Crônica: Estes jovens entrevistadores
e seus fantásticos gravadores
Moacyr Scliar
Se há coisa que comove e estimula um
escritor gaúcho é o apoio, sempre dedicado e muitas vezes anônimo, que a
literatura rio-grandense recebe em centenas de esmolas, às vezes no mais remoto
interior. Ainda na semana que passou, vários colégios fizeram realizar a Semana
do Escritor Gaúcho. Muitos escritores, entre eles eu, foram procurados para
palestras, sessões de autógrafos e entrevistas.
Não são todos os escritores que gostam
de falar para estudantes, ou para quem quer que seja; Dalton Trevisan, por
exemplo, distribui uma entrevista-padrão mimeografada, e pronto, todo o resto
está em seus livros. Eu, porém, gosto de conversar com jovens ou com qualquer
pessoa sobre literatura. É um oficio muito solitário, este, de modo que romper
a casca de vez em quando é benéfico. Não essencial, mas benéfico; sempre é
algum feedback. E também é bom ajudar gente moça, que está se iniciando na
literatura, e que muitas vezes se aflige com o misterioso código dos textos. Eu
às vezes recebo telefonemas aflitos:
-- Rápido! Tenho prova amanhã! O que é
que o senhor quer dizer com a sua obra?
Não há dúvida que é um bom exercício de
síntese e que deve ter alguma utilidade: acredito que, no dia do Juízo, o
Senhor nos cobrará mais ou menos nesses termos – Rápido! Qual foi o sentido de
sua vida? –, de modo que é bom a gente estar preparado. Mas mesmo quando não
estão a algumas horas de um exame, os estudantes entram em ansiedade aguda ante
a perspectiva de fazer perguntas a um escritor. Uma das causas deve ser o
próprio escritor, sempre uma figura mítica; outra causa deve ser o temor de
fazer perguntas inadequadas; mas eu acho que o principal fator de perturbação
dos jovens é o gravador.
Nas mãos de um aluno de primeiro ou
segundo grau, o gravador se revela um instrumento maligno, simplesmente incapaz
de ser controlado – ao menos na ocasião de entrevistar um escritor. É uma
rotina que constantemente se repete: entra o grupo de alunos, e em meio a
risinhos nervosos, se prepara para a entrevista de antemão combinada. A
primeira providência é desdobrar a folha de papel com as mil quatrocentas e
vinte perguntas preparadas; a segunda – conditio sine qua non para a entrevista
– é fazer funcionar o gravador. A primeira coisa que descobrem é que está sem
pilhas; nenhum problema, só que a dona do gravador esqueceu de coloca-las. Mas
aí, quando ela procura na bolsa, vê que só tem três pilhas, não quatro. A quarta,
simplesmente sumiu, e deve ser fornecida pelo escritor, de cujo equipamento
intelectual as pilhas são hoje componente indispensável. Colocada a pilha,
deveria começar a gravação – e então é aquela atrapalhação com as teclas; em
vez de Record a menina aperta o Fast Forward ou Rewind.
O resultado
disto é que, quando a entrevista finalmente começa, os entrevistadores não
conseguem desgrudar os olhos da cassete, para ver se ela está rodando mesmo, o
que acaba contagiando o escritor – e no fim, estão todos mais preocupados com o
gravador que com a literatura. Mesmo que a cassete tenha rodado, contudo, não
há garantia de que a entrevista tenha saído boa, é possível que os
entrevistadores se lembrem que esqueceram de regular o volume, com o que a
cassete, tocada, revela apenas uns débeis murmúrios que nem a professora de
mais boa vontade poderá identificar com uma voz poderosa da literatura. Começa
tudo de novo: onde é que o senhor nasceu? Que livros já escreveu? – etc. E
desta vez então dá certo, e os alunos sorriem triunfantes, o escritor se
solidariza com eles – bom trabalho, pessoal! – e, como convém à literatura e à
vida, chega-se a um final feliz. Que é, afinal, o supremo consolo para os
ofícios solitários. Enquanto houver jovens dispostos a – com ou sem gravador –
perguntar, valerá a pena escrever e falar sobre o escrever.
Minha mãe não dorme enquanto
eu não chegar e outras crônicas. Porto Alegre, L&PM 2001.
Fonte: Livro – Ler, entender, criar –
Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p. 160-2.
Entendendo a crônica:
01 – Releia esta frase, do
primeiro parágrafo do texto: “Muitos
escritores, entre eles eu, foram procurados para palestras, sessões de
autógrafos e entrevistas.”
A quem se refere o pronome eu nesse trecho? O que lhe
permitiu chegar a essa conclusão?
Refere-se a
Moacyr Scliar. A identificação é possível porque o nome do autor do texto vem
registrado logo abaixo do título.
02 – No texto acima ficamos
conhecendo a visão de um entrevistado sobre um tipo de entrevista. Qual é esse
tipo?
As entrevistas realizadas por estudantes
para a escola.
03 – Com base nas
informações contida no texto, responda: qual é a função de Moacyr Scliar?
Ele é escritor.
04 – De acordo com o texto
“Estes jovens entrevistadores e seus fantásticos gravadores”, os alunos ficam
ansiosos ante a perspectiva de fazer perguntas a um escritor. Um dos motivos é
o próprio escritor, sempre uma figura mítica. O que você entende por “figura
mítica”?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: nesse contexto, é uma “figura idealizada, fabulosa,
legendária”.
05 – Ainda que de modo
brincalhão, o escritor faz duas críticas à organização das entrevistas pelos
estudantes. Quais são essas críticas?
O excesso de
perguntas (possivelmente causado pela falta de seleção das mais significativas
para os objetivos da entrevista) e o descuido e a inabilidades dos estudantes
no manejo do gravador.
06 – Segundo Moacyr Scliar,
nem todos os escritores gostam de conceder entrevistas. Que exemplo ele
menciona para comprovar seu ponto de vista?
O caso de Dalton
Trevisan, que distribui uma entrevista-padrão mimeografada e espera que
quaisquer outras informações sejam encontradas em sua própria obra.
07 – Em que trechos Moacyr
Scliar justifica sua boa vontade em conceder entrevistas?
“É um ofício muito solitário, este, de
modo que romper [...] se aflige com o misterioso código dos textos”, “[...] e,
como convém à literatura e à vida, chega-se a um final feliz. [...] valerá a
pena escrever e falar sobre o escrever”.
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