Crônica: Amor e outros males
Rubem Braga
Uma delicada leitora me escreve: não
gostou de uma crônica minha de outro dia, sobre dois amantes que se mataram.
Pouca gente ou ninguém gostou dessa crônica; paciência. Mas o que a leitora
estranha é que o cronista "qualifique o amor, o principal sentimento da
humanidade, de coisa tão incômoda". E diz mais: "Não é possível que o
senhor não ame, e que, amando, julgue um sentimento de tal grandeza
incômodo".
Não, minha senhora, não amo ninguém; o
coração está velho e cansado. Mas a lembrança que tenho de meu último amor,
anos atrás, foi exatamente isso que me inspirou esse vulgar adjetivo –
"incômodo". Na época eu usaria talvez adjetivo mais bonito, pois o
amor, ainda que infeliz, era grande; mas é uma das tristes coisas desta vida
sentir que um grande amor pode deixar apenas uma lembrança mesquinha; daquele
ficou apenas esse adjetivo, que a aborreceu.
Não sei se vale a pena lhe contar que a
minha amada era linda; não, não a descreverei, porque só de revê-la em
pensamento alguma coisa dói dentro de mim. Era linda, inteligente, pura e
sensível – e não me tinha, nem de longe, amor algum; apenas uma leve amizade,
igual a muitas outras e inferior a várias.
A história acaba aqui; é, como vê, uma
história terrivelmente sem graça, e que eu poderia ter contado em uma só frase.
Mas o pior é que não foi curta. Durou, doeu e – perdoe, minha delicada leitora
– incomodou.
Eu andava pela rua e sua lembrança era
alguma coisa encostada em minha cara, travesseiro no ar; era um terceiro braço
que me faltava, e doía um pouco; era uma gravata que me enforcava devagar,
suspensa de uma nuvem. A senhora acharia exagerado se eu lhe dissesse que
aquele amor era uma cruz que eu carregava o dia inteiro e à qual eu dormia
pregado; então serei mais modesto e mais prosaico dizendo que era como um mau
jeito no pescoço que de vez em quando doía como bursite. Eu já tive um mês de
bursite, minha senhora; dói de se dar guinchos, de se ter vontade de saltar
pela janela. Pois que venha outra bursite, mas não volte nunca um amor como
aquele. Bursite é uma dor burra, que dói, dói, mesmo, e vai doendo; a dor do
amor tem de repente uma doçura, um instante de sonho que mesmo sabendo que não
se tem esperança alguma a gente fica sonhando, como um menino bobo que vai
andando distraído e de repente dá uma topada numa pedra. E a angústia lenta de
quem parece que está morrendo afogado no ar, e o humilde sentimento de ridículo
e de impotência, e o desânimo que às vezes invade o corpo e a alma, e a
"vontade de chorar e de morrer", de que fala o samba?
Por favor, minha delicada leitora; se,
pelo que escrevo, me tem alguma estima, por favor: me deseje uma boa bursite.
Fonte: Português – José
De Nicola – Ensino médio – Volume 1 – 1ª edição, São Paulo, 2009. Editora
Scipione. p. 80.
Entendendo a crônica:
01
– Qual a principal crítica da leitora à crônica de Rubem Braga?
A leitora critica
a maneira como o autor qualifica o amor como algo "incômodo", discordando
da ideia de que um sentimento tão intenso possa ser visto dessa forma.
02
– Como Rubem Braga justifica sua visão sobre o amor, especialmente no contexto
da crônica?
Rubem Braga
justifica sua visão a partir de uma experiência pessoal de amor não
correspondido, que lhe causou grande sofrimento. Ele descreve as sensações
físicas e emocionais associadas a essa experiência, como uma dor constante e
invasiva.
03
– Qual a relação entre a dor física e a dor emocional explorada na crônica?
O autor
estabelece uma analogia entre a dor física (como a bursite) e a dor emocional
causada pelo amor não correspondido. Ambas são descritas como intensas,
persistentes e capazes de afetar profundamente a vida de uma pessoa.
04
– Qual o efeito da lembrança do amor não correspondido na vida do cronista?
A lembrança do
amor não correspondido é uma presença constante na vida do cronista,
causando-lhe sofrimento e angústia. Ele a compara a um fardo que carrega
consigo, uma dor que o acompanha em todos os momentos.
05
– Qual a intenção do autor ao utilizar a expressão "boa bursite" no
final da crônica?
Ao desejar uma
"boa bursite", o autor expressa seu desejo por uma dor física que
seja menos complexa e mais fácil de lidar do que a dor emocional causada pelo
amor não correspondido. É uma forma de ironia, onde ele busca alívio em uma dor
física, mesmo que seja dolorosa.
06 –
Qual a importância da crônica para a compreensão da visão de Rubem Braga sobre
o amor e o sofrimento?
A crônica revela
uma visão complexa e ambivalente sobre o amor. Rubem Braga demonstra que o amor
pode ser tanto uma fonte de alegria quanto de grande sofrimento, e que a
experiência amorosa pode deixar marcas profundas na alma humana.
07
– Como a crônica "Amor e Outros Males" se relaciona com a obra de
Rubem Braga como um todo?
A crônica se
encaixa na obra de Rubem Braga por abordar temas universais como o amor, a dor,
a saudade e a passagem do tempo. O autor utiliza uma linguagem simples e direta
para expressar sentimentos complexos, o que é característico de seu estilo.
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