História: Quincas Borba cap. XXVIII – Fragmento
Machado de Assis
[...]
— Quincas Borba! exclamou, abrindo-lhe
a porta.
O cão atirou-se fora. Que alegria! que
entusiasmo! que saltos em volta do amo! chega a lamber-lhe a mão de contente,
mas Rubião dá-lhe um tabefe, que lhe dói; ele recua um pouco, triste, com a
cauda entre as pernas; depois o senhor dá um estalinho com os dedos, e ei-lo
que volta novamente com a mesma alegria.

— Sossega! sossega!
“Quincas Borba” vai atrás dele pelo
jardim fora, contorna a casa, ora andando, ora aos saltos. Saboreia a
liberdade, mas não perde o amo de vista. Aqui fareja, ali pára a coçar uma
orelha, acolá cata uma pulga na barriga, mas de um salto galga o espaço e o
tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. Parece-lhe que
Rubião não pensa em outra coisa, que anda agora de um lado para outro unicamente
para fazê-lo andar também, e recuperar o tempo em que esteve retido. Quando
Rubião estaca, ele olha para cima, à espera; naturalmente, cuida dele; é algum
projeto, saírem juntos ou coisa assim agradável. Não lhe lembra nunca a
possibilidade de um pontapé ou de um tabefe. Tem o sentimento da confiança, e
muito curta a memória das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe impressos
e fixos, por mais distraídos que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer
que o é.
[...]
Quincas Borba – Coleção
Romances Brasileiros. São Paulo, Edigraf, s/d.
Fonte: Português – 1º
grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia
Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 173.
Entendendo a história:
01
– Como o narrador descreve a reação inicial do cão Quincas Borba ao ser
libertado por Rubião?
A reação do cão é
de extrema euforia e dedicação. O narrador usa uma série de exclamações para
descrever seu entusiasmo: "Que alegria! que entusiasmo! que saltos em
volta do amo!". O cão se atira para fora e chega a lamber a mão de Rubião,
expressando total felicidade pela liberdade e reencontro.
02
– O que a atitude de Rubião (dar um tabefe no cão) e a subsequente reação de
Quincas Borba revelam sobre a dinâmica de poder e afeto na relação entre eles?
A atitude revela
uma dinâmica de poder abusiva por parte de Rubião e uma submissão incondicional
do cão. Apesar de sentir dor e tristeza ("recua um pouco, triste, com a
cauda entre as pernas"), a alegria e a lealdade de Quincas Borba são
imediatamente restauradas com um simples gesto (um "estalinho com os
dedos"). Isso mostra a curta memória das pancadas do animal e a fixação na
possibilidade de afeto.
03
– O trecho afirma que o cão "não lhe lembra nunca a possibilidade de um
pontapé ou de um tabefe." O que, segundo o narrador, sustenta essa
confiança e esquecimento da dor?
A confiança do
cão é sustentada pela sua memória seletiva e pelo seu desejo de ser amado. O
narrador explica que o cão tem "muito curta a memória das pancadas,"
enquanto "os afagos ficam-lhe impressos e fixos". Ele "Gosta de
ser amado" e se contenta de crer que o é, mesmo que essa crença seja
baseada em afagos "distraídos" e na simples atenção do amo.
04
– No jardim, o narrador descreve as ações de Quincas Borba como ora
"fareja," ora "coçar uma orelha," ora "cata uma
pulga." Como o cão equilibra sua liberdade momentânea com a lealdade ao
seu dono?
O cão saboreia a
liberdade ("Saboreia a liberdade"), dedicando-se a atividades caninas
normais, mas nunca perde Rubião de vista ("não perde o amo de
vista"). Ele usa a expressão "de um salto galga o espaço e o tempo
perdido" para indicar que, após suas distrações, ele rapidamente anula a
distância e volta a se "coser outra vez com os calcanhares do
senhor," priorizando a proximidade e o acompanhamento do amo.
05
– A que tipo de característica humana a descrição da memória e da confiança de
Quincas Borba pode estar fazendo alusão, considerando o estilo de Machado de
Assis?
A descrição alude
ironicamente à capacidade humana de autoengano, de idealização e de fixação em
pequenas migalhas de afeto, mesmo diante do abuso ou da indiferença. Machado de
Assis frequentemente usa a perspectiva ingênua ou limitada de seus personagens
para criticar a vontade de crer e a tendência a esquecer o sofrimento em troca
da ilusão de ser amado ou de pertencer a algo, como um mecanismo de defesa
psicológico ou de submissão social.
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