Crônica: O pintinho
Carlos Drummond de Andrade
Foi talvez de um filme de Walt Disney
que nasceu a moda de enfeitar com pintinhos vivos as mesas de aniversário
infantil. Era uma excelente ideia, no mundo ideal do desenho animado; conduzida
para o mundo concreto dos apartamentos, também alcançou êxito absoluto. Muitos
garotos e garotas jamais tinham visto um pinto de verdade, e queriam comê-lo,
assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso.
Houve que contê-los e ensinar-lhes noções urgentes de biologia. As senhoras e
moças deliciaram-se com a surpresa e gula dos meninos, e foram unânimes em
achar os pintos uns amorecos. Mas estes, encurralados num centro de mesa, entre
flores que não lhes diziam nada ao paladar, e atarantados por aquele rumor
festivo e suspeito, deviam sentir-se absolutamente desgraçados.
Como a celebração do aniversário
terminasse, e ninguém sabia o que fazer com os pintos, pareceu à dona da casa
que seria gentil e cômodo oferecer um a cada criança, transferindo assim às
mães o problema do destino a dar-lhes. O único inconveniente da solução era que
havia mais guris do que pintos, e não foi simples convencer aos não
contemplados que aquilo era brincadeira para guris ainda bobinhos, e que
mocinhas e rapazinhos de nível mental superior não se preocupam com essas
frioleiras.
Os pintos, em consequência,
espalharam-se pela cidade, cada qual com seu infortúnio e seu proprietário
exultante. O interesse das primeiras horas continuava a revestir-se de feição
ameaçadora para a integridade física dos recém-nascidos (se é que pinto
produzido em incubadora realmente nasce). Um deles foi parar num apartamento
refrigerado, e posto a um canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada
de flanela. Semeou-se em redor o farelinho malcheiroso que o gerente do armazém
recomendara como alimento insubstituível para pintos tenros, e que (o pai leu
na enciclopédia) devia ser, teoricamente, farinha de baleia. A ideia da baleia
alimentando o pinto encheu o garotinho de assombro, e pela primeira vez o mundo
lhe apareceu como um sistema.
O pinto sentia um frio horroroso, mas
desprezava a flanela, e a todo instante se descobria, tentando fugir. Procurava
algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da criadeira. À falta
de experiência, dirigiu seus passinhos na direção das saias que circulavam pela
copa. As saias nada podiam fazer por ele, senão recolocá-lo em seu ninho, mas o
pinto procurava sempre, e piava.
O garoto queria carregá-lo, inventava
comidas que talvez interessassem àquele paladar em formação. Não, senhor —
explicou-lhe a mãe:
— Não se pode pegar, não se pode
brincar, não se pode dar nada, a não ser farelo e água.
— Nem carinho?
— Meu amor, carinho de gente é perigoso
para bicho pequeno.
Mas o pinto, mesmo sem saber, estava
querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e plantas comestíveis, o raio
de sol batendo na poça d’água caída do céu, e companhia à sua altura e feição,
e, numa casa assim tão bonita e confortável, esses bens não existiam. E piava.
A situação começou a preocupar a dona
da casa, que telefonou à amiga doadora do pinto: que fazer com ele?
— Querida, procure criá-lo com
paciência, e no fim de três meses bote na panela, antes que vire galo. É o
jeito.
Não virou galo, nem caiu na panela. No
fim de três dias, piando sempre e sentindo frio, o pinto morreu. Foi sua
primeira e única manifestação de vida, propriamente dita.
O menino queria guardá-lo consigo,
supondo que, inanimado, o pinto se transformara em brinquedo, manuseável. Foi
chamado para dentro, e quando voltou o corpinho havia desaparecido na lixeira.
Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
Entendendo a crônica:
01 – Muitos dos meninos
convidados para a festa de aniversário retratada pelo narrador nunca tinham
visto um pintinho de verdade.
a)
Segundo o narrador, qual era o desejo desses
meninos em relação aos pintinhos?
Eles queriam comê-los, assim como estava, imaginando ser uma espécie
de doce mecânico, mais saboroso.
b)
A pessoa responsável pela festa teve como
preocupação principal o sucesso da festa, mas não planejou o destino que seria
dado aos pintinhos. Como ela resolveu esse problema ao final da festa.
Distribui no final da festa para alguns convidados, porque não tinha
para todos.
02 – A crônica conta uma
história que poderia acontecer no dia-a-dia, uma moda que, no desenrolar da
história, se tornaria um grande problema. Assinale a opção que apresenta o
tema/assunto destacado nessa crônica.
a)
A alegria das crianças que puderam
compartilhar a vida urbana com a vida rural.
b)
O problema da sociedade quando um objeto (ou
animal, neste caso) é usado por causa de uma simples moda e depois esquecido
pelo próprio consumidor.
c)
O final trágico do pintinho, mas a
satisfação da criança por ter convivido com esse animal em sua casa.
03 – Que crítica podemos
perceber nessa crônica?
Ela critica um
problema da sociedade, quando um objeto (ou animal, neste caso) é usado por
causa de uma simples moda e depois esquecido pelo próprio consumidor.
04 – O narrador refere-se
inicialmente a uma nova decoração das mesas em festa de aniversário infantil.
a)
Na festa que ele relata, o aniversariante é
destacado como figura principal?
Não.
b)
Qual é o destaque da festa?
O pintinho.
05 – A pessoa responsável
pela festa teve como preocupação principal o sucesso da festa.
a)
Ela planejou o destino que seria dado aos pintinhos?
Não.
b)
Como ela resolveu esse problema?
Não tinha o que fazer com os pintinhos e a dona da festa resolveu
dar para os convidados.
06 – A partir do terceiro
parágrafo do texto o narrador conta o que aconteceu com os pintinhos depois da
festa.
a)
Como foi a adaptação desse pintinho ao novo
ambiente?
Muito difícil, o apartamento era refrigerado, e o colocaram num
canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada de flanela.
b)
Na sua opinião os outros pintinhos passaram
por uma situação muito diferente da vivida por esse pintinho?
Resposta pessoal do aluno.
07 – O narrador imagina que
o pintinho, mesmo sem saber, procurava algo no apartamento em que estava.
a)
O que o pintinho procurava?
Procurava algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da
criadeira.
b)
Na verdade, a ave sentia falta de quê?
Ele estava querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e
plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça d’água caída do céu, e
companhia à sua altura e feição.
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