona
Amélia? Ele tinha a vida que pediu a Deus. Por acaso falta alguma coisa aqui?
Era verdade, admitiu dona Amélia para
si mesma. Durante o primeiro casamento e, depois, quando viúva, ela e o filho
só conheceram aperturas. José, o falecido, jornalista de cidade pequena, nunca
pôde dar conforto à família e, ao morrer, deixara uma sequência de zeros na
conta bancária. Dona Amélia reconhecia que, com o segundo marido, Antero,
próspero comerciante, a situação era outra, muito melhor.
— Não, Silvano, aqui não falta nada —
respondeu, dando as costas para o rapaz. Ela queria ficar sozinha para reler a
carta de Toni.
Marcos Rey. Na rota
do perigo. São Paulo, Ática, 1993. p. 9-11.
Fonte: Português –
Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder
Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 77-80.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Afligir-se: preocupar-se.
·
Despachar: enviar.
·
Pretencioso: vaidoso, convencido, presunçoso.
·
Esboçar: entremostrar, manifestar.
·
Absurdo: algo sem sentido, que não se compreende.
·
Sequência: série, sucessão.
·
Próspero: bem-sucedido, afortunado.
02 – Toni é um adolescente e
por isso usa uma linguagem cheia de gírias em sua carta. Além disso, como escreve
para a mãe, usa a linguagem informal, um tratamento bem coloquial. Vamos
transferir sua fala para a norma culta, formal.
a) Estou me mandando.
Estou indo embora.
b) Vou pra São Paulo mas não esquenta não.
Vou para São Paulo, mas não precisa se preocupar.
c) Vila Grande não dá mais pé pra mim.
Não dá mais para ficar em Vila Grande / Não me e possível viver mais
em Vila Grande.
d) E tudo acabará numa boa, como nos filmes de cinema.
E tudo acabará bem, como nos filmes do cinema.
e) A gente não se dá muito bem.
Nós não nos damos bem.
f) Vou dar o fora daqui, cair no mundo.
Vou embora daqui, procurar novos lugares.
03 – O texto pode ser
dividido em duas partes. Justifique.
A primeira parte
do texto é a carta de despedida da personagem Toni. A segunda é a narração da história.
04 – Quais as razões que
levaram Toni a deixar a casa da mãe?
Toni tem um relacionamento problemático
com o padrasto e também com o filho deste. Silvano. Querem que ele estude
contabilidade, e o rapaz não quer.
05 – Como é Antero, o
padrasto de Toni?
Seu Antero, segundo marido de D. Amélia,
é dono de uma empresa de transporte. É uma pessoa que revela apenas interesses
materiais, como preocupação em ganhar dinheiro, em manter a firma, etc.
06 – Explique esta
afirmação, com relação ao texto: “Aqui não falta nada”:
Silvano quis
dizer que não faltava nada de material na casa. Isso soa como ironia, pois ali
não havia amor, tranquilidade, respeito pelas pessoas.
07 – Qual a situação
econômica de Dona Amélia?
Dona Amélia
passou por muitas dificuldades econômicas durante o primeiro casamento. Agora,
economicamente, sua situação melhorou.
08 – O que podemos inferir
do diálogo entre Dona Amélia e Antero?
Pelo diálogo,
percebe-se que Antero não gosta de Toni e não dá grande importância a Amélia.
Para ele, o importante é despachar o caminhão, ganhar dinheiro.
09 – A personagem Toni é
apresentada ao leitor do ponto de vista de Antero e de Silvano. O que ambos
pensam dele?
Antero acha que
Toni não tem juízo, que não dá valor ao que te. Silvano não suportava o
meio-irmão.
10 – Seu Antero quer que o
enteado estude contabilidade para trabalhar na firma dele. Qual sua opinião
sobre essa atitude?
Resposta pessoal
do aluno.
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