Conto: Uma revelação inesperada
Luiz Galdino
Giba iniciou, então, a distribuição do
material. À medida que chamava, os boys pegavam os envelopes ou pacotes, ouviam
as instruções e saíam pelo corredor interno.
Zeca não perdia nada, atenção total nos
gestos e palavras. E pelo que ouviu, concluiu que não havia grandes mistérios.
As tarefas consistiam basicamente em entregar e retirar anúncios em jornais ou
editoras, serviços de banco e correios, faturas para clientes e coisas do gênero.
Exatamente o que imaginara: serviço de levar e trazer.
Cada boy recebia o número de passes
necessários para a condução, de acordo com o roteiro a ser percorrido. Reparou
que eram passes escolares e animou-se com a ideia de se encontrar entre
estudantes como ele.
Por fim, ficaram apenas ele e mais um.
O sujeito olhou para o seu lado com cara de poucos amigos, como se adivinhasse
o que estava para acontecer. Quando pensou que Giba se dirigiria ao outro,
ouviu na sua direção:
— Hoje, você vai de acompanhante! Trate
de aprender rapidinho, porque amanhã vai pra luta sozinho! Entendido?
— Entendido — respondeu Zeca,
levantando-se prontamente.
— Não precisa ter pressa. Quando
Maurício receber o material, você sai com ele.
[...]
Durante o intervalo em que aguardavam
pelo material, os dois garotos não trocaram uma única palavra. Zeca percebeu
que, vez ou outra, Maurício o observava, disfarçadamente. Porém, como o outro
não tomasse a iniciativa do diálogo, manteve a boca fechada. No íntimo,
justificava-se: se desse uma de enxerido, poderia talvez piorar a situação.
Quando já não conseguia mais mascarar a
apreensão, viu-se salvo pela intromissão da copeira, a mulher que conhecera na
entrada da agência.
— Você tomou café, Zeca?
— Tomei, sim senhora.
— Se quiser, é só ir na copa e se
servir.
— Obrigado.
Ela passou a flanela sobre o tampo da
mesa e interrogou:
— E marmita? Não trouxe, não?
—
Não, senhora... Não trouxe...
— Ah, o garotão almoça na lanchonete,
é? — brincou ela.
Zeca percebeu a intenção, tratou logo
de desfazer o mal-entendido:
— Que isso, dona Ermelinda... Eu não
sabia que tinha onde esquentar. Amanhã eu trago!
Ainda se explicava à copeira, no
momento em que retornou a secretária, trazendo um pacote caprichosamente
embalado.
— Maurício... Sua encomenda — anunciou
Sarita.
— Pode entregar aí ao boy. Hoje, eu
estou de instrutor — retrucou Maurício com displicência.
Apesar da atitude do colega, Zeca
sentiu alguma simpatia na sua voz. E apressou-se em pegar o pacote, que, apesar
de volumoso e incômodo, pesava quase nada. Maurício apenas abriu a porta,
indicando-lhe o corredor.
Ermelinda veio até a porta observar e
intrometeu-se:
— Está vendo, Sarita? O Maurício
arranjou assistente.
— Quem pode, pode. Não é, Maurício? —
comentou a secretária, sorrindo.
Na recepção, foi a vez de Glorinha:
— E aí, Maurício? Vai de mãos vazias?
— Vou levar o garoto pra conhecer a
cidade.
— Ah, que gracinha! E não ajuda a
carregar o pacote?
— Eu queria, mas ele fez questão de
carregar, não é mesmo? — afirmou e voltou-se para Zeca, pedindo confirmação.
— Tadinho dele... — tornou ela e
desatou a rir.
Já na rua, Maurício interrogou, sério:
— Pegou os passes?
— Peguei.
— Conhece bem a cidade?
— Conheço... mais ou menos...
— E as linhas de ônibus?
— Mais ou menos.
Maurício observou-o de lado,
desaprovando:
— Mais ou menos não serve! Boy tem de
conhecer tudo! E não adianta enrolar que o Giba sabe o tempo que cada um
precisa pra fazer o serviço!
— Certo.
Após quase dez minutos de silêncio, no
ponto, tomaram o ônibus. Quando o veículo acelerou a marcha, Maurício
interrogou como quem não quer mas está querendo:
— Você é protegido de quem?
Zeca surpreendeu-se com a pergunta
direta e desentendeu:
— Protegido como? Não entendi...
— Se você não veio através de anúncio,
alguém deve ter conseguido pra você!
— Ah, foi o Batista.
— Batista? — careteou o boy. — Que
Batista?
— Ele trabalha numa gráfica. Diz que
vem sempre pegar e entregar serviço na agência...
Maurício deu um intervalo, como se
tentasse localizar mentalmente. Em seguida, arriscou:
— Não é o Batista da Colorcor?
— Esse mesmo! Ele é namorado de minha
irmã Marilena... e como sabia que eu estava a fim de trabalhar...
— Tudo bem — interrompeu o outro. —
Quem tem padrinho não morre pagão, ué!
Mais à vontade com o início de
conversa, Zeca comentou:
— Alguns boys não gostaram porque eu
vim com indicação... Ficou uma situação meio chata.
— Quem não gostou? Ah, você deve estar
falando do Russinho e do Claudionor.
— Acho que é.
Sentado do lado da janela, Maurício
falava sem perder de vista o trajeto do ônibus.
— O pessoal fica desconfiado quando
contratam alguém sem anunciar. Fica todo mundo imaginando que é um espião do
Gervásio...
— O chefe de pessoal?
— Além disso, você não precisa se
preocupar, que aqueles dois estão na mira do Gervásio. Não demora nada, vão pra
rua.
— Eles não trabalham direito?
— Eles fazem o serviço, mas são muito
folgados.
Maurício voltou a examinar o trânsito.
Depois, reatou:
— Você também não tenha ilusão!
Indicado ou não, se enrolar, vai pra rua!
— Certo. Eu estou a fim de trabalhar
sério. Preciso desse emprego.
De repente, o movimento tornou-se mais
lento por causa do trânsito ruim. Maurício fez uma careta e tornou ao assunto:
— O pessoal está meio alvoroçado,
também, porque mandaram o Tonho embora. Como você entrou no lugar dele, eles
ficaram fazendo onda. Mas você não tem nada com isso.
— Por que mandaram embora? Ele
enrolava?
— O Tonho? Era o melhor boy da agência!
— O melhor? Então, por que despediram?
O companheiro hesitou um instante, mas
em seguida abriu-se:
— Bateram uma carteira na agência e
levaram uma grana alta da Claudete...
— Você quer dizer que roubaram uma
funcionária? Quem é a Claudete?
— A Claudete é contato. Trabalha no
atendimento de clientes.
— E foi... foi o Tonho?
— Foi nada!
— Então, por que despediram?
— O Gervásio cismou que foi ele!
Zeca sentia-se confuso. Não entendia
como podia acontecer um negócio tão sujo num ambiente daquele nível. Jamais
imaginaria um ladrão naquela casa; não entre os funcionários. Pensou um pouco e
arriscou:
— Você acha que não foi o Tonho...
— Tenho certeza que não!
— E por que o Gervásio cismou com ele?
— Porque ele era preto.
A princípio, Zeca não entendeu:
— Porque era preto?... Só por isso?
— Você acha pouco? — interrogou
Maurício, encarando-o. — Para o Gervásio é muito!
[...]
Pega Ladrão. São
Paulo, Ática, 1986. p. 11-5.
Fonte: Português –
Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder
Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 179-184.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Fatura: relação que acompanha uma remessa de mercadorias, contendo a
descrição de tais mercadorias.
·
Iniciativa: atitude.
·
Enxerido: intrometido.
·
Mascarar: esconder.
·
Apreensão: sentimento de preocupação.
·
Intromissão: ato de intrometer-se em assuntos alheios.
·
Retrucar: responder.
·
Displicência: falta de interesse, descaso.
·
Na
mira: sob observação.
·
Reatar: estabelecer outra vez uma ligação ou uma conversa, retornar
do ponto interrompido.
·
Trajeto: caminho, percurso.
02 – A ação do texto
acontece em uma agência de publicidade. Qual é a situação que Zeca está vivendo
no emprego?
Zeca está
começando a trabalhar como mensageiro ou boy.
03 – Como Maurício trata
Zeca? Por que Maurício se comporta desta maneira?
Maurício o trata com superioridade porque
ele é mais experiente no emprego do que Zeca.
04 – Qual é a intenção de
Dona Ermelinda com a frase: “Ah, o garotão almoça na lanchonete, é?
Dona Ermelinda
está brincando com Zeca, tentando descontrai-lo.
05 – Em que circunstância
Zeca começou a trabalhar na agência?
Zeca foi
apresentado pelo namorado da irmã, que trabalha numa gráfica.
06 – Embora sem aparecer
diretamente no texto, o que é possível perceber sobre Gervásio?
Gervásio é o chefe de pessoal da agência.
Ele despediu Tonho porque implicava com ele.
07 – Por que Tonho foi
despedido?
Tonho foi
despedido porque houve um roubo na agência e Gervásio o considerou culpado por
ser preto.
08 – Como você imagina que
Tonho tenha se sentido ao ser tratado dessa forma?
Resposta pessoal
do aluno.
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