Crônica: Budapeste – Devia ser proibido – Fragmento
Chico
Buarque
Devia ser proibido debochar de quem se
aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa
estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela,
telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que
tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí
estou chegando quase... havia provavelmente algum problema com a palavra quase.
Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois
caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve
novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o
corpo inteiro.
Disse enfim ter entendido que eu
chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho,
e a piada nem tinha essa graça toda.
Tanto é verdade que em seguida Kriska
ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos
meus lábios trêmulos. Hoje, porém posso dizer que falo o húngaro com perfeição,
ou quase. Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um
ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que frequento,
onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo
pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso.
Para tirar a cisma, só posso recorrer a
Kriska, que tampouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua
mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta
e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa, ela responde: pouco a
pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha... E morre de rir, depois se
arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí vai.
[...]
BUARQUE, Chico.
Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Fonte: Português – José
De Nicola – Ensino médio – Volume 1 – 1ª edição, São Paulo, 2009. Editora
Scipione. p. 131.
Entendendo a crônica:
01
– Qual a situação cômica que o narrador vivencia ao tentar falar húngaro?
O narrador comete
um erro ao tentar dizer "quase" em húngaro, o que gera uma série de
reações engraçadas por parte de sua namorada, Kriska. A repetição do erro e a
interpretação inusitada dada por Kriska criam um momento de humor.
02
– Qual a importância da linguagem na construção da identidade do narrador em
Budapeste?
A linguagem,
especialmente o domínio do húngaro, é fundamental para a construção da
identidade do narrador em Budapeste. Ele busca dominar a língua para se
integrar à cultura local e se sentir mais próximo de Kriska. A preocupação com
o sotaque revela seu desejo de ser aceito e reconhecido como um verdadeiro
húngaro.
03
– Como a relação entre o narrador e Kriska é influenciada pela questão da
linguagem?
A questão da
linguagem cria um jogo de sedução e poder entre o narrador e Kriska. Ao fazer
piada com o erro do narrador, Kriska demonstra seu domínio da língua e, ao
mesmo tempo, o coloca em uma posição de inferioridade. No entanto, essa
dinâmica também aproxima o casal, criando momentos de cumplicidade e
intimidade.
04
– Qual o papel do humor na crônica?
O humor é um
elemento fundamental na crônica, servindo para criar uma atmosfera leve e
divertida. A situação cômica do erro de linguagem e as reações de Kriska proporcionam
momentos de descontração e aproximam o leitor da história.
05
– Quais as inseguranças do narrador em relação ao domínio do húngaro?
O narrador
demonstra insegurança em relação ao seu domínio do húngaro, temendo ser
descoberto como estrangeiro. Ele se preocupa com o sotaque e com a
possibilidade de cometer erros em situações formais, o que revela sua
necessidade de aprovação e reconhecimento.
06
– Qual o significado da frase "pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma
orelha..."?
Essa frase,
repetida por Kriska, tem um duplo sentido. Inicialmente, ela serve para zombar
do erro do narrador, sugerindo que ele está aprendendo o húngaro lentamente e
de forma gradual. No entanto, ela também pode ser interpretada como uma
metáfora para o processo de aproximação entre o narrador e Kriska, que se
conhecem e se apaixonam aos poucos.
07
– Como a crônica "Budapeste" aborda o tema da identidade e do
pertencimento?
A crônica aborda
o tema da identidade e do pertencimento através da experiência do narrador em
um país estrangeiro. A busca por dominar a língua local e se integrar à cultura
húngara revela o desejo do narrador de encontrar um lugar onde se sinta
pertencente. No entanto, a crônica também sugere que a identidade é algo complexo
e fluido, que não se limita à questão da nacionalidade ou da língua.
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