terça-feira, 9 de junho de 2020

CRÔNICA: NASCER NO CAIRO, SER FÊMEA DE CUPIM - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

Crônica: Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim

              Rubem Braga

   Conhece o vocábulo escardinchar? Qual o feminino de cupim? Qual o antônimo de póstumo? Como se chama o natural do Cairo?

    O leitor que responder “não sei” a todas estas perguntas não passará provavelmente em nenhuma prova de Português de nenhum concurso oficial. Aliás, se isso pode servir de algum consolo à sua ignorância, receberá um abraço de felicitações deste modesto cronista, seu semelhante e seu irmão.

        Porque a verdade é que eu também não sei. Você dirá, meu caro professor de Português, que eu não deveria confessar isso; que é uma vergonha para mim, que vivo de escrever, não conhecer o meu instrumento de trabalho, que é a língua.

        Concordo. Confesso que escrevo de palpite, como outras pessoas tocam piano de ouvido. De vez em quando um leitor culto se irrita comigo e me manda um recorte de crônica anotado, apontando erros de Português. Um deles chegou a me passar um telegrama, felicitando-me porque não encontrara, na minha crônica daquele dia, um só erro de Português; acrescentava que eu produzira uma “página de bom vernáculo, exemplar”. Tive vontade de responder: “Mera coincidência” — mas não o fiz para não entristecer o homem.

        Espero que uma velhice tranquila – no hospital ou na cadeia, com seus longos ócios — me permita um dia estudar com toda calma a nossa língua, e me penitenciar dos abusos que tenho praticado contra a sua pulcritude. (Sabem qual o superlativo de pulcro? Isto eu sei por acaso: pulquérrimo! Mas não é desanimador saber uma coisa dessas? Que me aconteceria se eu dissesse a uma bela dama: a senhora é pulquérrima? Eu poderia me queixar se o seu marido me descesse a mão?).

        Alguém já me escreveu também — que eu sou um escoteiro ao contrário. “Cada dia você parece que tem de praticar a sua má ação — contra a língua”. Mas acho que isso é exagero.

        Como também é exagero saber o que quer dizer escardinchar. Já estou mais perto dos cinquenta que dos quarenta; vivo de meu trabalho quase sempre honrado, gozo de boa saúde e estou até gordo demais, pensando em meter um regime no organismo — e nunca soube o que fosse escardinchar. Espero que nunca, na minha vida, tenha escardinchado ninguém; se o fiz, mereço desculpas, pois nunca tive essa intenção.

        Vários problemas e algumas mulheres já me tiraram o sono, mas não o feminino de cupim. Morrerei sem saber isso. E o pior é que não quero saber; nego-me terminantemente a saber, e, se o senhor é um desses cavalheiros que sabem qual é o feminino de cupim, tenha a bondade de não me cumprimentar.

        Por que exigir essas coisas dos candidatos aos nossos cargos públicos? Por que fazer do estudo da língua portuguesa unia série de alçapões e adivinhas, como essas histórias que uma pessoa conta para “pegar” as outras? O habitante do Cairo pode ser cairense, cairei, caireta, cairota ou cairiri — e a única utilidade de saber qual a palavra certa será para decifrar um problema de palavras cruzadas. Vocês não acham que nossos funcionários públicos já gastam uma parte excessiva do expediente matando palavras cruzadas da “Última Hora” ou lendo o horóscopo e as histórias em quadrinhos de “O Globo?”.

        No fundo o que esse tipo de gramático deseja é tornar a língua portuguesa odiosa; não alguma coisa através da qual as pessoas se entendam, ruas um instrumento de suplício e de opressão que ele, gramático, aplica sobre nós, os ignaros.

        Mas a mim é que não me escardincham assim, sem mais nem menos: não sou fêmea de cupim nem antônimo do póstumo nenhum; e sou cachoeirense, de Cachoeiro, honradamente — de Cachoeiro de Itapemirim!

                                Rio, novembro, 1951. Texto extraído do livro “Ai de Ti, Copacabana”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 197.

Entendendo a crônica:

01 – Na crônica, o cronista defende uma ideia. Que ideia é essa?

      Que há certos conhecimentos da língua que não tem serventia e só servem para tornar a língua odiosa.

02 – Um traço característico da crônica lida é:

a)   Temática atual.

b)   Prosa poética.

c)   Estrofação regular.

d)   Método dialético.

e)   Exposição imparcial.


03 – O título do texto – “Nascer no Cairo, ser fêmea de cupim” – justifica-se pelo fato de:

a)   Pôr em relevo um conhecimento vital ao domínio da língua portuguesa no Brasil.

b)   Apontar fenômenos linguísticos aos quais o autor arroga grande importância.

c)   Destacar um conteúdo necessário a plena interação entre os falantes do português.

d)   Fazer referência a conhecimentos linguísticos que motivam as reflexões do autor.

e)   Exemplificar o uso que o autor faz do idioma em suas interações cotidianas.


04 – Há um momento do texto em que o autor dialoga com um leitor específico. Em que parágrafo isso ocorre?

a)   Primeiro.

b)   Terceiro.

c)   Quarto.

d)   Quinto.

e)   Oitavo.


05 – Segundo o autor, o que, provavelmente, acontecerá com o leitor que não souber responder às perguntas feitas no primeiro parágrafo?

a)   Atrairá a simpatia de outros leitores que também não sabem as respostas.

b)   Receberá felicitações dos professores de português.

c)   Perceberá a efemeridade de uma página do bom vernáculo.

d)   Gastará muito tempo decifrando palavras.

e)   Não passará em nenhuma prova de concurso.


06 – Que ideia o cronista defende?

a)   É essencial o conhecimento enciclopédico da língua.

b)   O gramático torna acessível a língua portuguesa.

c)   A profissão de cronista exige conhecimento linguístico.

d)   Há certos conhecimentos da língua que não têm serventia.

e)   A língua portuguesa se alimenta da opressão dos gramáticos.


07 – O que o autor confessa no quarto parágrafo?

      Confessa não conhecer a gramática normativa que é um “conjunto de regras que devem ser seguidas” e que provoca, segundo ele, críticas de leitores cultos através de telegramas, muitos até mandam recortes da crônica escrita por ele, apontando erros de português.

08 – O autor faz algumas críticas. Cite-as.

      Faz crítica a respeito dos funcionários públicos, e o pior é que generaliza, ou seja, inclui professores e outros trabalhadores que cumprem seu papel frente à sociedade.

      Critica também os gramáticos por tornarem a Língua Portuguesa odiosa.

 

 

 


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