quarta-feira, 6 de novembro de 2024

CRÔNICA:AMOR E OUTROS MALES - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: Amor e outros males

              Rubem Braga

        Uma delicada leitora me escreve: não gostou de uma crônica minha de outro dia, sobre dois amantes que se mataram. Pouca gente ou ninguém gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora estranha é que o cronista "qualifique o amor, o principal sentimento da humanidade, de coisa tão incômoda". E diz mais: "Não é possível que o senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza incômodo".

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjsAUf0yCp6cUGpQQF1rR5k63EZUDaTQ3vXH_FZ3rayeTxHsOp8K5cQSz0ggtTd5nzeatKlAM31saW0mfjnjQATGdGVCh3EvBOsiUeHzg7YarX0VtSlRaxxrxl_q1OyIVMq-tShlf6jZxXS2-gKiWPZM62NhVqC1aBkf7kPY_JN92PlSnaAlFbZ-hQVYj4/s1600/AMOR.jpg


        Não, minha senhora, não amo ninguém; o coração está velho e cansado. Mas a lembrança que tenho de meu último amor, anos atrás, foi exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo – "incômodo". Na época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o amor, ainda que infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida sentir que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha; daquele ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.

        Não sei se vale a pena lhe contar que a minha amada era linda; não, não a descreverei, porque só de revê-la em pensamento alguma coisa dói dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e sensível – e não me tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade, igual a muitas outras e inferior a várias.

        A história acaba aqui; é, como vê, uma história terrivelmente sem graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase. Mas o pior é que não foi curta. Durou, doeu e – perdoe, minha delicada leitora – incomodou.

        Eu andava pela rua e sua lembrança era alguma coisa encostada em minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço que me faltava, e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar, suspensa de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mau jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite. Eu já tive um mês de bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar pela janela. Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a "vontade de chorar e de morrer", de que fala o samba?

        Por favor, minha delicada leitora; se, pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite.

Fonte: Português – José De Nicola – Ensino médio – Volume 1 – 1ª edição, São Paulo, 2009. Editora Scipione. p. 80.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal crítica da leitora à crônica de Rubem Braga?

      A leitora critica a maneira como o autor qualifica o amor como algo "incômodo", discordando da ideia de que um sentimento tão intenso possa ser visto dessa forma.

02 – Como Rubem Braga justifica sua visão sobre o amor, especialmente no contexto da crônica?

      Rubem Braga justifica sua visão a partir de uma experiência pessoal de amor não correspondido, que lhe causou grande sofrimento. Ele descreve as sensações físicas e emocionais associadas a essa experiência, como uma dor constante e invasiva.

03 – Qual a relação entre a dor física e a dor emocional explorada na crônica?

      O autor estabelece uma analogia entre a dor física (como a bursite) e a dor emocional causada pelo amor não correspondido. Ambas são descritas como intensas, persistentes e capazes de afetar profundamente a vida de uma pessoa.

04 – Qual o efeito da lembrança do amor não correspondido na vida do cronista?

      A lembrança do amor não correspondido é uma presença constante na vida do cronista, causando-lhe sofrimento e angústia. Ele a compara a um fardo que carrega consigo, uma dor que o acompanha em todos os momentos.

05 – Qual a intenção do autor ao utilizar a expressão "boa bursite" no final da crônica?

      Ao desejar uma "boa bursite", o autor expressa seu desejo por uma dor física que seja menos complexa e mais fácil de lidar do que a dor emocional causada pelo amor não correspondido. É uma forma de ironia, onde ele busca alívio em uma dor física, mesmo que seja dolorosa.

06 – Qual a importância da crônica para a compreensão da visão de Rubem Braga sobre o amor e o sofrimento?

      A crônica revela uma visão complexa e ambivalente sobre o amor. Rubem Braga demonstra que o amor pode ser tanto uma fonte de alegria quanto de grande sofrimento, e que a experiência amorosa pode deixar marcas profundas na alma humana.

07 – Como a crônica "Amor e Outros Males" se relaciona com a obra de Rubem Braga como um todo?

      A crônica se encaixa na obra de Rubem Braga por abordar temas universais como o amor, a dor, a saudade e a passagem do tempo. O autor utiliza uma linguagem simples e direta para expressar sentimentos complexos, o que é característico de seu estilo.

 

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