Crônica: Uni, duni, tê
Rubem Penz
Nunca me dei bem com os números.
Primeiro, apanhei nas aulas de matemática durante toda a vida escolar. Agora,
sofro para decorar telefones, senhas, datas e, principalmente, apartamentos.
Batata: chego diante de um prédio, sei que é ali o endereço em que devo ir, mas
não decoro o bendito número do apartamento.
Quando há porteiros, o problema pode
ser sanado com uma pequena dose de constrangimento. Digo o nome do morador,
confesso que esqueci o apartamento dele, recebo um pouco de boa vontade e
consigo ser anunciado. Pior é quando fico diante daquele painel de botões,
todos com os mesmos números: 101, 102, 103 etc. Na base da sorte, lembro o
andar. Também parto para deduções: é nos fundos e, por convenção, os primeiros
números contemplam os apartamentos de frente. Logo, é 505, 506, 507 ou 508.
Uni, duni, tê…
A violência urbana entra como fator
complicador. Quando escolho o apartamento na base do palpite, e erro, quem está
ao interfone fica muito desconfiado. Menos quando é uma idosa, que abre a porta
sem medo. Mas aí corro outro risco: estou dentro do prédio, mas ainda não sei
qual é o apartamento. Em edifícios antigos tudo é mais fácil – as portas já
estão repletas de diferenças. Ou tem uma samambaia, ou um vaso com espada de
Espada de São Jorge, ou o modelo da grade é diferente, ou tem aquele capacho
peculiar… Pior são os edifícios novos e seu padrão rígido de design, tão mais
harmônico quanto impessoal. Aí é torcer para que o amigo seja judeu e tenha à
direita de sua porta o Mezuzá.
Minha redenção chegou em forma de
tecnologia: telefone celular. Em sua agenda, posso colocar nome, números e
endereço. Ou basta ligar para o morador e avisar que estou ali na rua, já
defronte ao prédio. O celular ainda conta com uma vantagem adicional, que é a
de não precisar mais decorar o número do sujeito. Digito o nome e ele já sabe
(agora mesmo que desaprendi os telefones dos amigos). Se eu perder o aparelho
ou o chip, estou frito.
Em tudo sou diferente dos profissionais
de portaria. Para eles, decorar os números é questão de qualidade. Os
apartamentos passam a ser uma espécie de sobrenome dos moradores. Se o
jardineiro perguntar quem entrou agora mesmo, o porteiro responderá que foi o
seu João do 403. Quem? O esposo da dona Maria Rita do 403. Ah, o pai do Julinho
do 403! Nem Cunha, nem Santos, nem da Silva. A família (incluindo o cachorro)
passa a ser os do 403. E não apenas para consumo interno: se um prestador de serviços
perguntar quem é o síndico, dirão o nome do seu Ivo do 607.
Saudade do tempo em que a maioria das
pessoas com quem eu me relacionava habitava casas localizadas em bairros.
Bastava ir uma única vez e já estaria decorado. E, se fosse o caso de referir,
dizia: o Roberto, da casa verde, de esquina. Ou aquela do telhado alto, com
janelas brancas, muro marrom. Nada de números, apenas imagens. Muito mais
humano! Afinal, quando estou diante do porteiro especulando um apartamento e o
morador está em dúvida de quem seja eu, ele não informa o RG. Sempre escuto: é
um rapaz magrinho, branquinho, assim meio calvo…
PENZ, Rubem. Uni, duni, tê. Rubem: Revista da Crônica – Notícias,
entrevistas, resenhas e textos feitos ao rés-do-chão. Publicado em 17 out. 2014.
Disponível em: https://rubem.wordpress.com/2014/10/17/uni-duni-te-rubem-penz. Acesso em: 8 out. 2015.
Fonte: Língua
Portuguesa. Se liga na língua – Literatura – Produção de texto – Linguagem.
Wilton Ormundo / Cristiane Siniscalchi. 1 Ensino Médio. Ed. Moderna. 1ª edição.
São Paulo, 2016. p. 225-227.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com a crônica,
qual o significado da palavra “Mezuza”?
Pequeno rolo com
uma inscrição religiosa, colocado em um estojo e fixado no batente direito das
casas de famílias judaicas.
02 – Que recurso, no primeiro parágrafo,
marca a aproximação pessoal do cronista em relação ao assunto?
O cronista mostra
sua relação pessoal com o assunto, lembrando suas dificuldades com a matemática
quando era estudante. Utiliza, portanto, uma experiência particular.
03 – Que imagem do cronista o
leitor constrói, estimulado pelo tom de lamentação desse parágrafo? Tal imagem
distancia ou aproxima o cronista do leitor?
Ao mostrar sua confusão, o cronista
parece ser uma pessoa comum, como tantas outras que se atrapalham com os
números, e isso o aproxima do leitor.
04 – Que palavra, típica das
construções faladas, o narrador usou para relacionar períodos nesse parágrafo?
“Aí”.
05 – Releia o primeiro
parágrafo da crônica.
a) Quais são as expressões populares empregada pelo cronista?
“Batata” e “bendito”, usado em situações que envolvem ironia.
b) Que efeito o cronista obtêm ao utilizar esse tipo de expressão?
As expressões populares tornam o discurso menos formal, mais próximo
dos bate-papos cotidianos.
c) As expressões identificadas marcam variedades linguísticas de grupos sociais diferentes. Alguma delas faz parte da linguagem que você usa no dia a dia?
Resposta pessoal do aluno.
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