Reportagem: Os filhos de ninguém
Joaquim de Carvalho
M. S. M., de 03 anos, não se cansa de
escutar elogios do tipo: “Que criança bonitinha”. Mas ela quer muito mais do
que isso. No fim de semana passado, ela percorria todo o abrigo em que mora, em
São Paulo, pilotando a bicicleta que acabara de ganhar. M. S. M. é uma daquelas
crianças que o jargão dos assistentes sociais classifica de
“institucionalizada”. M. é uma órfã. Ao nascer, ela foi abandonada pela mãe,
também órfã. M. ainda tem dificuldade para falar, mas dá um jeito de dizer que
quer uma família só sua – e é urgente. Ao ver um adulto, ela se aconchega, faz
graça, prende e solta os cabelos. Se tem lápis e papel por perto, faz desenhos
caprichosos. Para alguns, pede até que que lhe deem comida na boca. Com pouco
mais de conversa, pergunta se o interlocutor vai leva-la dali. M. tem uma
família interessada na sua adoção. Pode ser que deixe o orfanato. Pode ser que
consiga esquecer que aprendeu a fazer fila antes mesmo de aprender a andar.
Segundo estimativa da Secretaria de
Assistência Social, órgão do Ministério da Previdência, existem no Brasil cerca
de 200.000 meninos e meninas abandonados, dos quais 195.000 estão em entidades
de amparo, públicas ou privadas. Dentre os que estão em orfanatos, a maioria,
120.000, tem mais de 6 anos e menos de 14 anos. Os demais, 75.000 crianças, tem
menos de 6 anos de idade. Chamados em geral de orfanatos, o que menos há nesses
abrigos são crianças órfãs. A maioria são meninos e meninas expelidos da
família pela miséria material e pela loucura doméstica – um levantamento
realizado nos orfanatos de Belo Horizonte revelou que 15% são filhos de mães
que trabalham fora e moram nos empregos, 18% são filhos de pais sem-casa e 7%
vêm de famílias paupérrimas, que não podem garantir o sustento da prole. Quinze
por cento vão para os abrigos por ter sido vítimas de violência praticada por
suas próprias famílias. Só 14% vão para essas instituições por morte ou
ausência do pai ou da mãe.
L. C. M., que passou cinco de seus 10
anos na Fundação Romão Duarte, no Rio de Janeiro, disfarça o trauma de ter sido
abandonado pelos pais imaginando como seria uma nova mãe. Em tempo de
sociedades globalizadas, ele, que assiste à TV todos os dias, estabelece seus
critérios sobre a mãe ideal: “Ela tem de ser francesa e loira”. Mas por que
francesa? “Porque na França tem neve”. L. sente saudade da mãe de carne e osso,
negra como ele, mas prefere que ela não esteja por perto. “Não queria que minha
mãe viesse aqui: ela me bate, faz o que quer, e eu prefiro outra”. Confundindo
os tempos verbais, L. fala como se a mãe francesa estivesse por perto. “Eu
gosto de abraçar a mãe que eu ainda vou ter”, afirma. A casa de L. é um prédio
imponente, casarão construído ainda no tempo do império, com cômodos amplos.
Tudo organizado e limpo. E também um tanto frio, apesar das boas intensões dos
que nele trabalham.
Nos grandes orfanatos, tirando o sapato
do pé, tudo é coletivo. Roupa, brinquedo, toalha, sabonete, xampu – quando há
–, lençol e cobertor pertencem a todos. “Estimulamos o espírito de grupo para
facilitar a adaptação das crianças no caso de uma adoção”, explica o padre
Clodoveo Piazza, diretor da Organização do Auxílio Fraterno, de Salvador. No
Sampaio Vianna, em São Paulo, um dos maiores orfanatos brasileiros, com 350
internos, só se admite como objeto particular aquilo que couber num saco
plástico de 5 quilos, que as crianças prendem no espaldar da cama. No caso das
roupas, trocadas diariamente, quem faz a escolha é a educadora de plantão. Não
há sequer um espaço privativo em armários. “As crianças exigem os sapatos como
um bem particular e nós deixamos”, diz Wilson Barbalho da Fonseca Junior,
diretor do Sampaio Vianna.
A coletivização é uma exigência do
gigantismo da instituição. Ela tem de funcionar como uma indústria de manter
crianças em ordem. É por isso que até o próprio Fonseca acha que os grandes
orfanatos deveriam ser desmembrados em unidades menores. “Nas pequenas
unidades, as crianças poderiam ser atendidas como indivíduos, e não massa”,
afirma ele. No Auxílio Fraterno, em Salvador, e no Romão Duarte, no Rio, os
banhos são sempre coletivos e as refeições, servidas em horários rígidos. Se
não comer no horário, passa fome. No Sampaio Vianna, em cada quarto dormem
trinta crianças. O horário para dormir é livre, mas depois das 9 e meia da
noite não se encontra ninguém acordado. As crianças podem assistir à televisão,
mas o que elas preferem é que as educadoras contem ou leiam alguma história, ouvida
em grupo.
Para um garoto “institucionalizado”,
por sua vez, a única riqueza possível é ter alguém que se preocupe
especificamente com ele. Assim, os meninos e as meninas que são visitados pelos
próprios pais, ainda que de vez em quando, se consideram mais importantes que
outro que só tenha um voluntário a se preocupar com ele. E a criança que conta
com a atenção de um profissional se julga em melhor conta do que aquela que não
consegue sequer receber um presente de uma alma caridosa no Natal. Ser ou não
objeto do afeto de alguém é o que distingue uma criança de outra.
Uma das maneiras encontradas para
substituir a família que os abandonou é inventar uma nova enquanto os pais
adotivos não chegam – e eles raramente chegam.
Embora haja mais adultos interessados
na adoção do que crianças disponíveis, a adoção só se concretiza quando os
candidatos a pai ou a mãe encontram uma criança próxima de seus sonhos. Em
geral, a criança sonhada é ainda bebê e tem traços físicos parecidos com os do
pai ou da mãe. Ou de ambos. Dificilmente, por exemplo, branco adota negro. E
vice-versa.
A realidade de uma adoção malsucedida é
uma tragédia de consequências talvez ainda mais danosas do que a perda dos pais
biológicos.
Segundo o padre Piazza, é por volta dos
14 anos a fase mais aguda do desejo de conhecer os pais. Para os psicólogos,
essa é uma curiosidade instintiva. A pessoa tem necessidade estrutural de saber
de que corpo saiu. Sem essa informação, resta uma dúvida incômoda: qualquer namorado
ou namorada pode ser seu irmão ou irmã. “Os pais adotivos devem informar seus
filhos da adoção e compreender a curiosidade em relação aos pais biológicos”,
afirma Antônio Carlos Gomes da Costa, ex-presidente da Febem de Minas Gerais.
O orfandade tem uma longa história no
Brasil. Em 1553, Dom João III, rei de Portugal, determina que as crianças órfãs
tenham sua alimentação garantida pelos administradores da colônia. Não era
apenas um ato humanitário do rei. Os órfãos tinham um papel fundamental no
desenvolvimento da terra descoberta. Eram eles que aprendiam a língua indígena
e serviam de intérpretes para os jesuítas e oficiais da coroa. Foi par isso que
Portugal mandou uma legião de órfãos para o Brasil. Convivendo com os pequenos
índios, arrancados de sua tribo, esses meninos e meninas aprendiam o novo
idioma. Em razão de seu ofício, eram chamados de meninos-língua.
A história da orfandade também registra
a existência de um cilindro oco de madeira, com a abertura de um único lado,
engenhosa inventada na França para facilitar o abandono de crianças. Era a Roda
dos Expostos. Importada pelo Brasil em 1726, teve similares nas grandes cidades
até 1948, quando foi desativada a unidade da Santa Casa de Misericórdia de São
Paulo. Instalada no muro d fundo do hospital, girava no sentido da calçada para
o interior da Santa Casa, levando um bebê, normalmente acompanhado de uma
trouxa de roupas. Quem colocava o bebê na Roda não era visto por quem o
apanhava, do outro lado do muro.
Revista Veja, 25 dez.
1996. p. 142-50. N° especial. (Texto adaptado).
Fonte: Linguagem
Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 166-71.
Entendendo a reportagem:
01 – O texto trata da
orfandade. Que diferença você pode notar no enfoque dado ao assunto no primeiro
e no segundo parágrafo?
O primeiro
apresenta uma situação particular de uma criança órfã; o segundo mostra dados
estatísticos sobre crianças em entidades de amparo no Brasil.
02 – Se o autor tivesse
invertido a ordem de apresentação desses dois parágrafos, você acha que o
impacto da leitura seria o mesmo? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Na sua opinião, por que
o nome das crianças foi omitido e substituído pelas iniciais correspondentes?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Na linha 2, na frase
“Mas ela quer muito mais do que isso”,
a que termo do texto se refere a palavra destacada?
Ela quer elogios.
05 – O que o autor quer
dizer com “[...] aprendeu a fazer fila
antes mesmo de aprender a andar”?
As crianças ficam “na fila” à espera de adoção, e nas
entidades de amparo devem fazer fila para tudo; tomar banho, receber presentes,
etc.
06 – De acordo com o texto,
nos grandes orfanatos, todos os objetos são coletivizados. Como essa
coletivização é explicada:
a)
Pelo diretor de um dos orfanatos?
Estímulo do espírito de grupo para facilitar a adaptação das
crianças em caso de adoção.
b)
Pelo autor do texto?
Exigência do gigantismo das instituições, que tem de funcionar como
uma indústria de manter crianças em ordem.
c)
Com qual dessas explicações você concorda?
Concorda com as duas? Com nenhuma? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
07 – “Nos grandes orfanatos,
tirando o sapato do pé, tudo é coletivo.” Por que o autor usou a expressão “do
pé”, já que ela poderia parecer redundante?
A expressão “do
pé” reforça a ideia do sapato que está em uso. Um outro par de sapatos
provavelmente seria passado a outra criança.
Resposta pessoal do aluno.
09 – As estatísticas
apresentadas mostram que a palavra orfanato
não é rigorosamente adequada para denominar as instituições onde se encontram
tais crianças, explique.
As maiorias das crianças não são órfãs,
no sentido estrito do termo; são crianças abandonadas pelas famílias. Os que
perderam os pais (ou um deles) constituem a minoria 14%.
10 – Uma característica do
texto informativo é a objetividade. No texto lido, apesar de informativo, o
autor dá sua opinião, e a própria escolha que faz dos depoimentos das crianças tem
intenção de emocionar o leitor, além de servir para dar veracidade ao texto. No
trecho seguinte, que parte traz a informação mais objetiva e que parte está
mais carregada de emoção? Leia-o: “No Auxílio Fraterno, em Salvador, e no Romão
Duarte, no Rio, os banhos são sempre coletivos e as refeições servidas em
horários rígidos. Se não comer no horário, passa fome.”
O primeiro
período contém a informação objetiva.
11 – Numa das entidades
citadas no texto, as crianças preferem ouvir histórias contadas pelas
educadoras a assistir a televisão. Considerando a situação dessas crianças,
qual pode ser uma das razões dessa preferência?
O fato de receber a atenção de uma
pessoa, ainda que essa atenção venha de um profissional e seja dividida com o
grupo.
12 – Do ponto de vista dos
garotos e garotas institucionalizados, a preocupação em possuir coisas parece
ser a menor. Qual é a maior?
Segundo o texto, é ter alguém que se
preocupe exclusivamente com eles(as).
13 – Releia: “Ser ou não
objeto do afeto de alguém é o que distingue uma criança de outra.”
a)
Por que, nos orfanatos, esse critério acaba
pesando tanto na distinção de uma criança da outra?
Por um lado, elas são “massificadas” pela coletivização do espaço e
dos bens materiais, bem como pela uniformização dos hábitos. Por outro, há uma
extrema carência de afeto.
b)
Você acha que nas famílias esse critério é
idêntico? Por quê?
Resposta pessoal do aluno.
14 – Além de apresentar
dados estatísticos e depoimentos de pessoas envolvidas, as boas matérias
jornalísticas costumam apresentar informações históricas sobre o assunto de que
tratam. O que mais o impressionou na história da orfandade no Brasil? Por quê?
Resposta pessoal
do aluno.
15 – Que informações novas
você obteve ao ler essa matéria jornalística? E que sentimentos essa matéria
provocou em você?
Resposta pessoal
do aluno.
16 – Agora, releia a data de
publicação da revista da qual retiramos a matéria. Considerando o calendário
cristão, comente a relação entre essa data e o tema da matéria jornalística.
A revista foi às
bancas na época do Natal, festa cristã que comemora o nascimento de cristo.
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