História (conto): Tereza Bicuda – Fragmento
Maria José Silveira
A história de Tereza Bicuda eu mesma
não presenciei nem conheço ninguém que tenha presenciado, pois Tereza viveu
muito tempo atrás, num tempo bem antigo. O que eu sei é de ouvir contar, mas o
João Fonseca dali da venda, sabe quem é? O filho de Safira? Pois ele, sim, já
viu com os próprios olhos a ventania assombrada de Tereza Bicuda com seus
marimbondos e abelhas jangadas por conta disso passou três dias de cama.
Mas isso foi pouco tempo atrás, ela já
morta.
Ela viva, ninguém daqui conheceu.
Do tempo em que ela vivia, o que todo
mundo sabe é que Tereza Bicuda era uma mulher muito ruim, um poço de maldades,
pode-se dizer. Fazia maldades com o pai, com a mãe, com o marido, que a
escorraçou de casa.
Fazia maldades até com as amigas. [...]
Agora, tinha uma coisa que Tereza
amava, pois todo mundo tem. Por pior que seja uma criatura, ela sempre tem um
ponto fraco, alguma coisa talvez um pouco perdida, mas que está lá no fundo,
escondida em algum canto. Alguma coisa que a faz parecer, por alguns momentos,
uma pessoa comum, alguém capaz de algum tipo de emoção boa.
E essa coisa, para Tereza, era a serra.
Ela adorava subir a serra e ficar por
lá. Às vezes ficava dias lá em cima, sabe Deus onde!, e voltava carregada de
cajus e mangabas e essa era a única coisa boa que Tereza fazia na vida: dava as
frutas, cada uma mais bonita que a outra, maduras, sumarentas, polpudas,
docíssimas, para quem encontrasse no seu caminho aquele dia.
Quem ganhava essas frutas de Tereza
dizia que jamais tinha comido nada igual.
E assim a vida foi passando, no passo
que a vida tem, até que chegou o dia de Tereza morrer e ela morreu, como todo
mundo um dia acaba morrendo, não importa o mal nem o bem que tenha feito na
vida. Morreu cheia de pecados, mas morreu. E foi enterrada do lado de fora da
igreja.
Tereza era rica, todo mundo sabia, mas
como era também muito má e pecadora, e fazia questão de não pôr os pés na
igreja, em nenhuma das três igrejas da cidade, nunca pôs os pés em nenhuma
delas, o padre nem precisou pensar duas vezes para decidir que ela não merecia
ser enterrada dentro de um lugar onde sequer entrava em vida.
Mandou enterrá-la do lado de fora, num
local bem afastado, um local onde só se enterravam os criminosos reconhecidos,
mortos sem extrema-unção.
Ninguém se lembrou, e mesmo se tivesse
lembrado, não teria falado porque ninguém gostava dela e não ia de jeito nenhum
se dar ao trabalho de pensar em atender seu último pedido, ia?
Só que teria sido melhor se tivessem se
dado ao trabalho, porque foi então que o furdunço começou.
Começou num dia que o coveiro estava
cavando uma cova perto de onde Tereza Bicuda foi enterrada. Ele estava cavando
lá, tranquilo, como sempre tinha sido seu jeito de cavar, quando ouviu uma voz
meio tremida, meio irritada, meio pedinte, e totalmente macabra, totalmente
horrorosa:
-- Mané Coveiroooooo, meee tiree
daquiii!
Ele, que era coveiro desde menino,
desde pequenino trabalhando ao lado do pai também coveiro, estava acostumado
demais com tudo aquilo, e não tinha medo de nada, nada mesmo – aliás, minto!
Mané Coveiro tinha um medo danado de uma coisa, mas era de uma coisa só, e não
tinha nada a ver com defunto nem alma penada, mas isso já é outro caso que, se
vocês quiserem, conto depois.
Naquele dia, no entanto, Mané Coveiro
ficou intrigado com aquilo.
-- Vaia! O que vem a ser isso agora!
E a voz tremida e horrorosa tornava a
gritar:
-- Mané Coveiroooooo, meee tireee
daqui!
Aquela gritaria toda não parava, e ele,
que era coveiro mas não era besta, resolveu sair de perto. Deu por encerrado
seu dia de trabalho, fechou o cemitério e foi pra casa descansar a cabeça.
Quando a noite daquele dia caiu, de
repente deu uma ventania pavorosa, dessas de derrubar árvore e até casa mal
construída ou muito velha, e o povo todo também escutou uns gritos na rua,
gritos horríveis, de presságio e anúncio de coisa ruim.
A noite inteira assim, uma noite
horrorosa que custou a passar e não deixou ninguém da cidade dormir.
Na manhã seguinte, quando o coveiro foi
ver, lá estava o caixão de Tereza Bicuda da banda de fora da sepultura.
Mané Coveiro matutou um pouco mas fez
que não tinha percebido nada, que aquilo era muito normal, e enterrou o caixão
de novo, no mesmo local.
Aí, de noite, aconteceu tudo outra vez,
do mesmo jeitinho: a mesma ventania de dar medo, os mesmos gritos na rua, e
todo mundo sem poder dormir, com pavor de algo terrível acontecer.
Na manhã seguinte, de novo o caixão da
banda de fora do buraco da cova.
E Mané Coveiro, outra vez, fez que não
estava nem aí, como se estivesse acostumado a ver esse tipo de coisa. Tornou a
botar o caixão no seu lugar, do mesmo jeitinho.
E tudo se repetiu, tudo do mesmo jeito,
por várias noites.
Foi indo, foi indo, com aquelas noites
todas de ventania e gritos e aquela ameaça de algo horrível acontecer, o povo
começou a ficar tresnoitado. Mané Coveiro também foi ficando cansado de ter que
enterrar de novo aquele trambolho daquele caixão, toda manhã.
Foi então que alguém parece que se
lembrou do último desejo da defunta. Será que era isso que queria aquela
maldita que não deixava ninguém dormir em paz?
Por via das dúvidas, os homens mais
corajosos da cidade resolveram formar um grupo e se dar ao trabalho de atender
ao desejo da defunta e levar seu caixão para a serra.
E lá enterraram ela, na beira de um
córrego que desde então ficou conhecido como o Córrego de Tereza Bicuda.
[...]
Agora, se a paz voltou às noites da
cidade, naquele lugar, no entanto, nunca ninguém mais chegou perto. Quem
tentou, como aquele rapaz, o João Fonseca, filho de Safira, que é teimoso que
só ele, conta que os cajus e mangabas que dão ali são os mais bonitos da serra,
os mais doces.
Só que tudo fica lá mesmo, apodrecendo,
porque ninguém tem gosto nem coragem de apanhar. Quando alguém mais afoito vai,
como esse filho de Safira, não consegue trazer nada. As árvores em volta estão
carregadas de caixas pretas de marimbondos e abelhas e faz uma ventania danada
no local.
[...]
SILVEIRA, Maria José. Tereza
Bicuda. In: ______. Uma cidade de carne e osso: casos do interior. São Paulo:
FTD, 2004. p. 19; 22-25.
Fonte: Português.
Vontade de Saber. 6º ano – Rosemeire Alves / Tatiane Brugnerotto – 1ª edição –
São Paulo – 2012. FTD. p. 100-102.
Entendendo a história:
01
– Quem foi Tereza Bicuda?
Tereza Bicuda foi
uma mulher conhecida por sua maldade e por ter vivido há muito tempo atrás.
02
– O que as pessoas diziam sobre as maldades de Tereza?
As pessoas diziam que Tereza
fazia maldades com todos ao seu redor, incluindo seus pais, marido e amigos.
03
– Qual era o único ponto fraco ou paixão de Tereza?
O único ponto
fraco de Tereza era a serra, onde ela gostava de passar dias e coletar frutas.
04
– Qual era a única bondade que Tereza praticava?
Tereza distribuía
as frutas que coletava na serra para as pessoas que encontrava em seu caminho.
05
– Por que Tereza foi enterrada fora da igreja?
Tereza foi
enterrada fora da igreja porque era considerada má e pecadora, e nunca
frequentava nenhuma das igrejas da cidade.
06
– O que aconteceu quando o coveiro começou a cavar uma cova perto do túmulo de
Tereza?
O coveiro ouviu
uma voz macabra pedindo para ser retirada dali e, durante a noite, o caixão de
Tereza apareceu fora da sepultura.
07
– O que acontecia todas as noites após o enterro de Tereza?
Todas as noites,
uma ventania pavorosa e gritos eram ouvidos na cidade, e o caixão de Tereza
aparecia fora da cova.
08
– Qual foi a solução encontrada para acalmar o espírito de Tereza?
Os moradores da
cidade decidiram atender ao último desejo de Tereza e enterraram seu caixão na
serra, perto de um córrego.
09
– O que acontece com as frutas que crescem perto do túmulo de Tereza na serra?
As frutas que
crescem perto do túmulo de Tereza são bonitas e doces, mas ninguém tem coragem
de pegá-las devido à presença de marimbondos e abelhas, além da ventania no
local.
10
– Qual a mensagem principal do conto?
O conto explora
temas como a maldade, o arrependimento, o medo do desconhecido e a importância
de respeitar os desejos dos outros, mesmo após a morte.
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