quarta-feira, 24 de junho de 2020

CRÔNICA: VOU-ME EMBORA DESTA CASA! MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

Crônica: Vou-me embora desta casa!

              Moacyr Scliar

        Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?

        (Existe: é ser pai e brigar com o filho de quatro anos. Mas isto a criança só descobre depois de muitos anos.

        Para um garoto de quatro anos, brigar com o pai, ou com a mãe, significa romper com o mundo. Uma ruptura aliás frequente, porque há poucas coisas que um guri goste mais de fazer do que brigar. Ele briga porque quer comer e porque não quer comer; porque quer se vestir ou porque não quer se vestir; e porque não quer tomar banho, não quer dormir, não quer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão. E porque quer uma lancha com pilhas, e uma bicicleta, e uma nave espacial – de verdade. Todas estas coisas geram bate-boca, ao final do qual o garoto diz, ultrajado:

        -- Ah, é? Pois então...

        Pois então o quê? Um país pode ameaçar outro com mísseis, ou com marines, ou com bloqueio; um adulto diz que vai quebrar a cara do inimigo; mas, um garoto, pode ameaçar com quê? Com o único trunfo que eles têm:

        -- Eu vou-me embora desta casa!

        Ao que, invariavelmente, os pais respondem: vai, vai de uma vez. Ué, mas não seria o caso deles suplicarem, não meu filho, não vai, não abandona teus velhos pais? Meio incrédulo, o guri repete:

        -- Olha que eu vou, hein?

        Vai, é a dura resposta. E aí o menino não tem outro jeito: para salvar sua honra (e como têm honra, os garotos de quatro anos!) ele tem de partir. Começa arrumando a mala: numa sacola de plástico, ele coloca os objetos mais necessários: um revólver de plástico, os homenzinhos do Playmobil (aos quatros anos, o Kit de sobrevivência e notavelmente restrito).

        Enquanto isto, os pais estão jantando, ou vendo TV, aparentemente indiferentes ao grande passo que vai ser dado. O que só reforça a disposição do filho pródigo em potencial: esses aí não me merecem, eu vou-me embora mesmo.

        Mas, para onde? para onde, José? Manuel Bandeira podia ir para Pasárgada, onde era amigo do rei; aos quatro anos, contudo, a relação com a realeza é muito remota. O guri abre a porta da rua (essas coisas são mais dramáticas em casa do que em apartamentos); olha para fora; está escuro, está frio, chove. Ele hesita; está agora em território de ninguém, tão diminuto quanto o é a sua independência. Ir ou não ir? Nem Hamlet viveu dilema tão cruel. Lá de dentro vem um grito:

        -- Fecha essa porta que está frio!

        Esta é a linha dura (pai ou mãe). Mas sempre há um mediador – pai ou mãe – que negocia um recuo honroso:

        -- Está bem, vem para dentro. Vamos esquecer tudo!

        O garoto resiste, com toda a bravura que ainda lhe resta. Por fim, ele volta, mas sob condições: quando o pai for ao Centro, ele trará um trem elétrico, desde que não seja muito caro, naturalmente. A paz enfim alcançada, o garoto volta para dentro. Até a próxima briga. Quando, então:

        -- Eu vou-me embora desta casa!

Moacyr Scliar.

Entendendo a crônica:

01 – “Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?...”. Neste trecho, encontramos o adjetivo grifado flexionado no grau:

a)   Comparativo de superioridade.

b)   Comparativo de inferioridade.

c)   Comparativo de igualdade.

d)   Superlativo relativo de superioridade.

e)   Superlativo relativo de inferioridade.

02 – Identifique a única causa NÃO enumerada, no terceira parágrafo, que leva um garoto de quatro anos a brigar com o pai ou a mãe:

a)   Não querer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão.

b)   Não querer dormir.

c)   Querer tomar banho toda hora.

d)   Querer comer.

e)   Querer uma nave espacial de verdade.

03 – Identifique a fala que não representa uma ameaça, mas sim uma ordem:

a)   “— Ah é? Pois então...”

b)   “— Eu vou-me embora desta casa!”

c)   “— Olha que eu vou, hein?”

d)   “— Já estou quase indo!”

e)   “— Fecha essa porta que está frio!”

04 – Que tema é abordado na crônica?

      Os conflitos existentes dentro do âmbito familiar, mas especificamente na relação entre pais e filho, quando este ainda é criança.

05 – Numere os fatos na ordem dos acontecimentos, em seguida, marque a sequência correta.

(5) Um dos pais interrompe a partida, sugerindo a reconciliação entre o filho e eles.

(2) Os pais demonstram-se insensíveis à ameaça feita pelo filho, inclusive “apoiando-o” em sua decisão de partir.

(1) O garoto de quatro anos briga com os pais e ofendido ameaça ir embora de casa.

(3) Ferido em seus brios, o menino arruma sua restrita mala para, finalmente, concretizar sua ameaça.

(4) No momento de sair de casa, o filho pródigo sente-se indeciso se enfrenta ou não as dificuldades da rua.

a)   4 – 1 – 2 – 3 – 5.

b)   5 – 2 – 1 – 3 – 4.

c)   3 – 1 – 5 – 2 – 4.

d)   2 – 1 – 5 – 3 – 4.

e)   1 – 3 – 4 – 2 – 5.

 


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