Crônica: Álvaro, me adiciona
Gregório Duvivier
“Nunca conheci quem tivesse levado
porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” Espanta que
Álvaro de Campos tenha dito isso antes do advento das redes sociais. O
heterônimo parece estar falando da minha timeline: “Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”.
Todo post é autoelogioso. Não se deixe
enganar. Talvez você pense o contrário: meu Facebook só tem gente reclamando da
vida. Olhe de novo. Por trás de cada reclamação, de cada protesto, de cada
autocrítica, perceba, camufladinha, a vontade de parecer melhor que o resto do
mundo.
“Humblebrag” é uma palavra que faz
falta em português. Composta pela junção das palavras humble (humilde) e brag
(gabar-se), seria algo como a gabação modesta. Em vez de simplesmente gabar-se:
“Ganhei um prêmio de melhor ator no Festival de Gramado”, você diz: “O Festival
de Gramado está muito decadente. Para vocês terem uma ideia, me deram um prêmio
de melhor ator”. Ou então: “Pessoal, moro num apartamento mínimo! Por favor, parem
de me dar prêmios, não tenho mais onde guardá-los. Grato.”
O “humblebragging” pode tomar muitas
formas. “Tenho um defeito terrível. Sou perfeccionista.” Ou então: “Tenho uma
falha imperdoável. Sou sincero demais”. Quero ver alguém falar a verdade:
“Tenho um defeito: só penso em mim mesmo, o que faz com que eu seja pouquíssimo
confiável – além de ter uma higiene deplorável.”
Não menos sutil é o elogio-bumerangue.
Você começa falando bem de alguém. Ali, no meio do elogio alheio, você encaixa
uma menção a si mesmo, disfarçadinha. “O Rafa é muito humano, parceiro,
sincero. Se não fosse ele, eu nunca teria chegado onde cheguei, e criado o
maior canal do YouTube brasileiro. Obrigado, Rafa. Obrigado.”
O elogio-bumerangue tem uma subdivisão
especialmente macabra: o elogio bumerangue-post-mortem, no qual você aproveita
os holofotes gerados pela morte de alguém para chamar atenção para si (às vezes
até atribuindo palavras ao defunto). “O Zé era um gênio. Ainda por cima muito
generoso. Foi a primeira pessoa a perceber o meu talento como ator. Um dia me
disse: Gregório, você é o melhor ator da sua geração. Obrigado, Zé. Obrigado.”
Atenção: se todo post é vaidoso, toda
coluna também. Percebam o uso de palavras em inglês, a citação a Fernando
Pessoa. Tudo o que eu mais quero é que vocês me achem o máximo. “Então sou só
eu que sou vil e errôneo nessa terra?” Não, Álvaro. Me adiciona.
DUVIVIER, Gregório.
Publicada em: 4 maio 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2015/05/1624271-alvaro-me-adiciona.shtml.
Acesso em: 19 ago. 2015.
Fonte: Língua
Portuguesa. Se liga na língua – Literatura – Produção de texto – Linguagem.
Wilton Ormundo / Cristiane Siniscalchi. 1 Ensino Médio. Ed. Moderna. 1ª edição.
São Paulo, 2016. p. 292-293.
Entendendo a crônica:
01 – O texto revela que o
cronista é leitor de textos diversos. Quais tipos de texto foram citados?
Textos literários
e textos que circulam nas redes sociais.
02 – Quem é Álvaro de que fala
o título? Faça uma breve pesquisa para entender por que o cronista se refere a
ele como “heterônimo”.
O cronista refere-se
a Álvaro de Campos, um dos heterônimos do poeta português Fernando Pessoa
(1888-1935).
03 – Em que parte do texto o
cronista dá ao leitor que desconhece Álvaro uma pista de sua identidade? Ela
lhe parece suficiente? Por quê?
Na conclusão, o
cronista afirma ter citado Fernando Pessoa, o que pode ajudar alguns leitores a
lembrar do autor e de seus heterônimos. Um leitor que realmente desconheça essa
informação tenderá a ficar confuso.
04 – Releia os versos citados
no primeiro parágrafo. Que relação existe entre eles e o assunto da crônica?
O cronista
reclama do fato de, nas redes sociais, as pessoas sempre destacarem seus
aspectos positivos, mentindo sobre suas fragilidades ou omitindo-as.
05 – Em que contexto deve ser
entendido o pedido “me adiciona”?
Nas redes
sociais, adicionar significa aceitar o outro como parte de seus contatos; o
cronista quer ser “adicionado” por Álvaro porque compartilha sua visão de
mundo.
06 – A palavra humblebragging
não pertence à língua portuguesa. Quais outros termos também são
estrangeirismos? A presença deles no código usado para a transmissão da
mensagem a prejudica? Por quê?
São citados post,
timeline e os nomes próprios Facebook e Youtube. Embora não façam parte da
língua portuguesa, em geral não prejudicam a comunicação por terem um uso já
popular. O termo humblebragging, único possivelmente desconhecido, é explicado
pelo autor.
07 – Compare a formação das
palavras humblebragging e elogio-bumerangue. Os dois substantivos compostos
foram formados com a junção de dois termos. Que relação existe entre as duas
palavras que formam cada um dos termos?
As palavras
formadoras de humblebragging – humble (“humilde”) e bragging (“gabação”) – têm
uma relação antitética, isto é, são opostas. Em elogio-bumerangue há uma
relação de especificação: bumerangue, uma peça de arremesso que retorna ao
lançador, qualifica elogio.
08 – A intertextualidade e a
citação de termos estrangeiros são empregadas como argumentos no último
parágrafo da crônica. Que ideia elas provam? Que efeito essa ideia provoca na
crônica?
As palavras
provam que o cronista também procura criar uma imagem positiva de si mesmo, o
que cria um efeito de humor, já que esse era o alvo da crítica.
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