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quarta-feira, 24 de junho de 2020

CRÔNICA: O PINTINHO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Crônica: O pintinho

               Carlos Drummond de Andrade

     Foi talvez de um filme de Walt Disney que nasceu a moda de enfeitar com pintinhos vivos as mesas de aniversário infantil. Era uma excelente ideia, no mundo ideal do desenho animado; conduzida para o mundo concreto dos apartamentos, também alcançou êxito absoluto. Muitos garotos e garotas jamais tinham visto um pinto de verdade, e queriam comê-lo, assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso. Houve que contê-los e ensinar-lhes noções urgentes de biologia. As senhoras e moças deliciaram-se com a surpresa e gula dos meninos, e foram unânimes em achar os pintos uns amorecos. Mas estes, encurralados num centro de mesa, entre flores que não lhes diziam nada ao paladar, e atarantados por aquele rumor festivo e suspeito, deviam sentir-se absolutamente desgraçados.

        Como a celebração do aniversário terminasse, e ninguém sabia o que fazer com os pintos, pareceu à dona da casa que seria gentil e cômodo oferecer um a cada criança, transferindo assim às mães o problema do destino a dar-lhes. O único inconveniente da solução era que havia mais guris do que pintos, e não foi simples convencer aos não contemplados que aquilo era brincadeira para guris ainda bobinhos, e que mocinhas e rapazinhos de nível mental superior não se preocupam com essas frioleiras.

        Os pintos, em consequência, espalharam-se pela cidade, cada qual com seu infortúnio e seu proprietário exultante. O interesse das primeiras horas continuava a revestir-se de feição ameaçadora para a integridade física dos recém-nascidos (se é que pinto produzido em incubadora realmente nasce). Um deles foi parar num apartamento refrigerado, e posto a um canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada de flanela. Semeou-se em redor o farelinho malcheiroso que o gerente do armazém recomendara como alimento insubstituível para pintos tenros, e que (o pai leu na enciclopédia) devia ser, teoricamente, farinha de baleia. A ideia da baleia alimentando o pinto encheu o garotinho de assombro, e pela primeira vez o mundo lhe apareceu como um sistema.

        O pinto sentia um frio horroroso, mas desprezava a flanela, e a todo instante se descobria, tentando fugir. Procurava algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da criadeira. À falta de experiência, dirigiu seus passinhos na direção das saias que circulavam pela copa. As saias nada podiam fazer por ele, senão recolocá-lo em seu ninho, mas o pinto procurava sempre, e piava.

        O garoto queria carregá-lo, inventava comidas que talvez interessassem àquele paladar em formação. Não, senhor — explicou-lhe a mãe:

        — Não se pode pegar, não se pode brincar, não se pode dar nada, a não ser farelo e água.

        — Nem carinho?

        — Meu amor, carinho de gente é perigoso para bicho pequeno.

        Mas o pinto, mesmo sem saber, estava querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça d’água caída do céu, e companhia à sua altura e feição, e, numa casa assim tão bonita e confortável, esses bens não existiam. E piava.

        A situação começou a preocupar a dona da casa, que telefonou à amiga doadora do pinto: que fazer com ele?

        — Querida, procure criá-lo com paciência, e no fim de três meses bote na panela, antes que vire galo. É o jeito.

        Não virou galo, nem caiu na panela. No fim de três dias, piando sempre e sentindo frio, o pinto morreu. Foi sua primeira e única manifestação de vida, propriamente dita.

        O menino queria guardá-lo consigo, supondo que, inanimado, o pinto se transformara em brinquedo, manuseável. Foi chamado para dentro, e quando voltou o corpinho havia desaparecido na lixeira.

                                                   Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Entendendo a crônica:

01 – Muitos dos meninos convidados para a festa de aniversário retratada pelo narrador nunca tinham visto um pintinho de verdade.

a)   Segundo o narrador, qual era o desejo desses meninos em relação aos pintinhos?

Eles queriam comê-los, assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso.

b)   A pessoa responsável pela festa teve como preocupação principal o sucesso da festa, mas não planejou o destino que seria dado aos pintinhos. Como ela resolveu esse problema ao final da festa.

Distribui no final da festa para alguns convidados, porque não tinha para todos.

02 – A crônica conta uma história que poderia acontecer no dia-a-dia, uma moda que, no desenrolar da história, se tornaria um grande problema. Assinale a opção que apresenta o tema/assunto destacado nessa crônica.

a)   A alegria das crianças que puderam compartilhar a vida urbana com a vida rural.

b)   O problema da sociedade quando um objeto (ou animal, neste caso) é usado por causa de uma simples moda e depois esquecido pelo próprio consumidor.

c)   O final trágico do pintinho, mas a satisfação da criança por ter convivido com esse animal em sua casa.

03 – Que crítica podemos perceber nessa crônica?

      Ela critica um problema da sociedade, quando um objeto (ou animal, neste caso) é usado por causa de uma simples moda e depois esquecido pelo próprio consumidor.

04 – O narrador refere-se inicialmente a uma nova decoração das mesas em festa de aniversário infantil.

a)   Na festa que ele relata, o aniversariante é destacado como figura principal?

Não.

b)   Qual é o destaque da festa?

O pintinho.

05 – A pessoa responsável pela festa teve como preocupação principal o sucesso da festa.

a)   Ela planejou o destino que seria dado aos pintinhos?

Não.

b)   Como ela resolveu esse problema?

Não tinha o que fazer com os pintinhos e a dona da festa resolveu dar para os convidados.

06 – A partir do terceiro parágrafo do texto o narrador conta o que aconteceu com os pintinhos depois da festa.

a)   Como foi a adaptação desse pintinho ao novo ambiente?

Muito difícil, o apartamento era refrigerado, e o colocaram num canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada de flanela.

b)   Na sua opinião os outros pintinhos passaram por uma situação muito diferente da vivida por esse pintinho?

Resposta pessoal do aluno.

07 – O narrador imagina que o pintinho, mesmo sem saber, procurava algo no apartamento em que estava.

a)   O que o pintinho procurava?

Procurava algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da criadeira.

b)   Na verdade, a ave sentia falta de quê?

Ele estava querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça d’água caída do céu, e companhia à sua altura e feição.


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