Conto: O meu pé de Laranja Lima – Fragmento
José Mauro Vasconcelos
A gente vinha de mãos dadas, sem pressa
de nada pela rua. Totóca vinha me ensinando a vida. E eu estava muito contente
porque meu irmão mais velho estava me dando a mão e ensinando as coisas. Mas
ensinando as coisas fora de casa. Porque em casa eu aprendia descobrindo
sozinho e fazendo sozinho, fazia errado e fazendo errado acabava sempre tomando
umas palmadas. Até bem pouco tempo ninguém me batia. Mas depois descobriram as
coisas e vivem dizendo que eu era o cão, que eu era capeta, gato ruço de mau pelo.
Não queria saber disso.
[...]
Joguei uma flecha de piedade nos olhos
de Glória. Ela sempre me salvara e eu sempre prometia a ela que não ia fazer
nunca mais...
— Mais tarde. Agora não. Eles estão
brincando tão quietinhos...
Ela já sabia de tudo. Sabia que eu
tinha ido pelo valão e entrado nos fundos do quintal de Dona Celina. Fiquei
fascinado com a corda de roupa balançando ao vento uma porção de pernas e
braços. Aí o diabo me disse que eu podia dar uma queda ao mesmo tempo em todos
os braços e pernas. Eu concordei com ele que ia ser muito engraçado. Procurei
no valão um caco de vidro bem afiado e subi na laranjeira e cortei a corda com
paciência.
Eu quase que caí ao mesmo tempo que
aquilo tudo veio abaixo. Um grito e todo mundo correu.
— Acode minha gente, que a corda rebentou.
Mas uma voz, não sei de onde, gritou
mais alto.
— Foi aquela peste do menino de seu
Paulo. Eu vi ele trepando na laranjeira com um caco de vidro...
[...]
Arrastei-me até a porta da cozinha,
estudando um meio de desarmar Glória. Ela estava bordando uns panos. Sentei
meio sem jeito e dessa vez Deus me ajudou. Ela me olhou e viu que eu estava de
cabeça baixa. Resolveu não dizer nada porque eu estava de castigo. Fiquei com
os olhos cheios d'água e funguei. Dei com os olhos de Glória me fitando. Suas
mãos tinham parado no bordado.
— Que é, Zezé?
— Nada, Godóia... Por que ninguém gosta
de mim?
— Você é muito arteiro.
— Hoje já levei três surras, Godóia.
— E não mereceu?
— Não é isso. É que como ninguém gosta
de mim, aproveitam para me bater por qualquer coisa.
[...]
No começo o segredo existiu só porque
eu tinha vergonha de ser visto no carro do homem que me dera umas palmadas.
Depois persistiu porque sempre era bom existir um segredo. E o Português fazia
todas as minhas vontades nesse aspecto. Tínhamos jurado, de morte, que ninguém
deveria saber da nossa amizade. Primeiro, porque não queria dar carona à
garotada. Quando vinha gente conhecida, ou mesmo Totóca, eu me abaixava.
Segundo, porque ninguém devia atrapalhar o mundo de conversas que a gente tinha
para conversar.
[...]
— [...] Eu não gosto muito do seu nome.
Não é que não goste, mas entre amigos fica muito...
— Virgem Santíssima, o que virá agora?
— Acha que eu posso chamar você de
Valadares?
Ele pensou um pouco e sorriu.
— De fato, não soa bem.
— De Manuel, eu também não gosto. Você
nem pode saber como eu fico fulo quando Papai conta anedotas de Português e
fala: ó Manuele... Se vê logo que o filho da mãe nunca teve um amigo
português...
— Que acabaste de falar?
— Que meu pai imita português?
— Não. Antes. Uma coisa feia.
— Filho da mãe é tão feio como o outro
filho?...
— Quase a mesma coisa.
— Então vou ver se não falo mais.
Então?
— Eu que te pergunto. Que conclusão
tiraste? Não me queres chamar de Valadares e pelo jeito de Manuel, também não.
— Tem um nome que eu acho lindo.
— Qual? Aí eu fiz a cara mais
sem-vergonha do mundo.
— Como seu Ladislau e os outros chamam
você na Confeitaria...
Ele fechou a mão fingindo zanga de
brincadeira.
— Sabes que és o maior atrevidaço que
eu conheço. Queres me chamar de Portuga, não é assim?
— Fica mais de amigo.
— É tudo quanto desejas? Pois bem. Eu
to permito. Agora vamos, sim?
VASCONCELOS, José Mauro de. O meu pé de
laranja lima. São Paulo: Melhoramentos, 1975. p. 5, 16, 70, 77, 81.
Fonte: Da escola para
o mundo – Projetos Integradores – volume único – Ensino médio – 1ª Edição, São
Paulo, 2020, editora Ática. p. 19-21.
Entendendo o conto:
01 – Com base na leitura dos
trechos, quem são as personagens que aparecem no cartaz do filme?
O menino Zezé e
seu amigo Portuga.
02 – Que elementos presentes
no texto escrito aparecem no trailer do filme?
Resposta pessoal do aluno.
03 – Que sentimentos,
sensações ou ideias o texto literário e sua versão cinematográfica provocam em
você?
Resposta pessoal do aluno.
04 – Se você tivesse de
indicar o romance ou o trailer para um amigo, como faria isso?
Resposta pessoal do aluno.
05 – Com base nas diferenças
entre as linguagens literária e cinematográfica apontadas anteriormente, o que
mais lhe chamou a atenção nos trechos do romance “O meu pé de laranja lima” e
quais aspectos são, em sua opinião, os mais significativos no trailer a que
você assistiu? Justifique suas escolhas formulando argumentos.
Resposta pessoal do aluno.
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