quarta-feira, 23 de novembro de 2022

CRÔNICA: (TRECHO RETIRADO DO LIVRO: O XANGÔ DE BAKER STREET) - JÔ SOARES - COM GABARITO

 CRÔNICA: (TRECHO RETIRADO DO LIVRO O XANGÔ DE BAKER STREET)

                     Jô Soares

          O detetive puxou do bolso a lupa e aproximou-se da calçada enegrecida pelas manchas de sangue. Quando baixou-se para ver melhor aquela área, sentiu a cabeça girar e a lente quase escapou-lhe das mãos. Teve de apoiar ao muro para não cair. Mello Pimenta, Saraiva e Watson correram para ajudá-lo:

        - O que houve, meu velho? - perguntou Watson, preocupado.

        - Nada, apenas uma pequena vertigem - respondeu Holmes, recuperando se. Depois, traduziu para Pimenta e Saraiva: - Fiquei tonto. Acho que ontem abusei das ervas que uma amiga me deu. Não sei se conhecem, são cigarros índios. Ótimos, por sinal, só que eu fumei demais.

       - Ah, vejo que o senhor Sherlock Holmes experimentou o nosso pango - disse o experiente Saraiva.

       - Pango? - perguntou Sherlock.

       Exatamente. É como os negros chamam a cannabis. Havia, inclusive, um lindo canteiro delas cultivado atrás da cozinha do palácio de Sua Majestade em São Cristóvão.

        Mello Pimenta, preocupado com o repentino mal-estar do detetive, pegou o pelo braço para afastá-lo dali.

        - Senhor Holmes, posso garantir-lhe que aqui não há nada que nos interesse. É melhor o senhor voltar para o hotel com o doutor Watson, enquanto sigo com o Saraiva até o Instituto Médico Legal, para acompanhar a autópsia.

       - De maneira alguma. O doutor Watson e eu fazemos questão de observar esta necropsia. Afinal, oito olhos enxergam melhor do que quatro.

         - Oito não, sete.

         - Como assim?

         - O Saraiva é cego de um olho - explicou Mello Pimenta, revelando este detalhe desconhecido da anatomia do professor.

         - Uma lembrança que eu trago das batalhas do Paraguai - explicou, constrangido, o doutor Saraiva.

         - Não sabia que o senhor era um herói de guerra - disse Holmes, comovidamente. - Foi numa luta corpo a corpo?

         - Não, uma infecção. Cocei o olho com a mão suja - explicou, sem pudor, o médico-legista.

         - Seja como for, gostaria de acompanhá-los. Essa tontura é passageira - garantiu o detetive.

        Saraiva, que entendia de ressacas como poucos, deu a receita:

        - Se me permite, senhor Holmes, o melhor remédio para esta sensação matutina é uma boa cachaça.

        - Cachaça? Que raios de estupor é este?

        - É uma aguardente feita com cana-de-açúcar. Uma bebida muito suave, deliciosa. Basta uma dose para o senhor se recuperar completamente. Aliás, vou acompanhá-lo. Também estou me sentindo um pouco fraco esta manhã.

        - Saraiva, não sei se é aconselhável dar cachaça ao senhor Holmes a esta hora - adiantou Mello Pimenta, com prudência.

        - Bobagem, meu caro Mello Pimenta. Tenho certeza de que este santo remédio deixará o nosso amigo inglês novo em folha - assegurou o médico.

        Os quatro se dirigiram a um botequim na esquina da rua Riachuelo. Saraiva, com invejável expertice etílica, encomendou duas doses da melhor aguardente da casa e entornou o seu copo num gole preciso. Quando o doutor Watson viu o líquido transparente que exalava um fortíssimo cheiro de álcool, indagou o que vinha a ser aquela bebida.

        - Nada de mais, Watson, apenas uma aguardente feita com cana-de-açúcar. O professor Saraiva assegura que possui excelentes resultados curativos - traduziu Sherlock para o amigo.

        - Não sei, Holmes, pelo cheiro, parece-me algo fortíssimo. Talvez seja conveniente não bebê-la pura - aconselhou.

         - Que faço, então? Ponho um pouco de água?

         - Acho que um sumo de fruta seria melhor. Laranja ou limão. São ótimos remédios. Já conhecemos, inclusive, suas comprovadas propriedades contra o escorbuto.

          Sherlock virou-se para o dono do botequim:

          - Meu amigo aqui está sugerindo que eu coloque um pouco de sumo de laranja ou limão na bebida. Por acaso o senhor tem alguma dessas frutas?

          - Tenho limões - respondeu, intrigado, o proprietário, sem tirar os olhos do chapéu e das sandálias nordestinas que o doutor ainda calçava.

          Watson completou:

          - Talvez também seja bom adicionar um pouco de gelo e açúcar, Holmes, para compensar a queima produzida pelo álcool.

          Sherlock Holmes transmitiu as exigências do doutor. O botiquineiro dirigiu se ao fim do balcão e ordenou que o seu empregado trouxesse o pedido. Watson cortou o limão em quatro e depositou dois pedaços no copo junto com o açúcar. Depois, pôs-se a amassar as fatias com uma colher, enquanto dizia:

           - Por via das dúvidas, é melhor colocar os gomos inteiros e espremer.

          Quando terminou aquela operação, acrescentou uns pedaços de gelo e entregou a curiosa poção ao detetive:

          - Pronto, Holmes, agora acho que você pode beber sem correr perigo.

          No fundo do bar, o empregado e o dono do botequim olhavam, fascinados. O jovem balconista perguntou:

          - Patrão, que língua eles estão falando?

          - Sei lá. Pra mim ou é latim ou é coisa do demo.

          - E que mixórdia é aquela que eles estão fazendo?

          - Não sei, uma invenção daquele caipira ali - disse, apontando para o chapéu de vaqueiro de Watson.

         - Qual deles, o grandão? - perguntou o rapaz, indicando Sherlock Holmes, todo de branco.

          - Não, o caipira grande está só bebendo. Quem preparou foi o menorzinho, o caipirinha - respondeu o proprietário, batizando assim, para sempre, a exótica mistura.

https://intranet.policiamilitar.mg.gov.br/conteudoportal/uploadFCK/crs/File/provas_anteriores/CFO/prova_2006.pdf

Entendendo o texto

01.  Em relação ao uso dos cigarros índios, segundo se percebe no texto, é CORRETO afirmar que:

a)  seu uso era comum na época, não sendo vistos como algo ilegal.

b)  a polícia fazia “vista grossa” ao seu uso, mas já se iniciava uma proibição.

c) eram vistos não só como drogas, mas também como um cigarro diferente dos outros, exóticos.

d)  havia certa discriminação, pois eram, na maioria das vezes, consumidos por índios e negros.

02. - Cachaça? Que raios de estupor é este? A palavra “estupor” está sendo retomada ou explicada, metaforicamente, pela frase:

a) Basta uma dose para o senhor se recuperar completamente.

b)  - Nada de mais, Watson, apenas uma aguardente feita com cana-de-açúcar.

c)  É uma aguardente feita com cana-de-açúcar.

d) Se me permite, senhor Holmes, o melhor remédio para esta sensação matutina é uma boa cachaça.

03.  - Não, uma infecção. Cocei o olho com a mão suja - explicou, sem pudor, o médico-legista. Saraiva explicou, sem pudor, porque:

a)  da forma com que Mello Pimenta se referiu ao amigo, parecia que ele, sem um olho, não era competente para o cargo que exercia.

b)  diante da interrogação de Holmes, esperava-se a confirmação do fato e não simples falta de higiene, que ele confirmou sem sentir vergonha.

c)  quando Holmes falou em “herói de guerra”, Saraiva se sentiu lisonjeado, mas demonstrou sua humildade e respeito.

d) ficou sem jeito de mentir, pois Mello Pimenta conhecia a história e poderia desmenti-lo, o que causaria constrangimento ao colega.

 

 

 

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