Crônica: BRINCADEIRA
Luís Fernando Veríssimo
Começou como uma brincadeira. Telefonou
para um conhecido e disse:
-- Eu sei de tudo.
Depois de um silêncio, o outro disse:
-- Como é que você soube?
-- Não interessa. Sei de tudo.
-- Me faz um favor. Não espalha.
-- Vou pensar.
-- Por amor de Deus.
-- Está bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu que tinha poder sobre as
pessoas.
-- Sei de tudo.
-- Co-como?
--
Sei de tudo.
-- Tudo o quê?
-- Você sabe.
-- Mas é impossível. Como é que você
descobriu?
A reação das pessoas variava. Algumas
perguntavam em seguida:
-- Alguém mais sabe?
-- Outras se tornavam agressivas:
-- Está bem, você sabe. E daí?
-- Daí nada. Só queria que você
soubesse que eu sei.
-- Se você contar para alguém, eu...
-- Depende de você.
-- De mim, como?
-- Se você andar na linha, eu não
conto.
-- Certo
Uma vez, parecia ter encontrado um
inocente.
-- Eu sei de tudo.
-- Tudo o quê?
-- Você sabe.
-- Não sei. O que é que você sabe?
-- Não se faça de inocente.
-- Mas eu realmente não sei.
-- Vem com essa.
-- Você não sabe de nada.
-- Ah, quer dizer que existe alguma
coisa pra saber, mas eu é que não sei o que é?
-- Não existe nada.
-- Olha que eu vou espalhar...
-- Pode espalhar que é mentira.
-- Como é que você sabe o que eu vou
espalhar?
-- Qualquer coisa que você espalhar
será mentira.
-- Está bem. Vou espalhar.
Mas dali a pouco veio um
telefonema.
-- Escute. Estive pensando melhor. Não
espalha nada sobre aquilo.
-- Aquilo o quê?
-- Você sabe.
Passou a ser temido e respeitado. Volta
e meia alguém se aproximava dele e sussurrava:
-- Você contou pra alguém?
-- Ainda não.
-- Puxa. Obrigado.
Com o tempo, ganhou uma reputação. Era
de confiança. Um dia, foi procurado por um amigo com uma oferta de emprego. O
salário era enorme.
-- Por que eu? – quis saber.
-- A posição é de muita
responsabilidade – disse o amigo. – Recomendei você.
--
Por quê?
-- Pela sua discrição.
Subiu na vida. Dele se dizia que sabia
tudo sobre todos mas nunca abria a boca para falar de ninguém. Além de
bem-informado, um gentleman. Até que recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa
que disse:
--
Sei de tudo.
-- Co-como?
-- Sei de tudo.
-- Tudo o quê?
-- Você sabe.
Resolveu desaparecer. Mudou-se de
cidade. Os amigos estranharam o seu desaparecimento repentino. Investigaram. O
que ele estaria tramando? Finalmente foi descoberto numa praia distante. Os
vizinhos contam que uma noite vieram muitos carros e cercaram a casa. Várias
pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que a voz que
se ouvia era a dele, gritando:
-- Era brincadeira! Era brincadeira!
Foi descoberto de manhã, assassinado. O
crime nunca foi desvendado. Mas as pessoas que o conheciam não têm dúvidas
sobre o motivo.
Sabia demais.
Luís Fernando
Veríssimo. Comédias da Vida Privada. Porto Alegre: L&PM, 1995, p.189-91.
Fonte: Livro- PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R.
Cereja/Thereza C. Magalhães – 7ª Série – Atual Editora -2002 – p. 04-07.
Entendendo a crônica:
01 – Todo texto narrativo
apresenta uma personagem principal, à qual se dá o nome de protagonista. Quando já uma personagem que se opõe às ações e
aos interesses do protagonista, ela é chamada de antagonista. No início do texto, vemos que o protagonista
“Descobriu que tinha poder sobre as pessoas”.
a)
O que as pessoas temiam?
Que seus segredos fossem descobertos.
b)
Qual dos itens seguintes traduz o tipo de
poder que supostamente o protagonista tem?
( ) poder econômico
( ) poder político
(X) poder da informação.
c)
Quais das frases abaixo confirmam sua
resposta anterior?
( ) “Sei de tudo”.
(X) “Daí nada. Só queria que você soubesse que eu
sei.”.
(X) “Se você andar na linha, eu não conto.”
02 – Procure no dicionário o
significado da palavra impostor.
Impostor é aquele que quer passar pelo
que não é.
03 – De acordo com a
definição acima, você diria que o texto narra a história de um impostor? Por
quê?
Sim, porque o
protagonista finge saber o que não sabe.
04 – Há, a seguir, três
falas de pessoas a quem a personagem central disse “saber de tudo”.
“–
Me faz um favor. Não espalha”.
“– Alguém mais sabe?”
“– Escute. Estive pensando melhor. Não
espalhe nada sobre aquilo.”
Compare essas frases e conclua: mais do
que a própria verdade, o que de fato preocupa as pessoas?
O que os outros
vão pensar e dizer delas.
05 – Graças ao seu “silêncio”,
o protagonista ocupa cargos de confiança e “sobe na vida”. Até que um dia as
coisas mudam.
a)
Qual dos ditos populares a seguir traduz a
nova situação vivida pelo protagonista.
( ) Antes tarde do que nunca.
(X) O feitiço virou contra o feiticeiro.
( ) Os últimos serão os primeiros.
b)
No caso das vítimas, desconhecemos o segredo
que elas guardavam. Contudo, no caso da protagonista, sabemos qual é o seu
segredo. O que supostamente é o “tudo” mencionado pela “voz misteriosa”?
Que ele, na verdade, não sabe de nada.
c)
O protagonista tem poder sobre as
demais pessoas porque supostamente tem informações sigilosas sobre elas.
Contudo, a partir do momento em que ele se torna vítima de sua própria
“brincadeira”, quem passa a dominar quem?
A pessoa que diz conhecer o segredo do protagonista passa a ter
poder sobre ele e, indiretamente, sobre todos.
06 – Assustado, o
protagonista se esconde. Depois de encontrado numa casa de praia, é assassinado.
Levante hipóteses:
a)
Quem teria matado?
Provavelmente, uma de suas vítimas.
b)
O que o assassino provavelmente estaria
pensando sobre o desaparecimento do impostor, a ponto de querer mata-lo?
Que o impostor estava armando algum plano que o comprometesse.
c)
Por que o protagonista foi morto?
Por precaução por parte do assassino. Provavelmente uma de suas
vítimas estava envolvida com graves crimes e não quis ser chantageada ou correr
riscos.
d)
Na verdade, antes do assassinato, quem
controlava quem?
Não apenas o impostor controla suas vítimas, mas também as vítimas
(como é o caso do assassino) controlavam os passos do impostor.
07 – O texto não revela o
nome de nenhuma personagem. Considerando que essa história narra uma trama que
joga com informações e poder, haveria algum motivo para se ocultar o nome das
personagens?
Sim, a falta de
nomes sugere chantagem e segredo entre as vítimas e o protagonista.
08 – Nas frases finais do
texto: “As pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo. Sabia demais”.
Há uma ironia. Por quê?
Porque, desde o
início, o protagonista não sabia de nada, mas sua “brincadeira” o levou à
morte.
09 – Quais dos itens seguintes,
sintetizam as ideias principais do texto?
a)
Ter informações exclusivas equivale
a ter poder sobre as pessoas.
b)
Melhor do que guardar segredos é não ter
informações.
c)
As pessoas geralmente guardam algum
tipo de segredo que as comprometem socialmente.
d)
A sociedade se organiza a partir de
um jogo de aparências, de falsos papéis sociais; nesse jogo, a aparência vale
mais do que a verdade.
10 – Apesar de articular
elementos como poder, crime e crítica social, “Brincadeira” é um texto de
humor. Levante hipóteses: Por que o texto diverte?
Porque, na
condição de leitores, conhecemos a verdade e achamos graça do poder que têm as
palavras e da forma como as pessoas são manipuladas por outras, apenas porque
se sentem culpadas por algo que fizeram.
O que o protagonista ganhou com seu silêncio?
ResponderExcluirComo no texto diz,ele foi oferecido a empregos com altos salários
ExcluirMUITO BOAS AS HIPÓTESES DE INTERPRETAÇÃO!
ResponderExcluirMUITO BOAS AS HIPÓTESES DE INTERPRETAÇÃO!
ResponderExcluirObrigada gostei
ResponderExcluirO narrador conta, no início do texto, que o personagem principal “Descobriu que tinha poder sobre as pessoas”. Sobre isso, é CORRETO afirmar:
ResponderExcluirAs pessoas tinham a certeza de que era tudo uma farsa.
As pessoas temiam que seus segredos fossem revelados a desconhecidos.
As pessoas temiam que seus segredos fossem descobertos.
As pessoas sabiam que se tratava de uma brincadeira.
Que tipo de poder supostamente o protagonista passou a ter?
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