quinta-feira, 10 de agosto de 2017

CRÔNICA: QUE LÍNGUA, A NOSSA! FERNANDO SABINO - COM GABARITO


 QUE LÍNGUA, A NOSSA!
  Fernando Sabino

        Já faz algum tempo, dei com um texto de um sociólogo brasileiro muito prestigiado na época, que começava assim:
        “Os problemas que obstaculam o desenvolvimento do Brasil ...”
        Consultei o dicionário: o verbo obstacular simplesmente não existia. Em compensação, descobri que existia obstaculizar, no sentido de criar obstáculos, impedir, dificultar. Por que não falar nos problemas que impedem, dificultam o desenvolvimento do Brasil? Mania de complicar as coisas. Resultado: o nosso sociólogo acabou cassado.
        Estávamos ainda nos primórdios do tecnolês. Hoje em dia a coisa chegou a tal ponto que deixou para trás aquela pessimista observação de George Orwell sobre a linguagem técnica do nosso tempo. O escritor inglês ousou imaginar como seria escrito atualmente um trecho bíblico – e tomou como exemplo esta passagem do Eclesiastes:
        “Voltei-me para outra coisa, e vi que debaixo do sol não é o prêmio para os que melhor correm, nem a guerra para os que são mais fortes, nem o pão para os que são mais sábios, nem as riquezas para os que são mais hábeis, nem o crédito para os melhores artistas – mas que depende do tempo e das circunstâncias”.
        Agora a mesma coisa, na linguagem do nosso tempo:
        “Uma objetiva consideração dos fenômenos contemporâneos leva-nos à conclusão d que o sucesso ou o fracasso nas atividades competitivas não encerra possibilidade de ser comensurável pela capacidade inata, senão que um considerável elemento de imprevisível deve invariavelmente ser levado em conta”.
        Pois muito bem: de lá para cá as coisas pioraram muito. George Orwell, se ainda fosse vivo, poderia imaginar hoje a mesma ideia expressa mais ou menos assim:
        Ao equacionarmos o posicionamento das formulações de uma unidade comunitária, inseridas no contexto de suas propostas de relacionamento social, somos levados, pela conotação irreversível de sua sistemática, a concluir que a operacionalização das atividades individuais, uma vez deflagrada, gera um remanejamento pouco gratificante de suas virtudes intrínsecas, pois a adequação de suas fantasias à realidade circunstante não corresponde à expectativa inicialmente enfatizada, senão na medida de sua reciclagem em fase de fatores não comensuráveis.
        Só mesmo repetindo aquela exclamação de Jânio Quadros, depois de uma frase em que me dizia “a inteligência, Deus no-la deu...” – e subitamente interrompida, jamais terminada:
        No-la deu. Que língua, a nossa!

                                       Sabino, Fernando. As melhores crônicas de
                   Fernando Sabino. Rio de janeiro, Record, 1986. p. 63-4.

1 – Comente a frase “Mania de complicar as coisas”, relacionando-a com a função fática da linguagem.
     Essa mania prejudica os elementos fáticos da comunicação.

2 – Explique a construção “No-la deu...”.
     Deu-a a nós, ou seja, deu a inteligência a nós.

3 – Aponte no texto um exemplo de ironia.
     “Resultado: o nosso sociólogo acabou cassado”.

4 – Compare as três diferentes redações de um mesmo trecho que o texto nos oferece. A seguir, responda:
a)   Em qual delas há um maior número de palavras longas?
Na última.
b)   Em qual delas as frases são mais complexas?
Na última.
c)   Qual delas é mais fácil de ser lida e entendida?
A primeira.
d)   Qual delas é mais difícil de ser lida e entendida?
A última.

5 – Qual das três redações analisadas na questão anterior é mais eficiente, considerando-se o que estudamos sobre a função fática da linguagem?
     A primeira.

6 – O que é, no seu entender, o tecnolês? Você conhece exemplos de textos em que se emprega esse “idioma”?
     O aluno deve referir-se a textos de índole técnica, cada vez mais frequentes na pena e na boca de nossos economistas.


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