Crônica: Uma aula especial
Ana Maria Machado
[...]
-- Isabel, eu mostrei à turma o retrato
de sua bisavô e todo mundo começou a trazer retratos dos bisavós também. Então,
resolvemos fazer uma pesquisa sobre o tempo em que eles viveram. Vamos passar
algumas semanas estudando esse tempo, o final do século XX. Que é que você
acha?
Eu estava tão feliz de ter achado o
retrato de Bisa Bia que não conseguia achar nada para falar. Ainda mais agora,
com essa boa ideia, de ficar sabendo montes de coisas do tempo dela, ah! Ia ser
ótimo!... Foi me dando um nó na garganta, uma vontade de chorar de alegria, de
emoção, sei lá, nem consigo explicar. Aí, de repente, reparei que Vitor, o novo
aluno, também estava disfarçando e enxugando uma lágrima no canto do olho. Não
entendi por quê. Ainda bem que Dona Sônia não esperou minha resposta nem
reparou no choro do Vítor (que menino mais esquisito... será que ele nunca
ouviu falar que homem não chora?) e foi começando a aula, contando que havia
escravos no tempo da minha bisavó, que os escravos tinham donos, como se fossem
coisas, trabalhavam a vida inteira sem descanso, não tinham salário, não tinham
direitos, enfim, uma porção de coisas assim, algumas até que a gente já tinha
ouvido falar, mas nunca tinha reparado direito.
De repente, quando ela perguntou se
alguém tinha alguma dúvida, queria fazer uma pergunta ou algum comentário, o
Vítor levantou a mão e, ainda com um jeito bem emocionado, começou a falar:
-- Sabe, Dona Sônia, me deu um aperto
no coração quando a senhora começou a falar da bisavó dela, porque eu comecei a
pensar no meu avô e descobri que estou com muita vontade de falar dele. Posso?
-- Claro que pode, Vítor.
-- Vocês sabem que nós moramos muito
tempo fora do Brasil. Por isso, eu conheci pouco o meu avô, porque ele ficou
aqui. Mas o conheci muito bem. Quando nós fomos para o exílio, éramos muito
pequenos e não nos lembramos de quase nada. Mas ele foi lá nos visitar algumas
vezes. Depois, a gente sempre se escrevia, às vezes falava no telefone. E ele
morreu enquanto nós estávamos lá longe, nunca deu para a gente curtir o avô
direito, e isso dá muita saudade, muita tristeza, essa vontade de chorar, até
hoje.
Puxa! Ele enxugou outra lágrima! Não
tinha medo de que ninguém risse dele... Na mesma hora descobri que o Vítor era
o menino mais corajoso que eu já tinha conhecido. Tinha até coragem de chorar
na frente da turma toda!
Mas ele continuava:
-- Lembro-me de uma noite, quando nós
estávamos em Roma e ele tinha ido nos visitar. Era na véspera do embarque dele
de volta para o Brasil. Maria e eu queríamos viajar com ele, queríamos que
papai e mamãe também voltassem para a terra da gente, estávamos todos meio
tristes... Eu não entendia direito por que não podíamos voltar. Aí vovô
explicou que um dia íamos poder, mas falou que quem quer construir os tempos
novos geralmente não é compreendido, é perseguido e sofre muito, e era isso que
estava acontecendo com meus pais. Aí ele contou muita coisa da História do
Brasil e do mundo. Disse que no tempo dele já tinha sido melhor do que no tempo
do pai dele, não tinha mais escravos, os trabalhadores já recebiam salário, mas
ele se lembrava de que, quando era pequeno, na cidade dele (que era cheia de
fábricas), os trabalhadores ficavam nas máquinas catorze ou dezesseis horas por
dia – nem lembro mais – e não podiam fazer greve também, criança pequena
trabalhava, uma porção de coisas assim.
Eu não lembro direito, porque isso tudo
ficou misturado na minha cabeça, quer dizer, os detalhes da conversa, quando
foi que cada coisa foi mudando. Conversamos muito sobre isso e não dá para
lembrar tudo. Mas nunca vou esquecer o brilho dos olhos do meu avô quando me
falava dessas coisas. Nem vou esquecer também que essa foi a primeira vez que
eu vi meu pai chorar, enquanto escutava o papo do vovô.
Até na gente, que não era da família
nem nada, estava dando uma vontade de chorar. Era só ouvir o jeito emocionado
do Vítor contando essas coisas acontecidas há alguns anos numa noite fria, lá
longe do Brasil, no outro lado do mar, numa conversa com um velho que não
existia mais.
-- Nesse dia eu entendi que vovô ia
sempre existir dentro de mim – continuava ele, como se estivesse lendo meus
pensamentos.
-- Depois de muito papo, vovô disse que
cada vez nós tínhamos que fazer força para melhorar, para deixar um mundo
melhor para nossos filhos, como papai fazia no trabalho de jornalista, e como
mamãe fazia dando as aulas dela. Disse que estava muito orgulhoso dos meus pais
e que o exílio estava sendo uma espécie de preço que a gente estava pagando par
que o futuro fosse melhor, que havia muita gente pagando esse preço e outros
preços mais duros ainda, mas que ia valer a pena... Agora, quando a gente
estava falando da bisavó da Isabel, fiquei com saudade do meu avô, com pena de
pensar que ele morreu antes da festa da nossa volta. Mas eu vi também como, em
algumas coisas, nosso tempo já está sendo melhor do que o dele. E fiquei
pensando nisso: como vai ser o mundo dos nossos netos? E dos nossos bisnetos?
Acho que a gente podia pesquisar isso também. Era isso o que eu queria dizer.
Disse e sentou.
MACHADO, Ana Maria.
Bisa Bia, Bisa Bel. 4. ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 2000. Adaptação.
Fonte: Língua Portuguesa –
Coleção Mais Cores – 5° ano – 1ª ed. Curitiba 2012 – Ed. Positivo p. 31-5.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto,
quais as informações abaixo.
a) Sobrenome da autora do texto: Machado.
b) Nome da personagem narradora: Isabel.
c) Local onde ocorre a história: Escola.
d) Dois outros personagens dessa história: Vítor e Sônia.
e) Local do exílio da família de Vítor: Roma.
02 – Leia a opinião de
Isabel sobre Vítor.
“[...] (que menino mais esquisito...
será que ele nunca ouviu falar que homem não chora)?”
a) Você concorda com a opinião de Isabel? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
b) Por que esse trecho do texto aparece entre parênteses?
Porque tratasse de um pensamento da personagem.
03 – No decorrer do texto,
Isabel muda de opinião a respeito do seu colega de turma.
“Na
mesma hora descobri que o Vítor era o menino mais corajoso que eu já tinha
conhecido.” Que motivo levou Isabel a modificar sua opinião?
Porque ele chorou na frente da turma e,
isto é um ato corajoso.
04 – Vítor comenta com seus
colegas que, quando pequeno, ele e sua família estiveram no exílio.
a) Procure no dicionário o significado da palavra em destaque.
Degredo, expatriação, desterro, expulsão de sua pátria.
b) Discuta com seus colegas e professor sobre o significado da palavra exílio.
Resposta pessoal do aluno.
c) Você tem conhecimento de alguém que tenha se exilado por algum motivo? Comente essa questão com seus colegas.
Resposta pessoal do aluno.
05 – Vitor tem opinião
formada a respeito do tempo em que ele vive.
“[...]
fiquei com saudade do meu avô, com pena de pensar que ele morreu antes da festa
da nossa volta. Mas eu vi também como, em algumas coisas, nosso tempo já está
sendo melhor do que o dele.”. Converse com seus colegas sobre as questões a
seguir.
a) Você concorda com a opinião de Vítor sobre o tempo em que você está vivendo ser melhor que o de seus avós e bisavós? Em que sentido? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal do aluno.
b) O que precisa ser modificado para que o nosso país fique ainda melhor?
Resposta pessoal do aluno.
c) O que você pode fazer para que o Brasil se torne um país melhor no presente e no futuro?
Resposta pessoal do aluno.
06 – Dona Sônia começou a
aula contando como era o tempo em que vivia a bisavó de Isabel. Que fatos ela
relata a respeito dessa época no que se refere aos trabalhos e aos direitos
humanos?
Naquele tempo
havia escravos que tinham donos e trabalhavam sem receber e também não tinham
direito a nada.
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