quarta-feira, 20 de maio de 2020

CONTO: UM CHÁ BEM FORTE E TRÊS XÍCARAS - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

Conto: Um chá bem forte e três xícaras
         
(Conto da obra Antes do baile verde)
        Lygia Fagundes Telles

      A borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das pétalas. Juntou as asas que se coloram palpitantes. Desenrolou a tromba. E inclinando o corpo para frente, num movimento de seta, afundou a tromba no âmago da flor. 
        Maria Camila chegou a estender a mão para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino riso negro debruando-lhe as asas.  
        -- Deve ser uma borboleta jovem – disse Maria Camila.
        -- Jovem? – repetiu a mulher debruçada na janela que dava para o jardim.
        -- Veja, as asas ainda estão intactas. E está sugando com tamanha força ... Haverá tanto suco assim?
        -- Essa rosa abriu ontem cedo, a senhora lembra? E já está murchando – disse a mulher prendendo com o alfinete do
        -- Maria Camila voltou-se para janela. Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim.
        No céu azul- claro, as nuvens iam tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no ar. 
        -- Você ainda não pregou essa alça, Matilde?
        -- Não sei onde o botão foi parar.
        -- Pegue outro na minha caixa. Mas agora não! – pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. – A gente vai clareando à medida que envelhece, mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta.
        -- E essa borboleta ainda...
        -- Deixa – atalhou Maria Camila. Uniu as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas mãos tremiam.  – Há de ver que a rosa está feliz por ter sido escolhida. 
        -- Mas desse jeito ela vai morrer mais depressa. 
        -- É melhor deixar. 
        A empregada passou lentamente a ponta do avental no peitoril da janela. Acompanhou com um olhar uma andorinha que cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro. Da casa vizinha. Suspirou.
        -- Acho que essa borboleta já esteve ontem por aqui, a senhora não viu?
        -- Maria Camila concordou com um leve movimento de cabeça. Examinou com espanto as mãos cheias de sardas. 
        -- É a mesma. 
        -- Acostumou - disse a mulher num tom indiferente.
        Fixou o olhar vadio nos ombros estreitos da patroa. – A senhora não quer que traga o chá?
        -- Estou esperando a menina. 
        -- Mas a que hora ficou de aparecer?
        -- Às cinco – disse Maria Camila apertando os olhos. 
        Inclinou-se para o relógio-pulseira. E escondeu no regaço as mãos fechadas. – Às cinco em ponto.
        -- Foi emergindo do silêncio da tarde o zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que pareceu brotar de dentro do canteiro. 
        -- Essa menina... – E a empregada fez uma pausa para ajustar para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: – Eu conheço?
        -- Não, não conhece.
        -- Quantos anos ela tem?
        -- Uns dezoito.
        -- Mas então não é menina!
        Maria Camila fixou no céu o olhar perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando dominar o tremor das mãos. 
        -- Desde ontem ela já rondava por aqui. Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.
        -- Trabalhei na casa de um padre que tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!
        Por um breve instante Maria Camila fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância. 
        -- Chega a ser obsceno...
        -- Mas é sabido que as vermelhas têm mais perfumes – prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.
        Duas crianças atravessaram a rua aos gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva.  Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor.  Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias intumescidas com a mesma expressão que olhara para a rosa.
        -- Ela é conhecida do doutor?
        -- Quem, Matilde?
        -- Essa moça que vem tomar chá...
        -- Trabalham juntos – disse Maria Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. – Ela está fazendo um estágio no laboratório.
        -- Estágio?
        -- Sim, estágio. 
        -- A mulher ficou pensativa. Pôs-se a coçar o braço.
        -- E a senhora conhece ela?
        -- Já vi de longe.
        -- É bonita?
        -- Não sei, Matilde, não sei.
        -- Estágio – repetiu a empregada. – Então é essa que às vezes telefona pra ele.
        Alguém iniciou na vizinhança um exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade. 
        -- Deve ser- sussurrou Maria Camila apanhando a pétala que caíra na relva Levou-a aos lábios que estavam lívidos. – Deve ser.
        -- Hoje cedo ela telefonou, não perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas reconheci a voz, só podia ser ele. 
        -- São muito amigos. Os velhos, os mais velhos gostam da companhia dos jovens – acrescentou a mulher dilacerando a pétala entre os dedos.  Fez um gesto brusco. – Esse menino era melhor no violino, não era?
        A empregada fungou, impaciente.
        -- Nem no violino! A gente ficava com dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou que ele tem que tocar alguma coisa...
        -- Quem foi que disse?
        -- A Anita, que trabalha lá. Diz que a mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São estrangeiros.
        -- Maria Camila olhou furtivamente o relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as fechada. 
        -- Ele tocava melhor violino. 
        A mulher fez uma careta.  E ficou seguindo com um olhar gelado. Uma adolescente que passava na calçada. Franziu a cara como se enfrentasse o sol. 
        -- Como é que ela se chama? Essa do chá...
        O menino interrompeu o exercício. O Zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único ponto.  Maria Camila respirou com esforço.
        -- Acho que estou gripada.  
        -- Gripada? – E a mulher apoiou o queixo nas mãos.  – A senhora está com os olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?
        -- Não, não é preciso – disse Maria Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: – Não vai mesmo pregar esse botão? Não vai?
        -- Mas se não sei dele...
        -- Pegue um na minha caixa, já disse.
        A mulher empertigou-se com solenidade. Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Chegou a abrir a boca. E enveredou para o interior da casa. 
        Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas.  " Que é que eu faço agora?", murmurou inclinando-se para a rosa. "Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer! ..." Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga depressa o que é que eu faço! Me diga! ...”
        A janela abriu-se. A empregada estendeu o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.
        -- Não achei botão igual. Posso pegar este amarelo?
        Maria Camila tirou do bolso do casaco o estojo de pó. 
        Examinou-se ao espelho. Consertou as sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.
        -- Pregue esse mesmo.
        A mulher vacilava, rodando o botão entre os dedos. 
        -- É o mais parecido que achei.
        -- Está bem, está bem – repetiu a outra reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinando as mãos. – Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai ficando rosado... 
        -- O céu parece brasa, que bonito!
        A gente vai ficando rosada também – disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo. E riu de repente: – Acho a vida tão maravilhosa!
        -- Maravilhosa?
        O menino parou de tocar. Maria Camila ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio. Falou com energia  
        -- Assim que a moça chegar, sirva o chá aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.
        -- Mas é só a senhora e ela...
        -- O doutor pode aparecer de surpresa, é quase certo que ele apareça – acrescentou a mulher limpando do vestido os pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia. Levantou-se. Respirava ofegante. – Quero os guardanapos novos, não vá esquecer, hein? Os novos.
        Passos ressoaram na calçada. Quando ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta do pés, tentando ver além do muro da casa vizinha:
      -- Deve ser ela... É ela! – sussurrou excitadamente. – É ela!
        Maria Camila levantou a cabeça. E caminhou decidida em direção ao portão.
                                                                   Lygia Fagundes Telles  
Entendendo o conto:

01 – Dentro deste tipo textual (conto) há que narrador?
a)   Narrador-personagem.
b)   Narrador-observador.
c)   Narrador-onisciente.

02 – Qual o cenário em que se acontece a história?
      Num jardim.

03 – Que fato provocou o desenrolar dos acontecimentos descritos no conto?
      A visita de uma jovem de dezoito anos, convidada para um chá.

04 – Quantos personagens participam da ação apresentada no texto? Quem são eles?
      Maria Camila, Matilde, Augusto e a Estagiária.

05 – Maria Camila observa a borboleta e a flor e faz comentários com Matilde relacionando com sua vida. Por quê?
      A imagem da borboleta que suga a flor com força, forma uma analogia com a situação que ela está enfrentando.
      O ato de sugar talvez provoque a morte mais rápida da flor, pode ser comparada com a jovem estagiária que, para ela, é a causada morte do amor entre ela e Augusto.

06 – Neste trecho: “[...] A gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está quase preta. Pode-se observar a utilização de que figura de linguagem?
      Uma antítese.

07 – O nervosismo de Maria Camila é traduzido em alguns gestos, principalmente relacionados às mãos. Cite alguns trechos que comprove a afirmação.
      “Suas mãos tremiam”; “As mãos fechadas”; “Tentando dominar o tremor das mãos”; “Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado”.

08 – Em que passagem do texto ocorre o clímax, ou seja, o momento de maior tensão da história? Explique.
      Quando ouvem passos ressoarem na calçada e Matilde olha, vê que a estagiária chegou.
      Maria Camila levanta a cabeça e caminha em direção do portão.




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