Crônica: A vida na vaga
Moacyr Scliar
NO COMEÇO ele tinha de chegar de carro
à Berrini duas horas e meia antes do horário de expediente para conseguir
estacionar. Era um problema, sobretudo para quem, como ele, não gostava de
acordar cedo; mas, lutador que era, não deixava se intimidar por aquilo.
Chegava cedo, sim, e tratava de usar o tempo da melhor maneira possível:
escutava rádio, lia jornal, e até escrevia – ficcionista frustrado tinha o
projeto de um grande romance e, aos poucos, ia digitando no laptop uma e outra
cena.
Mas – e isso apesar da crise – a situação
se agravou. Em breve, duas horas e meia de antecedência não eram suficientes.
Ele aumentou-as para quatro horas. Agora dormia menos ainda, mas, em
compensação, ficava cada vez mais atualizado com as notícias de rádio e de jornal.
E, ah sim, o romance ia crescendo.
A primeira parte já estava quase
pronta, e ele começava a projetar as outras. Tinha de lutar contra o invencível
sono, claro, mas a térmica com café (e ele esvaziava-a toda) ajudava um pouco.
Contudo, mais e mais carros entravam na
luta por uma vaga. Ele começou a chegar seis horas antes do expediente. Era
ainda noite fechada quando estacionava, mas, de novo, isso não o perturbava; ao
contrário, até gostava do silêncio que então reinava naquela artéria em outros
horários tão movimentada. Isso também mudou a sua rotina familiar, claro;
depois de jantar com a mulher e os dois filhos não ia para a cama: cochilava
umas horas na poltrona e seguia para o carro.
Passava mais tempo no veículo, mas isso
só fazia aumentar seu universo cultural: além de rádio e jornais, lia revistas,
livros diversos (estava pensando em fazer um mestrado) e, logicamente,
trabalhava no seu romance, cada vez maior. E o problema do estacionamento
sempre crescendo. Chegou um momento em que ele chegava em casa, jantava
apressado, e, embarcando no carro, retornava para a Berrini. Por fim chegou à
conclusão de que não valia mais a pena a volta ao lar.
Atualmente sai do escritório, come
alguma coisa numa lanchonete, e vai direto para o carro, esperar a hora de
retornar ao trabalho. A mulher e os filhos é que vêm visitá-lo no veículo, que
se transformou assim numa espécie de lar. Não, ele não se queixa. Vê algumas
vantagens na nova situação. Não precisa dirigir mais, não se estressa no
trânsito, não gasta combustível.
É um homem cada vez mais culto, uma
verdadeira enciclopédia ambulante (quando deambula, claro). E seu romance, que
já está com mais de mil laudas, tem tudo para ser uma grande obra literária. O
título, ainda provisório (muitas coisas em deambular nossa existência são
provisórias). é “A vida na vaga”.
Moacyr Scliar. Folha de
São Paulo.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é o problema central
que o protagonista da crônica enfrenta no início da história?
O problema central é a dificuldade extrema de conseguir uma
vaga para estacionar seu carro na Berrini, um conhecido centro empresarial de
São Paulo, o que o obriga a chegar com horas de antecedência ao trabalho.
02 – Como a rotina do
protagonista muda progressivamente devido à sua busca por uma vaga?
Sua rotina muda drasticamente: ele passa
a acordar cada vez mais cedo (de 2,5 para 4, e depois 6 horas antes do
expediente), passa a cochilar no carro e, por fim, decide não voltar mais para
casa, transformando o veículo em seu lar.
03 – Quais atividades o
protagonista passa a realizar em seu carro, enquanto espera pelo horário de
trabalho?
No carro, ele
escuta rádio, lê jornais e revistas, lê livros (com a intenção de fazer um
mestrado) e, principalmente, escreve seu romance, um projeto literário que ele
nutria.
04 – Apesar do inconveniente,
o protagonista encontra alguma vantagem em sua nova condição de vida? Quais?
Sim, ele encontra
vantagens. Ele não precisa mais dirigir, não se estressa no trânsito, não gasta
combustível e se torna um homem cada vez mais culto, além de ter tempo para se
dedicar integralmente ao seu romance.
05 – Qual o título provisório
do romance que o protagonista está escrevendo e como ele se relaciona com sua
vida?
O título provisório do romance é "A vida na vaga".
Esse título reflete diretamente sua nova realidade, onde sua vida se resume a
esperar em uma vaga de estacionamento, o que também se tornou o tema de sua
obra.
06 – Como a crônica ironiza a
busca por "melhores condições" ou "sucesso" na vida urbana
contemporânea?
A crônica ironiza
ao mostrar como o protagonista, em sua busca por um trabalho (que sugere
sucesso profissional), acaba por sacrificar aspectos fundamentais da vida
pessoal, como o convívio familiar e o conforto do lar, adaptando-se a uma
existência totalmente voltada para a vaga, que se torna um símbolo da rigidez e
dos absurdos da vida urbana.
07 – Qual o papel da família
do protagonista nessa nova dinâmica de vida?
A mulher e os filhos do protagonista
precisam visitá-lo no carro, que se transformou em sua casa, evidenciando o
sacrifício familiar imposto pela busca incessante por um lugar (físico e
metafórico) na cidade grande.
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