Crônica: Recenseamento
Rubem Braga
São Paulo vai se recensear. O governo
quer saber quantas pessoas governa. A indagação atingirá a fauna e a flora
domesticadas. Bois, mulheres e algodoeiros serão reduzidos a números e
invertidos em estatísticas.

O homem do censo entrará pelos
bangalôs, pelas pensões, pelas casas de barro e de cimento armado, pelo
sobradinho e pelo apartamento, pelo cortiço e pelo hotel, perguntando:
--
Quantos são aqui?
Pergunta triste, de resto. Um homem
dirá:
-- Aqui havia mulheres e criancinhas.
Agora, felizmente, só há pulgas e ratos.
E outro:
-- Amigo, tenho aqui esta mulher, este
papagaio, esta sogra e algumas baratas. Tome nota de seus nomes, se quiser.
Querendo levar todos, é favor.
E outro:
-- Eu? Tinha um amigo e um cachorro. O
amigo se foi, levando minhas gravatas e deixando a conta da lavadeira. O
cachorro está aí, chama-se Lord, tem três anos e meio e morde como um
funcionário público.
E outro:
-- Oh! sede bem-vindo. Aqui somos eu e
ela, só nós dois. Mas nós dois somos apenas um. Breve, seremos três. Oh!
E outro:
-- Dois, cidadão, somos dois. Naturalmente
o sr. não a vê. Mas ela está aqui, está, está! A sua saudade
jamais sairá de meu quarto e de meu peito!
E outro:
-- Aqui moro eu. Quer saber o meu nome?
Procure uma senhorita loura que mora na terceira casa da segunda esquina, à
direita. O meu nome está escrito na palma de sua mão.
E outro:
-- Hoje não é possível, não há
dinheiro nenhum. Volte amanhã. Hein? Ah, o sr. é do recenseamento? Uff!
Quantos somos? Somos vinte, somos mil. Tenho oito filhos e cinco filhas. Total:
quinze pestes. Mas todos os parentes de minha mulher se instalaram aqui. Meu
nome? Ahn... João Lourenço, seu criado. Jesus Cristo João Lourenço. A
minha idade? Oh! pergunte à minha filha, pergunte. É aquela jovem
sirigaita que está dando murros naquele piano. Ontem quis ir não sei onde com
um patife que ela chama de "meu pequeno". Não deixei, está claro. Ela
disse que eu sou da idade da pedra lascada. Escreva isso, cavalheiro, escreva.
Nome: João Lourenço; profissão: idiota; idade: da pedra lascada.
Está satisfeito? Não, não faça caretas, cavalheiro. Creia que eu o aprecio
muito. O sr. pelo menos não é parente da mulher. Isso é uma grande qualidade,
cavalheiro! É a virtude que eu mais admiro! O sr. é divino, cavalheiro, o sr. é
meu amigo íntimo desde já, para a vida e para a morte!
Rubem Braga. Para gostar de ler, vol. 3. São Paulo, Ática, 1979.
Fonte: Gramática da
Língua Portuguesa Uso e Abuso. Suzana d’Avila – Volume Único. Editora do Brasil
S/A. Ensino de 1º grau. 1997. p. 158.
Entendendo a crônica:
01
– No primeiro parágrafo, qual é a principal ironia ou contraste estabelecido
pelo cronista ao listar os elementos que serão "reduzidos a números"
pelo governo?
A ironia
principal é a equiparação entre seres humanos, animais e plantações. Ao afirmar
que "Bois, mulheres e algodoeiros serão reduzidos a números," o
cronista ridiculariza a visão puramente estatística do governo, que trata a
complexidade da vida (mulheres) e a natureza (bois, algodoeiros) com a mesma
frieza quantitativa.
02
– Qual é a pergunta feita pelo recenseador ("Quantos são aqui?") e
por que o cronista a classifica como uma "Pergunta triste"?
O cronista a
classifica como uma "Pergunta triste" porque, em vez de obter uma
resposta numérica simples, a indagação abre espaço para revelações de abandono,
perda e solidão. As respostas subsequentes não falam apenas de números, mas de
ausências ("havia mulheres e criancinhas," "o amigo se
foi"), frustrações e vazios existenciais.
03
– Cite dois exemplos de respostas dadas ao recenseador que demonstram ironia ou
sarcasmo por parte dos entrevistados.
Dois exemplos
são:
O homem que lista
"mulher, este papagaio, esta sogra e algumas baratas" e
sarcasticamente convida: "Querendo levar todos, é favor." (Sugerindo
o desejo de se livrar de alguns desses "membros" do agregado
familiar).
O homem que descreve o
cachorro Lord, que "morde como um funcionário público" (uma crítica
humorística à rigidez e à agressividade burocrática).
04
– Como a saudade é retratada em uma das respostas, mostrando que o número real
de habitantes não corresponde ao número estatístico?
A saudade é retratada na
resposta "Dois, cidadão, somos dois. Naturalmente o sr. não a vê. Mas ela
está aqui, está, está! A sua saudade jamais sairá de meu quarto e de meu
peito!" A saudade é personificada, tornando a pessoa ausente uma presença
real e permanente no ambiente do eu lírico, alterando a contagem fria do
recenseamento.
05
– No sexto parágrafo, o homem diz: "Aqui somos eu e ela, só nós dois. Mas
nós dois somos apenas um. Breve, seremos três. Oh!" O que a afirmação
"nós dois somos apenas um" sugere?
Sugere a unidade
afetiva e a fusão completa do casal apaixonado. No contexto do amor romântico,
"nós dois somos apenas um" expressa uma identidade indivisível, que é
mais importante do que a contagem individual do censo. O "Breve, seremos
três" sugere, com alegria, a chegada de um filho.
06
– O que o último entrevistado (João Lourenço) revela sobre sua percepção do
recenseamento, e como ele expressa seu desabafo pessoal?
João Lourenço
inicialmente confunde o recenseamento com um cobrador ("Hoje não é
possível, não há dinheiro nenhum"). Ao perceber o erro, ele usa o
recenseador como um receptor para um longo desabafo, classificando-se como
"idiota" e sua idade como "da pedra lascada." Ele transfere
a função do censo (quantificar) para a função catártica (desabafar frustrações
pessoais e familiares).
07
– De que forma o tratamento que Rubem Braga dá ao tema
"Recenseamento" ilustra uma característica fundamental da crônica?
A crônica ilustra
a característica de transformar um fato cotidiano e prosaico (o censo) em uma
reflexão poética e humana. Rubem Braga utiliza a moldura do recenseamento para
transcender o dado estatístico e acessar a subjetividade, o humor, a dor e os
dramas ocultos por trás dos números, capturando a essência da vida em
sociedade.
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