CRÔNICA: (TRECHO RETIRADO DO LIVRO O XANGÔ DE BAKER STREET)
Jô Soares
O detetive puxou do bolso a lupa e
aproximou-se da calçada enegrecida pelas manchas de sangue. Quando baixou-se
para ver melhor aquela área, sentiu a cabeça girar e a lente quase escapou-lhe
das mãos. Teve de apoiar ao muro para não cair. Mello Pimenta, Saraiva e Watson
correram para ajudá-lo:
- O que houve, meu velho? - perguntou
Watson, preocupado.
- Nada, apenas uma pequena vertigem -
respondeu Holmes, recuperando se. Depois, traduziu para Pimenta e Saraiva: -
Fiquei tonto. Acho que ontem abusei das ervas que uma amiga me deu. Não sei se
conhecem, são cigarros índios. Ótimos, por sinal, só que eu fumei demais.
- Ah, vejo que o senhor Sherlock Holmes
experimentou o nosso pango - disse o experiente Saraiva.
- Pango? - perguntou Sherlock.
Exatamente. É como os negros chamam a
cannabis. Havia, inclusive, um lindo canteiro delas cultivado atrás da cozinha
do palácio de Sua Majestade em São Cristóvão.
Mello Pimenta, preocupado com o
repentino mal-estar do detetive, pegou o pelo braço para afastá-lo dali.
- Senhor Holmes, posso garantir-lhe que
aqui não há nada que nos interesse. É melhor o senhor voltar para o hotel com o
doutor Watson, enquanto sigo com o Saraiva até o Instituto Médico Legal, para
acompanhar a autópsia.
- De maneira alguma. O doutor Watson e
eu fazemos questão de observar esta necropsia. Afinal, oito olhos enxergam
melhor do que quatro.
- Oito não, sete.
- Como assim?
- O Saraiva é cego de um olho -
explicou Mello Pimenta, revelando este detalhe desconhecido da anatomia do
professor.
- Uma lembrança que eu trago das
batalhas do Paraguai - explicou, constrangido, o doutor Saraiva.
- Não sabia que o senhor era um herói
de guerra - disse Holmes, comovidamente. - Foi numa luta corpo a corpo?
- Não, uma infecção. Cocei o olho com
a mão suja - explicou, sem pudor, o médico-legista.
- Seja como for, gostaria de
acompanhá-los. Essa tontura é passageira - garantiu o detetive.
Saraiva, que entendia de ressacas como
poucos, deu a receita:
-
Se me permite, senhor Holmes, o melhor remédio para esta sensação matutina é
uma boa cachaça.
- Cachaça? Que raios de estupor é este?
- É uma aguardente feita com
cana-de-açúcar. Uma bebida muito suave, deliciosa. Basta uma dose para o senhor
se recuperar completamente. Aliás, vou acompanhá-lo. Também estou me sentindo
um pouco fraco esta manhã.
- Saraiva, não sei se é aconselhável
dar cachaça ao senhor Holmes a esta hora - adiantou Mello Pimenta, com
prudência.
- Bobagem, meu caro Mello Pimenta.
Tenho certeza de que este santo remédio deixará o nosso amigo inglês novo em
folha - assegurou o médico.
Os quatro se dirigiram a um botequim na
esquina da rua Riachuelo. Saraiva, com invejável expertice etílica, encomendou
duas doses da melhor aguardente da casa e entornou o seu copo num gole preciso.
Quando o doutor Watson viu o líquido transparente que exalava um fortíssimo
cheiro de álcool, indagou o que vinha a ser aquela bebida.
- Nada de mais, Watson, apenas uma
aguardente feita com cana-de-açúcar. O professor Saraiva assegura que possui
excelentes resultados curativos - traduziu Sherlock para o amigo.
- Não sei, Holmes, pelo cheiro,
parece-me algo fortíssimo. Talvez seja conveniente não bebê-la pura -
aconselhou.
- Que faço, então? Ponho um pouco de
água?
- Acho que um sumo de fruta seria
melhor. Laranja ou limão. São ótimos remédios. Já conhecemos, inclusive, suas
comprovadas propriedades contra o escorbuto.
Sherlock virou-se para o dono do
botequim:
- Meu amigo aqui está sugerindo que
eu coloque um pouco de sumo de laranja ou limão na bebida. Por acaso o senhor
tem alguma dessas frutas?
- Tenho limões - respondeu,
intrigado, o proprietário, sem tirar os olhos do chapéu e das sandálias
nordestinas que o doutor ainda calçava.
Watson completou:
- Talvez também seja bom adicionar um
pouco de gelo e açúcar, Holmes, para compensar a queima produzida pelo álcool.
Sherlock Holmes transmitiu as exigências do
doutor. O botiquineiro dirigiu se ao fim do balcão e ordenou que o seu
empregado trouxesse o pedido. Watson cortou o limão em quatro e depositou dois
pedaços no copo junto com o açúcar. Depois, pôs-se a amassar as fatias com uma
colher, enquanto dizia:
- Por via das dúvidas, é melhor
colocar os gomos inteiros e espremer.
Quando terminou aquela operação,
acrescentou uns pedaços de gelo e entregou a curiosa poção ao detetive:
- Pronto, Holmes, agora acho que você
pode beber sem correr perigo.
No fundo do bar, o empregado e o dono
do botequim olhavam, fascinados. O jovem balconista perguntou:
- Patrão, que língua eles estão
falando?
- Sei lá. Pra mim ou é latim ou é
coisa do demo.
- E que mixórdia é aquela que eles
estão fazendo?
- Não sei, uma invenção daquele
caipira ali - disse, apontando para o chapéu de vaqueiro de Watson.
- Qual deles, o grandão? - perguntou o
rapaz, indicando Sherlock Holmes, todo de branco.
- Não, o caipira grande está só
bebendo. Quem preparou foi o menorzinho, o caipirinha - respondeu o
proprietário, batizando assim, para sempre, a exótica mistura.
Entendendo o texto
01. Em relação ao uso dos cigarros índios, segundo
se percebe no texto, é CORRETO afirmar que:
a) seu uso era comum na época, não sendo vistos
como algo ilegal.
b) a polícia fazia “vista grossa” ao seu uso, mas
já se iniciava uma proibição.
c) eram vistos não só como
drogas, mas também como um cigarro diferente dos outros, exóticos.
d) havia certa discriminação, pois eram, na
maioria das vezes, consumidos por índios e negros.
02. - Cachaça? Que raios de
estupor é este? A palavra “estupor” está sendo retomada ou explicada,
metaforicamente, pela frase:
a) Basta uma dose para o
senhor se recuperar completamente.
b) - Nada de mais, Watson, apenas uma aguardente
feita com cana-de-açúcar.
c) É uma aguardente feita com cana-de-açúcar.
d) Se me permite, senhor
Holmes, o melhor remédio para esta sensação matutina é uma boa cachaça.
03. - Não, uma infecção. Cocei o olho com a mão
suja - explicou, sem pudor, o médico-legista. Saraiva explicou, sem pudor,
porque:
a) da forma com que Mello Pimenta se referiu ao
amigo, parecia que ele, sem um olho, não era competente para o cargo que
exercia.
b) diante da interrogação de Holmes, esperava-se
a confirmação do fato e não simples falta de higiene, que ele confirmou sem
sentir vergonha.
c) quando Holmes falou em “herói de guerra”,
Saraiva se sentiu lisonjeado, mas demonstrou sua humildade e respeito.
d) ficou sem jeito de mentir,
pois Mello Pimenta conhecia a história e poderia desmenti-lo, o que causaria
constrangimento ao colega.
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