Crônica: O rádio apaixonado
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Moacyr Scliar
MINHA QUERIDA DONA, sei que você anda
se queixando de mim, publicamente, até. Você não pode imaginar o sofrimento que
isto me causa, mesmo porque você provavelmente acha que rádios são objetos
inanimados, sem vida própria.
Você está enganada. Ao menos no meu caso, você está enganada. Ao contrário do que você pensa, tenho sentimentos, tenho emoções. É em nome desses sentimentos e dessas emoções que lhe falo agora, tanto em AM como em FM. Na verdade, eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até que fui instalado em seu carro.
Você estava muito feliz; tinham lhe
dito que minha marca é ótima, e que você contaria com um som maravilhoso para
lhe ajudar no estresse que é esse trânsito. E, eu colocado no meu lugar, você
me acariciou, você tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já
deveria estar acostumado com eletricidade. Você fez de mim um ser vivo.
Vivo e apaixonado. Daquele momento em
diante, passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria
transmitir as melodias que recebia por meio de tantas canções. Você ao volante,
minha felicidade era completa. Acontece que você não se deu conta disso, ou
fingiu que não se dava conta disso. Você me ligava, você sintonizava uma
emissora qualquer e pronto, voltava à sua vidinha. Pior: tratava-se de uma
vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você
conversando com um homem, aquilo me dava ciúmes, ciúmes terríveis.
O Bentinho, do Machado de Assis, aquele
que desconfiava da Capitu, não sofreu tanto.
Lá pelas tantas eu tinha ciúmes até do
seu MP4.
Agora: o que poderia eu fazer? Humanos
têm como demonstrar seus ciúmes, têm como descarregar a frustração. Mas eu sou
um rádio, um bom rádio, mas rádio, de qualquer maneira. A mim não estava
facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo que estava a meu alcance: o som.
Quando você estava com alguém de quem
eu não gostava, eu aumentava meu volume – e volume, você sabe, é coisa que não
me falta – até chegar a níveis insuportáveis, uma avalanche de decibéis. E aí,
subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala,
especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de
queimar: era ele ou eu.
Você foi se queixar com um técnico,
achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está certa: estou
desconfigurado, estou desfigurado, estou perturbado – mas tudo isso por causa
do sofrimento que você me causou.
Querida dona, estas são minhas derradeiras
palavras, antes de sair definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha
última mensagem é esta: nunca brinque com os sentimentos de um rádio
apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.
SCLIAR, Moacyr. O rádio
apaixonado. In: SCLIAR, Moacyr. Histórias que os jornais não contam. 3. ed.
Porto Alegre: L&M Editores, 2018.p.14-16. (Adaptado).
Entendendo a crônica:
01 – Qual é a premissa
inusitada que o narrador da crônica apresenta?
A premissa
inusitada é que o narrador é um rádio de carro que possui sentimentos e
emoções, contrariando a percepção de sua dona de que ele é apenas um objeto
inanimado.
02 – Como o rádio descreve o
momento em que se tornou "vivo e apaixonado" por sua dona?
O rádio descreve
o momento como um "choque" elétrico, ocorrido quando a dona o
instalou no carro e o acariciou e tocou seus botões, fazendo-o sentir-se vivo e
despertar sua paixão.
03 – Quais são os principais
motivos de ciúme do rádio em relação à sua dona?
Os principais
motivos de ciúme do rádio são a presença de amigas e, principalmente, de outros
homens no carro da dona, além de ter ciúme até do MP4 dela.
04 – De que forma o rádio
expressa sua frustração e ciúmes, já que não pode fazer cenas como os humanos?
O rádio recorre ao
som para expressar sua frustração e ciúmes. Ele aumentava o volume a níveis
insuportáveis quando a dona estava com alguém de quem não gostava e, em
seguida, calava-se subitamente para lembrá-la que "o silêncio também
fala". Ele também queimou o MP4.
05 – Qual é a analogia que o
rádio faz com um personagem da literatura brasileira?
O rádio se
compara a Bentinho, de Machado de Assis, aquele que desconfiava de Capitu, para
ilustrar a intensidade de seu sofrimento com o ciúme.
06 – Qual a condição atual do
rádio e qual sua última mensagem para a dona?
O rádio está
"desconfigurado, desfigurado, perturbado" pelo sofrimento e está
prestes a "sair definitivamente do ar". Sua última mensagem é um
alerta: "nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai
ter, no mínimo, surpresas desagradáveis."
07 – Qual o tom geral da
crônica, considerando a personificação do rádio e suas "queixas" para
a dona?
O tom geral da
crônica é bem-humorado e irônico, apesar de o rádio expressar sentimentos de
sofrimento e ciúme. A personificação de um objeto inanimado com emoções humanas
cria uma situação cômica e reflexiva sobre as relações e a negligência afetiva.
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