quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CRÔNICA: PARA MARIA DA GRAÇA - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

 Crônica: Para Maria da Graça

              Paulo Mendes Campos

        Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no País das Maravilhas.

        Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgYGgECNacZ9r1Wpbp127zluI7lBDNcDnibFyNnERd-XWVGICeuTGCCEXUl2rO29GjCKUCdmZF2WdOWhD6FBLqRfexPVhyoy1986-h_tCcuVibRCXDPKPJDA1_Irrf3Q_Yo8lSjKn8Am2w7HMd1KqK46JWumDUXvtueutgyLQ1Ag_V3g8V0xUWBLFMc0Aw/s1600/CRONICA.jpg


        Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.

        A realidade, Maria, é louca.

        Nem o papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade, Dinah, já comeste um morcego?".

        Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mundo?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.

        A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de estar aqui sozinha!". O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.

        Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem bolo.

        Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.

        A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!". Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o ponto de vista do rato. Foi o que o rato perguntou a Alice: "Gostaria de gatos se fosses eu?".

        Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! Mas quem ganhou?". É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupes a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde quiseres, ganhaste.

        Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!". Ouvirás isso milhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de contar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.

        Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de novo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.

        E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceronte. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e de rinocerontes que parecem camundongos.

        O jeito é rir no caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.

        Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grandes ocasiões.

        Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: "Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".

        Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida. É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.

Extraído de: Para gostar de ler (volume 4 – crônicas) Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, São Paulo, Ática/Edição Didática.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 288-289.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o presente que o narrador oferece a Maria da Graça, e o que ele simboliza?

      O narrador presenteia Maria da Graça com o livro "Alice no País das Maravilhas". Este livro não é apenas uma história, mas um símbolo e um guia para que Maria da Graça aprenda a "ler este livro como um simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas". Ele representa uma chave para compreender a realidade complexa, por vezes absurda, e para encontrar significado naquilo que parece sem sentido.

02 – Segundo o narrador, qual é a principal lição que Maria da Graça deve aprender sobre a "loucura" da realidade?

      A principal lição que Maria da Graça deve aprender é que "a realidade, Maria, é louca" e que é essencial descobrir um sentido nessa loucura para não acabar louca. O narrador enfatiza que, ao invés de se espantar com o mundo irreconhecível, ela deve aprender a decifrar a "charada" da existência e a inventar suas próprias respostas, mesmo que "seja mentira", para se fortalecer.

03 – Como a crônica aborda a questão da identidade e do autoconhecimento?

      A crônica aborda a questão da identidade através da indagação "Quem sou eu no mundo?", que o narrador descreve como o "lugar-comum de cada história de gente". Ele sugere que, quanto mais vezes Maria da Graça decifrar essa charada, mais forte ela se tornará. A crônica enfatiza que a resposta não é tão importante quanto o ato de dar ou inventar uma resposta, indicando que o autoconhecimento é um processo contínuo de construção pessoal.

04 – O que o narrador sugere sobre a "sabedoria de bolso" e como ela se relaciona com as interações sociais?

        A "sabedoria de bolso" é descrita como uma sabedoria prática e menos "grave", focada na convivência social. O narrador sugere a importância de pedir desculpas frequentemente ("Oh, I beg your pardon!") e de exercitar a empatia, tentando ver o mundo do ponto de vista do outro, como exemplificado pela pergunta do rato a Alice: "Gostaria de gatos se fosses eu?". Essa sabedoria visa à leveza e à compreensão nas relações humanas.

05 – Qual é a crítica do narrador em relação às "corridas" e competições na vida adulta?

      O narrador critica as competições incessantes e muitas vezes fúteis da vida adulta, sejam elas no trabalho, na política, nas artes ou mesmo nas relações pessoais. Ele as descreve como "confusas, cheias de truques, desnecessárias, fingindo que não é, ridículas". A crítica central é que muitas vezes as pessoas competem sem um propósito claro, e o mais importante não é ser o primeiro a chegar, mas sim chegar "aonde quiseres", independentemente da posição em relação aos outros.

06 – Como o conceito de "milagres" é redefinido pelo narrador na crônica?

      O narrador redefine o conceito de "milagres", afirmando que eles sempre acontecem na vida, mas "não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar". Ele sugere que os verdadeiros e mais profundos milagres são processos lentos e graduais. Essa visão contrasta com a expectativa comum de eventos súbitos e espetaculares, incentivando Maria da Graça a reconhecer as transformações lentas e importantes em sua vida.

07 – O que significa a metáfora das "três caixas para guardar humor" e qual a importância da "caixinha preciosa"?

      A metáfora das "três caixas para guardar humor" representa a necessidade de gerenciar o humor em diferentes situações da vida. A caixa grande é para o humor cotidiano; a média, para o humor pessoal, que permite rir de si mesma e perdoar-se. A "caixinha preciosa" é a mais importante e escondida, reservada para as "grandes ocasiões", ou seja, os momentos de dor ou vaidade extrema, em que se sente o fracasso ou o triunfo. Ela é crucial para manter o equilíbrio e o bom humor nessas situações de vulnerabilidade, evitando a autodestruição ou o excesso de presunção.

 

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