Artigo de divulgação científica: MICRORGANISMOS: NOSSAS FÁBRICAS MICROSCÓPICAS
9 DE JUNHO DE
2018 COMCIENCIA
Danielle Biscaro Pedrolli e
Patrick Neves Squizato
Biologistas sintéticos já
vislumbram, inclusive, a construção de microfábricas completamente sintéticas,
ou seja, formadas por moléculas de DNA sintéticas contendo um código sintético
responsável por dirigir a síntese de proteínas sintéticas.
Apesar de não os vermos, os
microrganismos estão em todos os ambientes: quentes, frios, expostos,
protegidos, terrestres, aquáticos, extremos e amenos. Eles habitam nossas
casas, nossos alimentos e até nossos corpos. São trilhões (4 x 1013) de
bactérias habitando nosso corpo. Contando apenas estas, temos cerca de 30% mais
células de bactérias em nosso corpo do que nossas próprias células
(Sender et al., 2016). Mas o que chamamos de microrganismos ainda inclui
os fungos (popularmente conhecidos como mofo ou bolor), as leveduras (como as
do fermento biológico do pão), e os vírus. Do ponto de vista biológico, somos
menos humanos do que aparentamos.
Nossos vizinhos e hóspedes
microscópicos, apesar de invisíveis, não passam despercebidos. Alguns deles são
velhos conhecidos por causarem gripes, micoses, diarreia, tuberculose. Apesar
do grande incômodo, apenas uma pequena fração desses seres microscópios são
agentes causadores de doenças. A grande maioria nos auxilia em tarefas
corpóreas essenciais, como digerir os alimentos que consumimos e nos defender
de patógenos. Outros são responsáveis pelas valiosas tarefas de decompor
matéria orgânica e promover o crescimento de plantas. Utilizamos os
microrganismos há mais de seis mil anos para preparar leites fermentados,
iogurtes, queijos, cervejas, vinhos e pães. E na vida moderna, consumimos desde
etanol combustível a medicamentos produzidos por microrganismos. Podemos dizer,
portanto, que os microrganismos são nossas fábricas microscópicas ou
microfábricas.
Apesar de consumirmos bebidas e
alimentos fermentados há milhares de anos e possuirmos mais células microbianas
do que células humanas em nosso corpo, o mundo microbiano só foi descoberto em
1665, por Robert Hooke. E a partir de 1880, as pesquisas de um outro Robert, o
Koch, nos permitiram isolar e estudar individualmente as diferentes espécies de
microrganismos. Mas a primeira revolução das microfábricas começou em 1942,
quando a penicilina produzida por um fungo foi usada para curar uma pessoa com
infecção bacteriana severa. Os trabalhos de Alexander Fleming, Ernst Chain,
Howard Florey e Norman Heatley, entre 1928 e 1942, permitiram a produção e
purificação massiva de penicilina em escala industrial. O feito alcançado é
surpreendente até para os parâmetros atuais: aumento de 50 mil vezes na
produção de penicilina em relação às primeiras tentativas realizadas por
Fleming. Fato curioso nessa história foi que um dos pontos chave para o
desenvolvimento do processo produtivo ocorreu quando a assistente do
laboratório, incumbida de comprar frutas emboloradas no mercado local em Peoria
(Illinois, Estados Unidos), voltou ao laboratório com um melão recoberto por um
belo mofo dourado. Por acaso, esse bolor dourado acabou sendo o
fungo Penicillium chrysogeum, capaz de produzir 200 vezes mais penicilina
do que a espécie descrita por Fleming (Markel, 2013).
A partir daí, iniciaram-se as buscas
por novos microrganismos e novas capacidades. Enzimas para processamento de
sucos, ração animal e papel, uma gama de antibióticos, goma xantana, enzimas
para tratamento de tecidos e limpeza de roupas, citrato, lactato, aminoácidos,
vitaminas… muitos produtos de origem microbiana foram descobertos e passaram a
ser produzidos em escala industrial.
Mas a gama de produtos naturalmente
produzidos por microrganismos é limitada, e a busca intensiva por moléculas
novas ou mais eficientes, e processos mais viáveis industrialmente, muitas
vezes não resultou em sucesso. Esse problema começou a ser solucionado nos anos
1970, quando adquirimos a capacidade de modificar geneticamente os
microrganismos. Bactérias geneticamente modificadas são usadas desde 1982 para
produzir a insulina usada no tratamento de pessoas portadoras de diabetes.
Antes disso, a insulina era extraída e purificada a partir do pâncreas de
animais, principalmente porcos. Mas o tratamento com insulina animal
frequentemente causava reações alérgicas. Além disso, o processo de extração
apresentava baixo rendimento.
O DNA de uma célula funciona como um
conjunto de softwares (os genes se enquadram aqui) dentro de
um hardware chamado célula. Isso significa que as funções executadas
pela célula estão codificadas no DNA. Para converter a informação codificada em
função, a célula usa uma linguagem de programação universal, ou seja,
células de espécies diferentes possuem softwares diferentes, mas a
linguagem de programação usada é a mesma. Assim, modificar geneticamente um
microrganismo significa dar a ele a informação necessária para realizar uma
tarefa nova ou excluir a informação necessária para a realização de uma tarefa
indesejada. Pode-se, por exemplo, excluir do DNA a informação sobre como
sintetizar uma toxina, eliminando-se assim a capacidade do microrganismo em
produzir essa toxina. Ou pode-se inserir no DNA a informação necessária para a
síntese de uma substância, a insulina por exemplo, conferindo-se assim ao
microrganismo a capacidade para a produção da insulina. Essa substância passa
então a ser diferenciada da molécula produzida naturalmente pelo termo
“recombinante”. E assim se faz um microrganismo geneticamente modificado por engenharia
genética. Com a engenharia genética, veio a segunda revolução das
microfábricas, que nos converteu de prospectadores a construtores. Vacinas
recombinantes, enzimas recombinantes, hormônios recombinantes… nossas
microfábricas foram ampliadas em variedade de produtos e eficiência de
produção.
A engenharia genética nos permitiu
copiar capacidades de um organismo e transferi-las a outro, ou eliminar
capacidades indesejadas, o que só é possível pelo fato dos organismos usarem
todos a mesma “linguagem de programação”. Mas, mesmo assim, as capacidades
naturalmente disponíveis para serem copiadas são limitadas. Era necessária uma
nova revolução, a terceira revolução, que chegou no início dos anos 2000, com o
desenvolvimento e barateamento da síntese de DNA, nos convertendo de
construtores a projetistas. Assim, a manipulação genética deixou de ser
limitada pela existência de moldes que podiam ser copiados e passou a permitir
também a criação de novas capacidades para as microfábricas (e para qualquer outro
organismo). A capacidade de projetar e construir sistemas biológicos abriu
terreno para o surgimento de uma abordagem nova dentro das ciências da vida, a
biologia sintética.
Em essência, a biologia sintética visa
à concepção de fábricas biológicas, microscópicas ou macroscópicas (por exemplo
uma planta), de uma forma racional e sistemática. A biologia sintética propõe,
portanto, a criação de células feitas de matéria biológica com funções não
naturais, dentro de uma proposta de integração entre a biologia e a engenharia,
para tornar o processo de desenvolvimento mais confiável, eficiente e
previsível. Resgatando a analogia com a computação, seria como
desenvolver softwares novos para comandar
os hardwares existentes.
Um dos marcos dessa nova era das
microfábricas foi a construção de um microrganismo capaz de produzir o ácido
artemisínico, que é usado na síntese de uma potente droga antimalárica, a
artemisinina. A obtenção da artemisinina natural ocorre a partir de extratos da
planta artemísia em um processo de baixo rendimento incapaz de suprir a demanda
pelo medicamento (Paddon e Keasling, 2014).
Cientistas ainda mais ambiciosos
criaram microrganismos capazes de diagnosticar doenças, produzir
matérias-primas em substituição a derivados do petróleo, produzir novos
biocombustíveis, produzir células-combustível microbianas que geram
eletricidade a partir de bactérias geneticamente modificadas, produzir
bio-borracha, bio-acrílico, e até processar informação através de portas
lógicas como as usadas em circuitos eletrônicos (ver “Current uses of synthetic
biology for renewable chemicals, pharmaceuticals, and biofuels”). Alguns vão
além, propondo uso das microfábricas diretamente dentro do corpo, ou seja, ao
invés de produzir um fármaco industrialmente e depois administrá-lo ao
paciente, a microfábrica poderia ser diretamente administrada à pessoa. Uma vez
dentro do organismo humano, a microfábrica iniciaria sua produção do
medicamento, liberando-se, em seguida, diretamente ao paciente.
Biologistas
sintéticos já vislumbram, inclusive, a construção de microfábricas
completamente sintéticas, ou seja, formadas por moléculas de DNA sintéticas
contendo um código sintético responsável por dirigir a síntese de proteínas
sintéticas. A primeira etapa desse processo já foi concluída quando
microrganismos naturais tiveram seus cromossomos substituídos por versões
sintéticas da molécula. O cromossomo sintético foi capaz de instruir a célula a
desempenhar todas as suas funções básicas corretamente (Hutchison et al.,
2016). Um passo mais complexo será o desenvolvimento de uma linguagem sintética
para a célula. O desenvolvimento de células sintéticas, potencialmente, criará
um isolamento dos microrganismos geneticamente modificados em relação aos naturais,
impedindo qualquer tipo de disseminação de DNA modificado entre a microbiota
natural.
As microfábricas são opções atrativas
para substituir tanto o modelo de produção baseado na extração de compostos
vegetais quanto na química industrial. Dentre as vantagens estão um processo
produtivo livre da sazonalidade do cultivo vegetal, uma produtividade que pode
ser manipulada para aumentar o rendimento do processo, a utilização de
matérias-primas renováveis, podendo até ser adaptado para uso de resíduos
agroindustriais, não gerar resíduos tóxicos ou poluentes, ter potencial para
produção de moléculas complexas e não demandar condições extremas como alta
temperatura e/ou pressão. E talvez o aspecto mais intrigante de todos, são as
únicas fábricas que se reproduzem autonomamente.
Mas nem tudo são flores. O tema levanta
importantes questões sobre regulação e segurança em relação ao uso massivo de
organismos geneticamente modificados. Essas questões são especialmente
relevantes quando se trata de microrganismos, pois estes podem ser extremante
eficientes em se espalhar e colonizar ambientes por possuírem alta capacidade
de adaptação, e ainda possuem a capacidade de transferir moléculas de DNA não
só às células filhas, mas também aos microrganismos vizinhos. Por esse motivo,
cientistas têm trabalhado na construção de sistemas de contenção biológica,
capazes de induzir a morte das microfábricas e a destruição de seus DNAs sempre
que necessário.
Além disso, ainda existem questões
sociais e éticas que devem ser abordadas antes que as microfábricas sejam
massivamente empregadas, principalmente em ambientes não controlados.
Danielle Biscaro Pedrolli é
professora do Departamento de Bioprocessos e Biotecnologia da Faculdade de
Ciências Farmacêuticas, na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de
Araraquara.
Patrick Neves Squizato é
aluno de graduação em engenharia de bioprocessos e biotecnologia da Faculdade
de Ciências Farmacêuticas, na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de
Araraquara.
Referências
“Current uses of synthetic
biology for renewable chemicals, pharmaceuticals, and biofuels”. Biotechnology
Industry Organization, 2013. Disponível em:
https://www.bio.org/sites/default/files/files/2013-03-03-Synthetic-Biology-Products.pdf
Hutchison, C.A.; Chuang, R.Y; Noskov, V.N.; et al. “Design and synthesis
of a minimal bacterial genome”. Science, vol. 351, n. 6280, aad6253 (p.
0-12), 2016.
Markel, H. “The real story behind penicillin”. PBS NewsHour, 2013. Disponível
em:
https://www.pbs.org/newshour/health/the-real-story-behind-the-worlds-first-antibiotic
Paddon, C.J.; Keasling, J.D. “Semi-synthetic artemisinin: a model for the use
of synthetic biology in pharmaceutical development”. Nature Reviews
Microbiology, vol. 12, p. 355–367, 2014.
Sender, R.; Fuchs, S.; Milo, R. “Are we really vastly outnumbered? Revisiting
the ratio of bacterial to host cells in humans”. Cell, vol. 164, p.
337-340, 2016.
PEDROLLI, D. B.;
SQUIZATO, P. N. Microrganismos: Nossas Fábricas Microscópicas. ComCiência, jun.
2018. Dossiês. Disponível em: http://www.comciencia.br/microrganismos-nossas-fabricas-microscopicas/.
Acesso em: 3 mar. 2020.
Fonte: Língua
Portuguesa – Se liga nas linguagens – Área do conhecimento: Linguagens e suas
Tecnologias – Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2020 – Moderna – p. 85-88.
Entendendo o artigo de
divulgação científica:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Vislumbram: preveem, imaginam.
·
Patógenos: agentes causadores de doença.
·
Microbianas: de micróbios.
·
Gama: série.
·
Goma
xantana: tipo de açúcar produzido por
fermentação pela bactéria Xanthomonas campestres.
·
Citrato: designação genética dos sais do ácido cítrico.
·
Lactato: sal do ácido láctico.
·
Toxina: substância tóxica capaz de provocar a formação de anticorpos
ou antitoxinas.
·
Insulina: hormônio secretado pelo pâncreas responsável pelo metabolismo
dos carboidratos no sangue.
·
Prospectadores: pesquisadores; investigadores.
·
Antimalárica: que combate ou previne a malária.
·
Fármaco: produto farmacêutico; substância química usada como remédio.
·
Microbiota: grupo de microrganismos que vive em determinado ambiente.
·
Sazonalidade: qualidade do que é sazonal, que varia conforme a
estação/época do ano.
02 – A qual área da Ciência
está relacionado esse artigo?
À Biologia.
03 – O artigo de divulgação
científica é um texto destinado a um público amplo, que tem interesse em um
assunto, mas não é especializado. Você achou fácil entender esse artigo? Por
quê?
Resposta pessoal
do aluno.
04 – Em quais passagens você
nota que o texto não se destina a um cientista?
Na introdução,
por exemplo, há uma explicação sobre a presença de vírus no ambiente e no
próprio corpo humano, que seria dispensável na interlocução com um cientista.
05 – Ao longo do texto,
foram citados vários estudos. O que isso nos diz sobre a forma como se faz
ciência?
Os estudos
científicos ocorrem por complementação, e não isolados. O trabalho de um
cientista é aproveitado por outros, que desenvolvem novas linhas de pesquisa.
06 – Veja, agora, as
referências. Qual conhecimento parece ser importante na formação de um
cientista?
O conhecimento da
língua inglesa, já que muitos artigos são escritos nessa língua.
07 – O artigo foi assinado
por duas pessoas. Que relação existe entre elas? Como deve ter sido a produção
do texto?
Provavelmente
Patrick é aluno de Danielle ou realiza alguma pesquisa sob sua orientação. O
artigo deve ter sido escrito por ele com a supervisão dela.
08 – Por que é importante
que o leitor conheça a função social dos autores de um artigo de divulgação
científica?
Essa informação
contribui para a credibilidade do artigo. O fato de ter sido escrito por um
estudante da área junto de uma professora universitária especializada indica
que as informações muito provavelmente estão corretas e embasadas em estudos
confiáveis.
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