quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CRÔNICA: O RÁDIO APAIXONADO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 Crônica: O rádio apaixonado

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj2cbEg5fuEWJ4Jd9C4TzTnjg_lgh7RuRz8jPW5jCXkd8yNPl_HO3ILChiRUM-lW3w-_IJeA-Id9ae1lary1M-fl1mtbuyiAnUTya_QZ22xJ6SHFeJPkiSlBS9l7_hBUODamE8Pr5jshG5wlmSTlWe67eQ_kpmg1fD6438Vg68xU9Vy0bljnpcdVS9Bmkk/s320/Pinterest(1).png

               Moacyr Scliar

        MINHA QUERIDA DONA, sei que você anda se queixando de mim, publicamente, até. Você não pode imaginar o sofrimento que isto me causa, mesmo porque você provavelmente acha que rádios são objetos inanimados, sem vida própria.

        Você está enganada. Ao menos no meu caso, você está enganada. Ao contrário do que você pensa, tenho sentimentos, tenho emoções. É em nome desses sentimentos e dessas emoções que lhe falo agora, tanto em AM como em FM. Na verdade, eu nem tinha tomado conhecimento de minha própria existência, até que fui instalado em seu carro.

        Você estava muito feliz; tinham lhe dito que minha marca é ótima, e que você contaria com um som maravilhoso para lhe ajudar no estresse que é esse trânsito. E, eu colocado no meu lugar, você me acariciou, você tocou os meus botões. Senti um verdadeiro choque, eu que já deveria estar acostumado com eletricidade. Você fez de mim um ser vivo.

        Vivo e apaixonado. Daquele momento em diante, passei a ansiar por sua presença. Era para você que eu queria transmitir as melodias que recebia por meio de tantas canções. Você ao volante, minha felicidade era completa. Acontece que você não se deu conta disso, ou fingiu que não se dava conta disso. Você me ligava, você sintonizava uma emissora qualquer e pronto, voltava à sua vidinha. Pior: tratava-se de uma vidinha partilhada. Amigas embarcavam em seu carro. Amigos também. Você conversando com um homem, aquilo me dava ciúmes, ciúmes terríveis.

        O Bentinho, do Machado de Assis, aquele que desconfiava da Capitu, não sofreu tanto.

        Lá pelas tantas eu tinha ciúmes até do seu MP4.

        Agora: o que poderia eu fazer? Humanos têm como demonstrar seus ciúmes, têm como descarregar a frustração. Mas eu sou um rádio, um bom rádio, mas rádio, de qualquer maneira. A mim não estava facultado fazer cenas. Recorri, então, àquilo que estava a meu alcance: o som.

        Quando você estava com alguém de quem eu não gostava, eu aumentava meu volume – e volume, você sabe, é coisa que não me falta – até chegar a níveis insuportáveis, uma avalanche de decibéis. E aí, subitamente me calava. Para lembrar a você que o silêncio também fala, especialmente o silêncio dos traídos. Ah, sim, e queimei o seu MP4. Tinha de queimar: era ele ou eu.

        Você foi se queixar com um técnico, achando que eu estava desconfigurado. Num certo sentido você está certa: estou desconfigurado, estou desfigurado, estou perturbado – mas tudo isso por causa do sofrimento que você me causou.

        Querida dona, estas são minhas derradeiras palavras, antes de sair definitivamente do ar, antes do silêncio final. Minha última mensagem é esta: nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis.

SCLIAR, Moacyr. O rádio apaixonado. In: SCLIAR, Moacyr. Histórias que os jornais não contam. 3. ed. Porto Alegre: L&M Editores, 2018.p.14-16. (Adaptado).

Entendendo a crônica:

01 – Qual é a premissa inusitada que o narrador da crônica apresenta?

      A premissa inusitada é que o narrador é um rádio de carro que possui sentimentos e emoções, contrariando a percepção de sua dona de que ele é apenas um objeto inanimado.

02 – Como o rádio descreve o momento em que se tornou "vivo e apaixonado" por sua dona?

      O rádio descreve o momento como um "choque" elétrico, ocorrido quando a dona o instalou no carro e o acariciou e tocou seus botões, fazendo-o sentir-se vivo e despertar sua paixão.

03 – Quais são os principais motivos de ciúme do rádio em relação à sua dona?

      Os principais motivos de ciúme do rádio são a presença de amigas e, principalmente, de outros homens no carro da dona, além de ter ciúme até do MP4 dela.

04 – De que forma o rádio expressa sua frustração e ciúmes, já que não pode fazer cenas como os humanos?

      O rádio recorre ao som para expressar sua frustração e ciúmes. Ele aumentava o volume a níveis insuportáveis quando a dona estava com alguém de quem não gostava e, em seguida, calava-se subitamente para lembrá-la que "o silêncio também fala". Ele também queimou o MP4.

05 – Qual é a analogia que o rádio faz com um personagem da literatura brasileira?

      O rádio se compara a Bentinho, de Machado de Assis, aquele que desconfiava de Capitu, para ilustrar a intensidade de seu sofrimento com o ciúme.

06 – Qual a condição atual do rádio e qual sua última mensagem para a dona?

      O rádio está "desconfigurado, desfigurado, perturbado" pelo sofrimento e está prestes a "sair definitivamente do ar". Sua última mensagem é um alerta: "nunca brinque com os sentimentos de um rádio apaixonado. Você vai ter, no mínimo, surpresas desagradáveis."

07 – Qual o tom geral da crônica, considerando a personificação do rádio e suas "queixas" para a dona?

      O tom geral da crônica é bem-humorado e irônico, apesar de o rádio expressar sentimentos de sofrimento e ciúme. A personificação de um objeto inanimado com emoções humanas cria uma situação cômica e reflexiva sobre as relações e a negligência afetiva.

 

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