Romance: Rumo ao sol
Tich Nhât Hanh
T’ô para de tocar flauta. Ela sabe que começou a chorar. Uma lágrima corre ao longo da face, contorna os lábios e penetra na boca: ela sente o gosto salgado desta lágrima. A menina coloca a flauta no colo, levanta o canto de sua camisa bába e enxuga as lágrimas. Ela sorri para ela mesma.
Os bosques são tão frescos de manhã.
T’ô escuta o murmúrio das folhas que tremulam e que acenam para ela. Sabe que,
se não fosse cega, teria apenas de erguer os olhos a fim de ver as folhas que
tremulam e que acenam para ela. É primavera: as folhas estão verdes e amarelas
e o sol de abril, passando através delas, passando através delas, chega aos
olhos de T’ô. Sabe também que, embora cega, o raio de sol suave e benfazejo de
certo modo consegue atingir seus olhos. Entretanto, parece que ela realmente
esqueceu como as folhas podem ser verdes desde que ficou cega, há seis anos.
Ela pode também ter esquecido os traços e expressões exatas do rosto do pai,
pois fazem agora dois anos que ele morreu.
T’ô só se lembra claramente dos traços
da mãe, porque cada noite, antes de dormir, levanta a mão e toca seu rosto. Ela
passa a mão neste rosto como se quisesse descobrir e redescobrir seus traços,
como se quisesse aprender ainda e sempre a mesma lição para nunca esquecer uma
só linha do rosto daquela que lhe é a pessoa mais querida do mundo. Ela
descobriu também que os traços do rosto da mãe se enrugavam à medida que
passavam os dias.
T’ô mal tem nove anos, mas toca flauta muito
bem. Foi o pai que lhe ensinou como tocar. Ele era lenhador e viviam na orla da
floresta. T’ô era uma menininha feliz. La à escola na Aldeia de Cima. Cada
manhã, saía com o pai e se despediam no ponto onde a estrada da montanha se
bifurcava no pé da colina. O pai de T’ô, com a machadinha no ombro, continuava
a subir rumo à floresta mais densa, enquanto T’ô seguia uma senda familiar e
atravessava duas outras colinas, antes de chegar finalmente à escola da Aldeia.
Debaixo do braço, carregava uma pasta de madeira que continha seu caderno, sua
caneta, lápis e borracha e uma flauta de bambu que ela mesma tinha feito,
ajudada pelo pai. [...]
T’ô voltava da escola lá pelas duas
horas. A mãe lhe servia o almoço. Às quatro, o pai aparecia com um carregamento
de lenha nas costa. [...].
A casa deles, pequena e de madeira, era
construída no flanco da colina, abaixo da floresta. A cerca de trezentos metros
corria um riacho que saía da parte de baixo da colina. T’ô gostava muito de
brincar à beira deste riacho. Algumas vezes colhia estranhas e belas flores do
campo das quais ignorava os nomes.
Foi então que o pai de T’ô morreu. Ele
tinha sido obrigado a partir para a guerra. Esteve soldado durante menos de um
ano antes de ser morto. Quando chegou a notícia, a mãe de T’ô se desesperou e
chorou como nunca havia feito antes. T’ô só tinha sete anos e não sabia todo o
significado da morte. Mas quando viu a sua mãe rolar na cama soltando gritos
desesperados, ela também sentiu a mesma dor, ajoelhou-se e abraçou. Mãe e filha
amparavam-se mutuamente. Foi então, só então, que T’ô se deu conta de que o pai
nunca mais voltaria. Ele estava morto. Tinha morrido como aquele passarinho que
um dia ela tinha visto na margem do riacho. Ele não mexia mais: jazia inerte,
não ouvindo e nem vendo mais nada. O passarinho tinha voltado a ser terra.
Lembrando-se do passarinho, T’ô pensou que agora sabia o que tinha acontecido
ao pai e ficou muito triste. E esta tristeza espalhou-se no seu coração e no
seu espírito. Seu pai tinha morrido: tinha se decomposto para virar solo,
terra. Nunca mais voltaria de tarde com a carga de lenha. Não iria mais brincar
com ela na orla da floresta ou na margem do riacho. Nunca mais falaria com ela,
não a levantaria mais nos braços, não a olharia mais nos olhos. T’ô estava
muito triste. E quanto mais passavam os dias, mais profunda ficava sua
tristeza.
[...]
E era enquanto tocava flauta que T’ô
sentia uma profunda tristeza. Essa tristeza era como um caranguejo, com fortes
pinças que se agarravam nela e a feriam. Após um momento, parava de tocar as
músicas que o pai lhe tinha ensinado e inventava outras. Com o correr do tempo,
inventava cada vez mis músicas. Era reconfortante tocar novas melodias. Seu
coração se libertava das garras do caranguejo. De fato, às vezes ela chorava
quando estava só, mas as lágrimas a tornavam mais leve e a aliviavam. Ela imaginava
que suas lágrimas descarregavam seu coração, pois quanto mais chorava, mais
leve ele se tornava e menos dor ela sentia.
Tich Nhât Hanh.
Flamboyant em chama. Petrópolis: Vozes, 1989.
Fonte: Livro –
Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º ano – Ensino Fundamental – IBEP 3ª
edição São Paulo 201 p. 46-9.
Entendendo o romance:
01 – Que sentimentos esse texto despertou em você?
Resposta pessoal do aluno.
02 – Como você imagina T’ô? O que o texto diz dobre ela?
T’ô era uma
menina com aproximadamente 9 anos, cega, que tocava flauta muito bem, gostava
de brincar à beira de um riacho e colher flores. Sofreu muito com a morte do
pai. Reconfortava-se tocando flauta, e inventar músicas fazia com que se
sentisse livre da tristeza.
03 – Como é o lugar onde se
passa a história? Descreva-o.
A história se passa no bosque de uma
colina, um local próximo a uma floresta.
04 – Qual foi a causa da
morte do pai de T’ô?
Ele morreu na
guerra.
05 – Transcreva do texto um
trecho descritivo.
Sugestão: “Debaixo do braço, carregava
uma pasta de madeira que continha seu caderno, sua caneta, lápis e borracha e
uma flauta de bambu [...]”; “A casa deles, pequena e de madeira, era construída
no flanco da colina, abaixo da floresta. A cerca de trezentos metros corria um
riacho que saía da parte de baixo da colina.”
06 – Explique o sentido das
frases a seguir.
a) “Essa tristeza era como um caranguejo, com fortes pinças que se agarravam nela e a feriam.”
O autor usa uma imagem para descrever a tristeza que agredia a
menina, provocando dor, assim como ocorre com as pinças do caranguejo agarrando
e ferindo. O fato de a tristeza estar agarrada a T’ô significa que a tristeza
permanecia sempre com ela, era constante.
b) “Seu coração se libertava das garras do caranguejo.”
A menina se desvencilhava da tristeza.
07 – Releia o trecho a
seguir.
“[...]T’ô se deu conta de que o pai
nunca mais voltaria. Ele estava morto. Tinha morrido como aquele passarinho que
um dia ela tinha visto na margem do riacho. Ele não mexia mais: jazia inerte,
não ouvindo e nem vendo mais nada. O passarinho tinha voltado a ser terra.”
a) A que T’ô compara a morte de seu pai?
À morte de um passarinho que um dia tinha visto na margem de um
riacho.
b) O que T’ô quis dizer ao fazer essa comparação?
T’ô quis dizer que o pai, assim como o passarinho, tinha deixado de
existir; agora “fazia parte da terra”, “não mexi mais; jazia inerte, não
ouvindo e nem vendo mais nada”.
08 – Que títulos você daria
para cada parágrafo do texto, considerando as ideias predominantes em cada um
deles?
a)
Parágrafo 1 – As
lágrimas de T’ô.
b)
Parágrafo 2 – Contato
com a natureza.
c)
Parágrafo 3 – Lembranças
da mãe.
d)
Parágrafo 4 – Dois
caminhos: para a escola, para o trabalho.
e)
Parágrafo 5 – Rotina
da tarde.
f)
Parágrafo 6 – O lugar
da casa.
g)
Parágrafo 7 – A morte
do pai.
h)
Parágrafo 8 – Tristeza
e conforto.
09 – Releia estes trechos do
texto.
Trecho
1
“A casa deles, pequena e de madeira,
era construída no flanco da colina, abaixo da floresta.”
Trecho 2
“Foi então, só então, que T’ô se deu
conta de que o pai nunca mais voltaria. Ele estava morto. Tinha morrido como
aquele passarinho que um dia ela tinha visto na margem do riacho. Ele não mexia
mais: jazia inerte, não ouvindo e nem vendo mais nada. O passarinho tinha
voltado a ser terra. Lembrando-se do passarinho, T’ô pensou que agora sabia o
que tinha acontecido ao pai e ficou muito triste.”
a) Sobre que assuntos o narrador fala nos trechos 1 e 2?
No trecho 1, sobre a casa de T’ô; no trecho 2, sobre a morte do pai
da menina.
b) Leia estas afirmações e identifique a que trechos elas correspondem.
I –
Em um dos trechos há uma comparação.
A afirmação corresponde ao trecho 2.
II –
Um dos trechos não apresenta nenhuma comparação.
A afirmação corresponde ao trecho 1.
c) Identifique a frase em que se estabelece a comparação e transcreva-a em seu caderno.
Tinha morrido como aquele passarinho que um dia ela tinha visto na
margens do riacho.
d) Que palavra é responsável pela comparação entre dois elementos diferentes?
A palavra como.
10 – Leia novamente um dos
exemplos citados, observando a palavra que estabelece a comparação.
A morte é como um filme que parou de repente.
·
Agora, observe a construção de outra frase
sem o uso do elemento comparativo.
A
morte é um filme que parou de repente.
a) É possível afirmar que nas duas frases a morte é comparada a um filme?
Sim.
b) Qual é a diferença entre as maneiras de fazer essa comparação?
Na primeira foi usado o elemento comparativo (como); na segunda não.
c) Por quais palavras do quadro a seguir é possível substituir a palavra como para realizar a comparação?
Semelhante a – tanto – que nem –
igual a – tal qual –
muito mais.
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