Entrevista: Caetano Veloso
Monique
— Caetano, a ideia central desta proposta de educação infantil — tratada no
livro “A fome com a vontade de comer” — é que as transformações têm a chave do
saber e que essas transformações se dão quando existe uma interação entre o que
a pessoa é, o que ela sabe, os seus conhecimentos prévios, e aquilo que é
ensinado a ela. Essa é a função da escola, ensinar algumas coisas para as
pessoas, não é? Aqui no estado da Bahia a gente tem uma diversidade enorme de
modos de vida e cultura, e essa diversidade está, me parece, mais fundada
atualmente nas coisas de uma cultura popular que se mantém pela preservação das
tradições, do que uma cultura popular que se transforma. Algumas pessoas
acreditam que não se pode, ao mesmo tempo, ser um ouvinte de rock and roll e
preservar a tradição dos ternos de Reis, por exemplo. Como é que você vê essa
questão, dessa diversidade do estado em relação a essa questão da cultura
popular e daquilo que pode ser trazido como contribuição pela educação? Eu fico
pensando que educação é exatamente o lugar de acesso ao conhecimento, aos bens
culturais que são daquele lugar, mas que também dão acesso às pessoas que são
daquele lugar a qualquer outra coisa, de qualquer outro lugar do mundo. Como é que
você vê essa questão?

Caetano
— Bom, até onde a minha cabeça pode chegar, eu concordo sobretudo com a sua
conclusão, esta última parte do que você falou, o conhecimento local como meio
de acesso para o conhecimento universal, não sendo uma defesa contra o contato
com o conhecimento exterior àquela área, mas como na verdade uma instrumentação
maior para você entrar em contato, para fazer conexões com os outros círculos
de saber, eu concordo sobretudo com isso. Quando você menciona a posição de algumas
pessoas que creem que o fato de as pessoas ouvirem rock and roll impede que
elas mantenham contato com tradições como um terno de Reis, ou um samba de
roda, que essas coisas não podem conviver, eu tenho a experiência pessoal que
essas coisas convivem. Agora, não sei por quanto tempo, nem em que termos, qual
dessas duas expressões culturais, digamos o rock and roll e o samba de roda,
vai ser dominante, ou estar mais ligada ao futuro das pessoas que participam
dela e qual a que ficaria com apenas um resíduo do passado; se é assim que o
rock and roll e o samba de roda se contrapõem em sociedades onde essas duas
coisas podem conviver, ou se pelo contrário uma ou outra coisa vai nascer da
audição de rock and roll por pessoas que cresceram praticando samba de roda e
que não deixaram, por ouvir rock and roll, ou fox-trot, ou boleros mexicanos,
ou tangos, não deixaram de praticar samba de roda. É o caso do Recôncavo da
Bahia: em Santo Amaro, por exemplo, o samba de roda continua sendo uma prática
normal, não uma prática assim programada por grupos de preservação do folclore:
é uma prática normal. Quando tem uma festa na minha casa em Santo Amaro, tem
samba de roda, e assim em muitas outras casas em Santo Amaro.
Monique
— Pois é exatamente isso, e você eu acho que é um excelente exemplo que
responde essa questão, porque você traz, conserva no sentido de guardar, todas
essas tradições e ao mesmo tempo cria sempre novas coisas. Mas você foi uma
pessoa que teve dentro de casa uma situação muito especial, de acesso a uma
série de informações sobre o mundo. Quando você diz que lia a revista Senhor,
ou que você tinha uma professora de português que te sugeriu a leitura de
poemas de João Cabral de Melo Neto, isso deu a você possibilidades, que talvez
você não tivesse, se permanecesse na situação estrita do samba de roda.
Caetano
— É claro.
Monique
— Então o que eu acho é que a escola é o lugar de acesso ao João Cabral, ao
que é o existencialismo...
Caetano
— É, eu acho.
Monique
— Enfim, que a escola é o lugar...
Caetano
— A escola é o lugar de acesso democrático ao conhecimento universal, quer
dizer, que tem valor em qualquer lugar. Agora, eu não sei o que é que preocupa
você propriamente nisso. Essa definição me parece muito boa, e a sua posição me
parece boa e nesse exemplo do rock and roll com as coisas tradicionais eu pude
falar alguma coisa. Em trechos da sua conversa eu poderia ter pensado em alguma
outra coisa, mas não sei assim no todo o que é que preocupa você, o que é que
une essas coisas todas.
Monique — É o
seguinte: a chamada educação tradicional, que vem sendo revista e criticada,
ela dava acesso aos bens culturais, não é? Então, quando você diz "para a
escola pública eu ia, não só porque em casa não teríamos condições de ir a
outra...
Caetano
— Porque eram melhores, é.
Monique —
...mas porque era a melhor que tinha". A escola pública ensinava os
objetos do conhecimento, os elementos da cultura. Houve, nos últimos 25 anos,
um movimento de crítica à escola tradicional no que se refere ao comportamento,
às normas, de ser uma escola muito restritiva, de propor uma aprendizagem
mecânica, repetitiva. Essa crítica, me parece, tem sua razão de ser por aí. Mas
foi uma crítica que fez com que muitos educadores passassem a descartar o
ensino intencional dos objetos de conhecimento. Assim, a escola chamada nova,
renovada, ela não tem a intenção de transmitir o conhecimento. Então, você tem
crianças que podem ser muito espontâneas, muito criativas, muito alegres...
Caetano
— ...e pouco informadas, é.
Monique
— ...mas muito pouco informadas! E paralelamente a isso houve um movimento
de recuperação da cultura local, uma intenção de trabalhar a partir das
realidades dos sujeitos. Propõe-se então um trabalho gerado pelos interesses
dos alunos, por temas geradores vinculados a determinados modos de vida e
cultura das pessoas envolvidas. Essa forma de trabalho pedagógico é
extremamente interessante, mas existe a ideia que só se pode trabalhar a partir
desses elementos. Então, a rigor, aqui no estado da Bahia, o pessoal do
Recôncavo só teria acesso à cultura local, o do sertão idem, e assim por
diante. O que me preocupa é que dessa forma a escola não seja o lugar de acesso
democrático ao conhecimento, que haja uma intenção, consciente ou não, de
impedir esse acesso.
Caetano
— É uma reação contra a verdadeira democratização do conhecimento, da
educação, da própria alfabetização no Brasil. Agora, pelo que você está dizendo
aí, essa reação se mostra como uma atitude mais ou menos consciente, em pessoas
que nos querem preservar a injustiça social que é muito gritante no Brasil. Por
outro lado, pessoas de muito boas intenções terminam contribuindo para isso
também, não é, com a ideia de renovação da escola e de uma educação mais
espontaneísta, isto é, com menos conhecimento do que seja disciplina. Eu tive
uma experiência pessoal que talvez lhe sirva um pouco. Quando Moreno, meu filho
mais velho foi se matricular numa escola do Rio, ele saiu de uma escola
primária e foi para um ginásio. Então eu fui na reunião de pais e mestres, a
primeira para a entrada dos alunos. Os professores explicando como era a
escola, davam muita ênfase à diferença entre o que eles faziam nessa escola e o
que as escolas tradicionais faziam. Eles demonstravam — o diretor e algumas
professoras enfatizavam muito o fato de que eles faziam do aprendizado uma
coisa muito agradável, divertida, que aquela ideia que estudar era uma coisa
maçante, difícil, era ultrapassada, era uma ideia antiga. Eu acompanhava com
simpatia aquilo, mas cresceu demais nessa direção e todos, os professores e os
pais, pareciam concordar que a escola deveria ser algo agradável, divertida e
atraente para a criança. Eu não discordava disso, mas comecei a temer que
estivesse faltando ali uma noção de disciplina. Aí eu me levantei e disse
assim: "eu fico um pouco preocupado porque tenho a impressão que vocês
estão querendo negar que alguma coisa no ensino e no estudo, e tem que ser
chata". Eles ficaram um pouco chocados e as pessoas também, alguns pais.
Moreno ficou até meio duvidoso, ele estava com onze anos de idade, dez para
onze anos, e veio falar comigo: "pai, algumas pessoas falaram que você foi
careta na reunião", ... e eu contei a ele...
Monique — É muito difícil você procurar
conhecer as coisas, custa muito esforço, não é? Não tem outro jeito e é bom que
seja assim...
Caetano
— Não, eu disse o seguinte: "para vocês, disciplina tem um aspecto que
tem que ser maçante? Em algum momento a escola dá ideia de disciplina? Estou
falando assim até por ciúme, porque não quero que meu filho ache que a escola é
mais divertida do que o parque de diversão e nem mais amorosa do que a minha
casa. A escola é uma outra coisa na vida dele, não pode ser tão amorosa quanto
os pais e tão divertida quanto o Tivoli Park! Eu acho que justamente na escola
é que deve haver alguma coisa onde... em casa também se aprende isso, mas na
escola sobretudo, onde se aprende mais que você tem que passar por coisas em
princípio maçantes para chegar a ter capacidade de ter prazeres
superiores". Eu disse assim, "até pra tocar pandeiro, que é uma coisa
muito difícil", e ficaram aqueles professores me olhando, "tocar
pandeiro é uma das coisas mais difíceis que existem? Então, você vê um cara
tocando pandeiro, se divertindo na esquina, se ele está tocando bem, o que ele
passou de maçada, para chegar àquela técnica mínima de tocar pandeiro, de
treinamento, de autodisciplina, é incomensurável; é isso que vocês devem ensinar
na escola, mais do que a criança ser espontânea ou a escola ser
divertida". É claro que quanto mais divertida a escola puder ser, melhor,
quanto mais atraente, mais amorosa, melhor, quanto menos repressiva precise
ser, melhor. Porém, que não se perca de vista que a escola é que deve ensinar
pessoas a aceitar o lado chato da vida, entendeu? É o lugar, de todos os
lugares onde uma criança vai, frequentemente, até crescer, onde mais se deve
ensinar como enfrentar o chato, ou seja, ficar horas diante de um livro
estudando, obedecer ordens, ter tarefas a cumprir, tarefas que são difíceis,
que ele deve treinar para ser capaz de executar, isso de alguma forma, em algum
momento é, ou tem que ser, ou parecer chato para a criança e a escola tem que
reconhecer que é também o seu papel, não é? Então a escola tradicional que era
repetitiva e repressiva, que tinha hipertrofiado, digamos assim, mas tinha
isso, não é? A escola deve ensinar a estudar também, não apenas ensinar o que
já é sabido. Eu acho que deve, eu estou dizendo isso como opinião de um pai que
viu essa questão no processo de educação do filho, na minha história com Moreno
nessa escola. Onde aliás ele se deu até bem, aprendeu até algumas coisas, mas
era toda uma série de negações das repressões e da disciplina sem uma nova
formulação da ideia de disciplina, entendeu? Agora, não sei se já é a sua
segunda pergunta, mas saiu um pouco da primeira. Porque a primeira era mais
essa questão da área cultural e acesso à cultura universal. Mas eu acho que
você tem a resposta melhor. A formulação conclusiva da sua pergunta traz a
melhor resposta a ela. Você ouça de novo gravada, você vai ver: eu concordo com
aquilo, essa é minha opinião. A formulação conclusiva da sua pergunta traz a
melhor resposta à sua pergunta.
Monique — Então, diante dessa questão
que a gente não está nomeando, e que está no final da minha pergunta, a gente
tem a seguinte situação: a educação infantil é uma profissão quase estritamente
feminina: são raríssimos os homens que estão nesta profissão.
Caetano
— É verdade, é engraçado isso não é?
Monique
— Então, eu fico pensando o seguinte: as mulheres, ou esse aspecto mais
feminino nelas, ele é maternal, tem como possibilidade uma tentativa de quase
substituir a casa, e essa coisa que você falou que não queria ser
substituído...
Caetano
— É eu não quero mesmo.
Monique
— ...no seu amor de pai. Tanto é assim, que as professoras de educação
infantil são chamadas de tias, como se fossem não uma profissional, mas uma pessoa
da família. Então você tem nessas profissionais uma coisa ao mesmo tempo de uma
dedicação que às vezes é espantosa, isso que Dolores nos dizia de professoras
que têm um amor a essa causa e a esse trabalho com as crianças, uma dedicação,
um ânimo pra coisa que é extraordinário, sobretudo se você for pensar nas
condições de trabalho, que são muito ruins.
Caetano
— Eu fico espantado como ainda há professores no Brasil. É um gosto mesmo,
porque não há estímulo não é verdade?
Monique
— Exatamente...
Caetano — Eu
fico apaixonado quando uma pessoa diz que é professora, ou professor, de escola
primária, é inacreditável. Porque a pessoa deveria ser muito bem assistida.
Deveria ter um bom salário, e muitas regalias na sociedade brasileira para
estimular a educação, o ensino. Mas os professores não têm isso, ao contrário.
Dolores — A
Monique coloca um exemplo que eu acho vital: a gente vai ao médico, a gente
confia no médico, não pode dar palpite. Mas quando chega a hora das
professoras, ela não pode fazer o que acredita, porque diretor, pai, mãe, todo
mundo dá palpite. É aí que ela insiste na coisa de a gente poder se
profissionalizar.
Caetano
— É, eu acho. Olha, isso daí eu acho importante.
Monique
— É exatamente minha segunda pergunta. Porque você tem uma profissão
feminina que tem essa dedicação, tem esse desvelo, mas tem uma precariedade
imensa de conhecimento de ofício: as pessoas são, no máximo, muito boas
reprodutoras de procedimentos que já vêm de muitos e muitos anos, com aqueles
mesmos textos: essas são as boas professoras. Mas a educação é um terreno,
assim, maravilhoso de investigações. Se formos pensar como um ser humano
aprende, por exemplo, só por aí você tem coisas extraordinárias; toda questão
da arte, toda questão da constituição das linguagens. Raríssimos são os
professores que têm acesso a essas coisas e que se preocupam com elas, que
buscam se profissionalizar nesse sentido. Quero dizer que se perguntam:
"que base científica eu preciso para exercer essa profissão, o que é que
eu preciso saber?". Então, eu queria saber como é que você vê essa
questão, eu pergunto, por ser uma profissão feminina é que existe na educação
essa dificuldade de tomar o ofício mais a sério?
Caetano
— Eu não sei, eu não sei. Talvez o fato de ser predominantemente feminino o
contingente de professores de crianças pequenas contribua, ou seja, mesmo uma
condição para que essa função seja exercida de uma maneira muito menos
profissional, de uma maneira quase pessoal, familiar. Em vez de profissional, e
sem muita tendência profissionalizante. Talvez seja porque junto com várias
coisas arcaicas tem aí também a própria ideia de que a mulher não é, nem deve,
nem precisa ser muito intelectualmente desenvolvida. Eu acho que está embutido
aí, talvez, uma velha visão da mulher, também, talvez esteja. Eu vejo, quando
você descreve essas questões...
Monique
— Que visão da mulher você tem em relação a isso? Porque você é bem
ambíguo, muitas vezes, assim, publicamente...
Caetano
— Ah! Sou, sou, intimamente mais ambíguo ainda! Intimamente mais ambíguo
ainda. Eu acho que evidentemente tem coisas boas nesse fato de ser sobretudo
mulheres que ensinam as crianças, tem coisas boas no fato de as mulheres não serem
muito boas profissionais também, não terem uma tendência, ou um convite da
sociedade para que elas sejam intelectualmente muito responsáveis. Isso leva
coisas boas também no trato das professoras de crianças na primeira fase.
Monique
— Que tipo de coisas?
Caetano
— Eu não sei, talvez esse próprio calor personalizado, maternal, confundido
com a família, tenha em si mesmo algumas vantagens que se a gente...
Monique
— Mas você disse na escola do Moreno que você não queria...
Caetano — Não queria e não quero... eu
estou dizendo apenas que embora..., eu não quero, mas eu acho que deve ter
coisas boas, que é o que mantém isso. Eu acho que deve ter, porque eu vejo que
tem. Eu acho o seguinte: essas pessoas que se desvelam nessa profissão são
pessoas maravilhosas e não é o fato de haver um equívoco dessa natureza em
relação a isso que diminui aos meus olhos a beleza do perfil psicológico da
professora da criança pequena, entendeu? Eu digo assim, a ideia geral que eu
faço da moça que ensina as crianças na primeira fase é uma ideia benigna, em
primeiro lugar, uma ideia boa. Essas características pouco profissionais devem
conter alguma coisa de muito boa, eu acho, porque tudo isso, a mera existência
de professoras já é uma coisa muito boa, entendeu, quando não há estímulo
profissional para que haja professoras. Então eu queria apenas estar dizendo
uma coisa carinhosa que elas merecem. O que não quer dizer que eu ache que as
coisas devam permanecer assim, ao contrário: eu acho que quanto maior
desenvolvimento intelectual e consciência do que elas estão fazendo por essas
pessoas, sobretudo mulheres, puderem ganhar, melhor será para elas e para a
profissão e melhor será para o ensino no Brasil. Até mesmo para aquela visão
mais geral de que a gente estava falando sobre a necessidade de democratização
do ensino público no Brasil...
Monique —
Exatamente.
Caetano
— Então, a minha posição é nitidamente favorável a uma superação de uma
fase amadorística, embrionária do ensino para crianças pequenas. Mas, quando eu
disse que deve haver coisas boas é porque eu suponho que há alguma coisa muito
delicada, muito profunda nessa questão da ambição moderna de equiparar o homem
à mulher nas suas potencialidades como sujeitos sociais, entendeu? Eu acho que
esse é um assunto que me interessou desde a minha primeira infância, uma coisa
que me interessa desde que eu era criança, que os assuntos que são assuntos do
feminismo são assuntos meus...
Monique
— A terceira pergunta é a seguinte: você, como pai do Zeca, se você pudesse
fazer uma escola dos seus sonhos, o que você gostaria que a escola oferecesse?
Caetano
— Olha, uma escola dos meus sonhos não teria dificuldade de ser posta em
funcionamento, é muito simples: uma escola que ensinasse, fosse limpa,
organizada... Não achei basicamente muito difícil educar o meu primeiro filho
em escolas, aquela questão que eu enfrentei, eu a descrevi, mais não cheguei a
ter grandes dificuldades, nem quando ele foi para uma escola muito careta, ele
chegou a ter dificuldades, serviu para ele de complementação, de experiência,
de aprendizado também de como as coisas são. Então, não posso dizer que eu
particularmente tenha tido dificuldades com escolas, e não penso que venha a
ter com o Zeca, necessariamente, porque eu acho, se não houver problemas
sérios, as escolas são basicamente fáceis em me satisfazer. É verdade, é fácil
para uma escola me satisfazer como pai, porque para mim basta que haja um nível
razoável de informação, que os professores se comportem bem, ensinem. Eu não
tenho uma ideia muito criativa de como uma escola deve ser, nem preciso ter
como pai. O que me preocupa mais é a possibilidade de muitas outras crianças,
que nasceram nessa mesma altura que o Zeca nasceu, poderem ter acesso a um
ensino razoável, a algum ensino, não é? O maior problema de Zeca para mim não
está nem com ele, nem na escola que ele poderá encontrar, eu acho que está mais
no número imenso de companheiros de geração dele que não chegarão a nenhuma
escola, ou chegarão apenas a frequentar uma sub-escola por um ano e meio ou
dois, e depois terem que sair, ou terminarem saindo. Eu acho que esse é que vai
ser o maior problema para Zeca, porque a escola em si, para uma pessoa com os
meus meios, no Brasil, eu acho que dificilmente chega propriamente a ser um
problema: eu não senti isso com meu primeiro filho e não vejo que eu venha a
sentir com o segundo. Eu ouço muito dizer entre pessoas da minha área, quer
dizer, até entre pessoas da classe artística, mas sobretudo entre pessoas de
alto poder aquisitivo no Brasil, ouço dizer, e tenho visto eles se decidirem
por isso, que preferem botar os filhos para estudar em escolas estrangeiras.
Então uns estudam em escolas alemãs, outros na americana, outros na escola
inglesa. Eu não tenho desejo nenhum de fazer isso, eu até reajo um pouco contra
isso. Primeiro porque não sinto problema — como se houvesse uma deficiência nas
escolas em que meu filho mais velho estudou —, e depois porque eu tenho um
pouco de desconfiança, e até de repulsa mesmo por essa atitude. É mais um
agravante da disparidade social brasileira e econômica, esses atos das pessoas
de alto poder aquisitivo no Brasil, praticamente só usarem o Brasil para sugar
o dinheiro dele, para sugar posses, para poder gastar em outros países e ainda
por cima botar os filhos em escolas de outros países. Então, parece que o
Brasil como país não existe, gradativamente vai se tornando apenas um lugar que
algumas pessoas, muito poucas, sugam de onde as pessoas retiram tudo para
gastar em outros lugares. Então eu tenho esse problema; mas a escola, é claro
que eu quero, por exemplo, que o Zeca tenha uma escola não muito repressiva,
com uma capacidade de permitir que ele desenvolva a individualidade dele, que
expresse a personalidade individual dele, mas não acho que isso seja muito
difícil de encontrar hoje em dia. Eu gostei das escolas que eu frequentei. Sei
que houve uma queda muito grande na questão da qualidade de ensino e de
manutenção de escolas públicas no Brasil — o que eu acho uma tragédia —, e
porque eu estudei em escolas públicas, se pudesse haver uma reversão desse
quadro eu adoraria; se Zeca já pudesse se beneficiar disso, para mim isso sim
seria um sonho.
Monique
— Eu tenho até um sonho...
Caetano
— Mas eu espero até que você tenha, porque é da sua profissão. Eu estou
falando com você porque eu adoro esse assunto e para estimular seu próprio
pensamento. É por isso que eu estou falando, para você também, eu acho que vale
a pena. Mas eu acho que eu próprio não posso contribuir com ideia nenhuma para
essas coisas. Eu acho que talvez a nossa conversa sirva a você, mas eu não
posso trazer ideias novas a uma atividade à qual eu não estou ligado.
Monique
— Assim como eu não poderia trazer ideias novas para uma canção sua...
Caetano
— É, talvez. Mas você sabe que eu queria ser professor, eu queria ser
professor. Eu já lhe disse isso, não é? Se eu não fosse artista, eu ia ser
professor. Está bom?
Monique
— Está ótimo!
Concedida a Monique
Deheinzelin em Salvador, em 18 de janeiro de 1993. Extraída de Trilha:
educação, construtivismo, de Monique Deheinzelin, Petrópolis/RJ: Vozes, 1996.
Participou da entrevista a educadora baiana Maria Dolores Coni Campos.
Petrópolis, Editora Vozes, 1994.
Fonte: Programa de
Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p.
239-245.
Entendendo a entrevista:
01 – Qual é a ideia central da
proposta de educação infantil que Monique menciona, baseada no livro "A
fome com a vontade de comer"?
A ideia central é
que as transformações têm a chave do saber e que essas transformações ocorrem
por meio da interação entre o que a pessoa é, o que ela sabe (conhecimentos
prévios) e aquilo que lhe é ensinado.
02 – Como Caetano Veloso se
posiciona em relação à convivência entre a cultura local (ex.: samba de roda) e
influências externas (ex.: rock and roll)?
Caetano Veloso
afirma que, por sua experiência pessoal, essas coisas convivem sim. Ele não
sabe por quanto tempo ou em que termos, mas cita o Recôncavo da Bahia, em Santo
Amaro, onde o samba de roda continua sendo uma prática normal, mesmo para
pessoas que ouvem outros gêneros musicais.
03 – Qual é o papel principal
da escola, segundo a conclusão de Monique e a concordância de Caetano Veloso?
A escola é o
lugar de acesso democrático ao conhecimento universal, onde o conhecimento
local serve como meio para acessar e fazer conexões com outros círculos de
saber, não como uma defesa contra o que é exterior.
04 – Que crítica Monique faz à
"escola nova" ou "renovada" em contraste com a escola
tradicional?
Monique critica
que, ao descartar o ensino intencional dos objetos de conhecimento, a escola
nova, apesar de formar crianças espontâneas, criativas e alegres, as deixa
"muito pouco informadas". Além disso, a ênfase excessiva na cultura
local pode impedir o acesso democrático ao conhecimento universal.
05 – Qual foi a experiência
pessoal de Caetano Veloso com a escola de seu filho Moreno que o fez questionar
a "escola divertida"?
Em uma reunião de
pais e mestres, a escola de Moreno enfatizava demais o quão agradável e
divertida a aprendizagem deveria ser. Caetano se levantou e expressou sua
preocupação de que a escola estivesse negando que "alguma coisa no ensino
e no estudo, e tem que ser chata", defendendo a importância da disciplina
e do esforço para alcançar prazeres superiores.
06 – Como Caetano Veloso
justifica a necessidade de aceitar o "lado chato da vida" na
educação, usando o exemplo de tocar pandeiro?
Ele explica que,
para tocar pandeiro bem e se divertir na esquina, é preciso um "maçada
incomensurável" de treinamento e autodisciplina. A escola, portanto, deve
ensinar a criança a enfrentar o que é difícil e chato para adquirir capacidades
e habilidades, mais do que apenas ser espontânea ou divertida.
07 – Qual a visão de Monique
sobre a profissão de educador infantil no Brasil, especialmente por ser
predominantemente feminina?
Monique observa
que é uma profissão com grande dedicação e desvelo, mas com uma imensa
precariedade de conhecimento de ofício. Ela questiona se o fato de ser uma
profissão feminina contribui para essa dificuldade em levá-la mais a sério, com
menor busca por base científica e profissionalização.
08 – Como Caetano Veloso
interpreta o fato de a educação infantil ser predominantemente feminina e ter
um aspecto "pouco profissional"?
Ele sugere que,
talvez, isso contribua para que a função seja exercida de uma maneira menos
profissional, mais pessoal/familiar, e que isso pode estar relacionado a uma
"velha visão da mulher" que não a vê como intelectualmente
desenvolvida. No entanto, ele também acredita que esse "calor
personalizado, maternal" tem suas vantagens que mantêm a beleza do perfil
psicológico dessas professoras.
09 – Qual seria a "escola
dos sonhos" de Caetano Veloso para seu filho Zeca?
Ele descreve uma
escola simples, limpa, organizada e que ensinasse com um "nível razoável
de informação", onde os professores se comportassem bem. Para ele, o maior
problema não está na escola para seu filho, mas sim no acesso de muitas outras
crianças à educação de qualidade no Brasil.
10 – Por que Caetano Veloso
reage à atitude de pais de alta poder aquisitivo que mandam seus filhos para
escolas estrangeiras?
Ele vê essa
atitude como um agravante da disparidade social e econômica brasileira, onde o
país é "sugado" para que o dinheiro seja gasto em outros lugares e os
filhos estudem no exterior. Ele sente "desconfiança e até repulsa"
por essa prática, pois parece que "o Brasil como país não existe"
para essas pessoas.
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