Conto: Uma vida ao lado
Marina Colasanti
Fina, a parede. E, além dela, a vida do
vizinho.
Irritante a princípio. Ruídos, pancadas, tosse, tudo interferindo,
infiltrando-se. Depois, aos poucos, familiar.

Sabia-lhe o banho, as refeições, as
horas de repouso. A cada gesto, um som. E no som, recriado, o via mover-se em
geometrias idênticas às suas. A sala, o quarto, o corredor.
Cada vez mais ligava-se ao vizinho,
absorvendo seus hábitos. Ouvia bater de louças e se apressava à cozinha, vinham
vozes moduladas e ligava a televisão. À noite só conseguia dormir depois do
baque dos sapatos do outro, o ranger da cama assinalando que se metera entre
lençóis.
Perdia-o, porém, quando saía porta
afora. Passos, tinir de chaves, lá se ia o vizinho. Sem ele, vazios a sala e o
quarto, a parede emudecia, separando silêncios.
Voltava ao fim do dia, pontual. Passos,
tinir de chaves. Ele então acendia a luz ao estalar do interruptor do outro, e
juntos punham a casa em andamento.
Tentava, às vezes, seguir-lhe as
andanças. Espiava pelo olho mágico estudando a paciência com que esperava o
elevador, postava-se à janela para ver que direção tomava, em que ônibus subia.
E, justamente numa tarde em que
espreitava, viu o outro atravessar em má hora a rua movimentada, hesitar,
correr e ser atropelado por um furgão.
Percebeu que precisava trabalhar
rápido. Sem hesitar, arrancou as portas dos armários, as cortinas, pegou a
caixa de ferramentas, e começou a serrar, lixar, bater, colar.
Tudo estava pronto quando ouviu o
caixão do outro chegar para o velório. Sobre a mesa da sala, na exata posição
em que o do vizinho deveria estar, colocou seu próprio caixão. Depois abriu a
porta de par em par e, vestido no terno azul-marinho, deitou-se cruzando as
mãos sobre o peito.
Ainda teve tempo de pensar que tinha
esquecido de engraxar os sapatos. E já os primeiros visitantes começavam a
chegar, entrando com a mesma tristeza nos dois apartamentos, para prantear
defuntos tão iguais.
Marina Colasanti. Contos de amor rasgado. Rio de Janeiro: Rocco. © by
Marina Colasanti.
Fonte: Português –
Novas Palavras – Ensino Médio – Emília Amaral; Mauro Ferreira; Ricardo Leite;
Severino Antônio – Vol. Único – FTD – São Paulo – 2ª edição. 2003. p. 557-558.
Entendendo o conto:
01
– Qual a relação do narrador com o vizinho?
A relação é de
uma profunda observação e imitação. O narrador absorve os hábitos do vizinho,
sincronizando suas ações com as dele.
02
– Como o narrador se sente quando o vizinho sai de casa?
O narrador sente
um vazio e um silêncio incômodo, como se uma parte de sua própria vida
estivesse ausente.
03
– O que o narrador faz para tentar acompanhar a vida do vizinho fora de casa?
O narrador espia
o vizinho pelo olho mágico, observa-o pela janela e tenta descobrir para onde
ele vai.
04
– Qual o evento trágico que ocorre com o vizinho?
O vizinho é
atropelado por um furgão ao atravessar uma rua movimentada.
05
– Qual a ação surpreendente que o narrador toma após a morte do vizinho?
O narrador constrói seu
próprio caixão e se deita nele, imitando a cena do velório do vizinho.
06
– Por que o narrador decide fazer o que faz?
A decisão do
narrador demonstra uma obsessão em replicar a vida do vizinho, até mesmo na
morte, demonstrando uma perda da própria identidade.
07
– Qual o detalhe que o narrador percebe no final da história?
O narrador
percebe que esqueceu de engraxar os sapatos, demonstrando uma preocupação com
os detalhes, mesmo em um momento extremo.
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